quarta-feira, junho 11, 2014

Magnífico



Como instituição de referência, a Universidade de Coimbra (UC) é uma fonte inesgotável de divertidas rábulas. Mais vezes do que as desejáveis, os protagonistas são os seus alunos, cabecilhas do gangue da cabeça no ar e das tristes figuras que nada têm de Cervantes. No entanto, é de concluir que o exemplo terá de vir algures acima da hierarquia, já que seria de enorme soberba atribuir aos jovens tão grande capacidade e inexcedível talento numa área onde a prática é uma componente fundamental.Quem foi aluno da UC sabe que existe nos seus quadros burocráticos e docentes essa torrente de estupidez, non-sense e incompetência só ao alcance da Secretaria Geral ou, patamar máximo, a Secretaria da FLUC. Esta semana marca mais um desses episódios em que fui co-protagonista inesperado.

Porquê inesperado? Porque envolve a recepção do meu diploma de curso, e com sinceridade digo que não mais esperava recebê-lo. De facto, entre a inutilidade do meu próprio grau universitário e os dez anos que medeiam este momento e o meu pedido ingénuo na Secretaria Geral da UC, tinha-me esquecido completamente de que a eventualidade de acontecer poderia descer sobre mim como um martelo vindo de nenhures. Lá caiu. O carteiro entregou-me o tubo e se inicialmente até pensei poder vir a ser uma daquelas prendas espontâneas que nos alegram o mundo durante uns minutos, cedo concluí que estava a acontecer algo tão bizarro que só poderia encontrar rival nas assombrações do parlamento dinamarquês. Com calma e sem excitação, a embalagem deu a tampa às minhas mãos e regurgitou um cilindro dourado, com o inconfundível emblema da UC. Ainda antes de abri-lo, a minha memória recuperou este lapso e anunciou o culpado: um diploma em Latim que sim, comprovava que tinha gasto quatro anos a vasculhar o passado com permissão e benevolência da UC e que me deu a conhecer a tradução latina dos nomes dos meus pais, algo que nenhum deles tinha particular curiosidade de saber. O papel do diploma é durinho, como quem pede moldura e a fórmula é a que muitos já viram nas suas mãos. Talvez não muitos, ainda, mas nada temam: certamente chegará a vossa vez.

No entanto, esta prenda trazia um bónus. O próprio reitor decidira escrever-me. A mim, um licenciado em História, cujo diploma até vem assinado por um dos seus antecessores? Por favor, senhor reitor, explique-me a honra; e o Magnífico lançou-se num arrastado gesto de desculpas pelo facto de este importante documento da minha vida (e acredito que da História da UC) chegar sem uma peçazinha em prata que bate fundo nos corações daqueles que vêem confirmados o seu saber pela sua existência ao pendurão numa folha. De facto, explica-me ele, o preço da prata está para lá de Alfa Centauro e os magros cofres universitários não conseguem contemplar a compra da argêntea preciosidade sem que isso cause o fim da civilização tal como a conhecemos. Pedem-me então que prescinda desta confirmação de valor e ajude assim a UC, que se apresenta quase como minha mãe, a resistir nestes tempos de vacas magras e professores gordos. Tenho toda a gratidão do Magnífico e a certeza que esta instituição tem os melhores antigos alunos do mundo. Implicitamente, penso que também se refere a mim, embora alguns professores discordassem  deste apodo.

Quem me conhece, sabe que ligo pouco a graus académicos e diplomas e afins. O doutor, ou professor doutor, ou capitão, ou "empregado do mês, João Gabriel Silva nunca me viu na vida e pensou que, tal como muitos que apenas usam os cursos universitários para se projectarem e ganharem um fictício estatuto, eu seria um desses casos. Fica descansado, caro compincha, não pedirei a prata.  Não quero ter nas minhas mãos o homicídio do baluarte da Cultura ocidental que é a UC. Gostava, no entanto, de poder mostrar este diploma ao meu pai, que foi afinal o principal responsável pela sua existência: pagou-me o curso, abdicando de outras coisas e sei que enchê-lo-ia de orgulho ter esse tubo dourado nas mãos e ver então essa confirmação, perante todo o mundo, de que o seu filho mais velho não só acabara um curso universitário, como cumprira, pelo menos em parte, a promessa que mostrara quando, em criança, mostrava tal memória que ganhou a alcunha de Enciclopédia. Seria magro consolo depois do tempo de desemprego que ele foi forçado a assistir, com uma mágoa disfarçada, mas ainda assim aposto que teria bem mais vontade de colocar o diploma na parede do que eu. Este senhor meu pai foi o mesmo a quem a Universidade pediu dinheiro durante anos, numa inflação de preço do meu curso (que é dado num edifício a cair aos pedaços e que não vê obras de fundo há décadas), e por quem não mostrou esta pequenina piedade que me pede quando o assunto é dinheiro. Tendo em conta o aumento do preço dos cursos universitários, e a sua utilidade no mundo real, nos últimos anos, a carta que recebi é quase um skecth de Monty Python ao qual só diálogos são necessários.

O meu pai nunca vai perceber que isto se deu. A minha mãe teve o diploma nas mãos, sorriu no paradoxo de que um documento tão inútil talvez seja a melhor coisa para se orgulhar depois de o seu filho mais velho ter passado ao lado de todas as tradições universitárias possíveis, mas tal como eu, tem coisas mais importantes com que se preocupar. O diploma é de prata, mas o tempo é de ouro. Ao contrário da prata, não se pode comprar nem recuperar com climas económicos mais favoráveis.

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