terça-feira, abril 01, 2014

Carris


Alinham-se os carris a Norte, sem descarrilar, e bilhetes picados no apeadeiro de Santa Clara: muita a terra a percorrer até Carrazeda de Ansiães. O Expresso da meia-noite, e para lá disso, conduziu quatro por uma linha até às sete quintas junto ao Douro, de manhãzinha. Era a hora marcada, o ponto combinado. estação terminal de um traço contínuo que a ser transposto e a cuja única multa era a satisfação. Sem sono e directamente ao despertar, calcámos assim terras e carris do Tua, que é a nossa. Nossa porque desejámos, pensámos e em andas de curiosidade andámos de Brunheda até Fiolhal, inter-estações, interstícios, interessados: na luz da manhã, o marulhar do rio e da corrente fazia tambores das pedras seixos, como se o murmúrio da terra quente, ali ao frio do arrepio, ondulasse as curvas da derme até tremer a alma. Por isso vieramos, 300 quilómetros, 300 do raio que t'Esparta: fazer o caminho, prestar homenagem ao labor da Natureza que o betão vai aterrorizar e sumir e devorar sem digestivo. O Mundo dá, o Homem vende por um quinhão os tesouros ali tão perto do Pinhão: fraude a debalde, aldrabice pegada no desapego ao que temos de mais verdadeiro.

É com estas linhas que se cose o destino de quem decide aventurar-se pelo ventre de Trás-os-Montes. O tempo parou e nos vértices e segmentos de recta que arquitectam os montes é perene a emoção da viagem no tempo sem necessidade de qualquer máquina: basta sair do nosso epicentro e de pés bem assentes na pedra descobrir o que os socalcos recalcam e os ecos do socorro ígneo ressoam no chão, nas traves, nas ruínas. Mas nada posso salvar, não está nas minhas mãos e alguma desolação sustenta-me os músculos enquanto estou presente a caminhar num passado que não tem futuro. Apenas nos meus olhos, onde existem carris que embalam para a minha estação da Memória, existe eternidade até a centelha fundir, e memoriar é a única maneira de tornar infinito este património mais do que o mundo: o esforço de homens a trote num cavalo de fogo; a marcha irresistível do planeta que abre vales e esculpe matéria por acaso e acidente; o sopro do Tempo que por tudo passa e nada deixa sem roubar um pedaço, uma oportunidade, uma hipótese. No pouco tempo que usufruí, vi dentro de mim vivências que me sorveram aqui um decénio antes e como que guardei tudo num vaso o que cruza entre o passado e o presente. Afinal, é isso esta Linha, e o evento maior é o de segurar o Tempo, colocá-lo num caderno e fingir que se aprendeu a pôr-lhe travão. Mesmo que, chegados ao Fiolhal, aquele monte de cimento horrendo acelere sobre as recordações a uma velocidade vertiginosa.

Sem comentários: