segunda-feira, dezembro 09, 2013

O que eu vivo



Desde pequeno que me agarro às palavras quando quero fazer um iglo. Há quem prefira colocar pessoas em seu redor, mas quase sempre elas me foram falíveis, e talvez eu também já esteja meio que falhado; por isso, a imparcialidade das letras que se agregam para fazer sentido ao que queremos exprimir em tentativas falhadas até o alvo certeiro explodir cheio de sentido é o meu sextante, a minha capa, aquilo que uso para me orientar. Quando o cancro, em forma de filho da puta mercurial, entrou pela minha vida como se lhe devesse uma cobrança à colecta que esquecera, o meu primeiro instinto foi chorar; depois ler, e depois escrever. O meu segundo instinto foi ignorar quase tudo o que lera, descobrindo, desconsolado, que boa parte do que se escreve sobre a doença tem como objectivo fazer-nos sentir bem e dizer que tudo dará certo no final. Algo de imprevisível, que no fim acaba bem. Tirando Miguel Esteves Cardoso, que guarda a melhor porção do seu "Como é linda a puta da vida" para relatar, com doses iguais de fúria, impotência e um amor que não acaba nunca , a luta que a sua mulher trava contra o cancro, toda a gente faz da viagem a marcha a ré um passeio de pé descalço pela praia, onde se apanham umas conchas de vez em quando, e a quantidade de lugares comuns faz-me perceber, precisamente, aqueles que me atiram todos os dias, quando me perguntam acerca do combate em forma de tango condenado, onde Gardel é substituído por Death in Vegas.

Eu tento responder com o mínimo de palavras possível, não me atraiçoando, e não atraiçoando a situação. Aceito que me peçam para ter força, não quero que chamem "coitadinho" ao meu pai. Agradeço quando me informam que rezam por ele, nos seus momentos privados, apetece-me partir a cara com um pá a quem me pede para rezar, e que deus vai ajudar, e vai intervir. Entendo quem se preocupa, e até, no meio de tudo, não visita o meu pai por ter medo de descobrir em si a explosão que o coração sofre quando a impotência é o único sofá numa sala de azulejos frios; não entendo quem passa mais tempo com perguntas idiotas do que com silêncios solidários que confortam e aceitam que a vida tem tanto de milagroso como a morte tem de inevitável. No centro de mim, claro, a raiva fica contida, numa caixa. Sai quando usufruo de um teclado, ou simplesmente de um par de ouvidos capazes de aguentar com arestas pontiagudas. Não se torna fácil a descoberta destes portos de abrigo: de Vales a Hortas e Costas, Saro no espírito que em Cunha se espreme e me levanta. Leio Borges e troco Katalins por Catarinas, no meio da confusão, onde a Craveira que pensava ser de grande porte é afinal pequena. Felizmente, abrigo.me em locais que não são de Madeira,, mas sim de betão. É o que me protege. Porque esta doença não é uma passeio. É um Ultra Trail sem mochila e com sapatinhas de chumbo.

É apetecer destruir tudo em nosso redor. É querer regatear com o Diabo anos da nossa vida para dar a outra pessoa. É congelar o coração neste Inverno de um ano, para só descongelá-lo quando o Inverno for uma noite de mil horas. É ser funcional nas acções e disfuncional em quase tudo o resto. É envergar uma máscara, e mentir aos outros enquanto a temos. É sentir a solidão na companhia, e saber que nessa companhia estão aqueles que gostam mais do que nós próprios nos gostamos. É um samba protagonizado por tetraplégicos, aplaudidos por uma avenida inteira de manetas, coreografados pelo último dos homens que desconhece o que é o ritmo, a dança e tudo o que é bom na vida. É ser pai, mas sem ter filhos. É, mesmo com boa vontade, saber que há uma luta que é sempre nossa, sozinha, para onde temos de crescer ou simplesmente mirrar até sermos menos pessoas. É não ter ninguém que realmente nos compreenda. É desilusão com tudo, e ter pouca esperança na ilusão da magia do milagre. É quimio, rádio, Depakines e medicamentos que acabam em Zol e que se tomam uma vez por dia. É dar comida na boca, limpar ranho do nariz, mudar de fraldas, e no final receber de troco um "Não" que é como se nos dessem um clíster de ácido clorídrico. É correr para o hospital às seis da manhã, andar até lá às duas da tarde, secar numa estufa até às quatro e arrastarmo-nos quando acaba o tempo. Por hoje. Amanhã há mais. É acabar livros em catadupa, porque, lá está, sem as palavras não há protecção para mim. É ouvir Einaudi e aquecer um pouco, e quando quente, pôr os dedos a trabalhar como um motor de combustão espontânea.

É isto, e é mais, que cada um tem para si a dor na forma que mais lhe for familiar. No meio do que é comum, cada um procura para si o seu conforto e o seu desequilíbrio. Para todos, é horrível, horrendo, horripilante, horroroso, horrífico, a toda a hora. Por isso, quando lerem um texto inspirador ou sentimental sobre alguém que partilha esta luta com alguém, desconfiem. Quem não reconhece a sua incapacidade de ser ele mesmo enquanto enfrenta isto, não sabe onde está metido. Com o tempo, acostuma-se, mas não porque seja fácil. Apenas porque é mais útil; e quando se tem o tempo contado a cada minuto, a inutilidade é um lixo que não se recicla.

1 comentário:

Post-It disse...

Sem palavras para te dar...consolo.
Já tinha lido e voltei a ler e posso dizer que é de gente muito crescida a tua coragem.