quinta-feira, agosto 21, 2014

Bocadinhos


Eles não sabem, mas têm dois colegas de trabalho. Um escreve e faz figuras tristes; o outro senta-se ao ombro do primeiro e diz-lhe "Não percebes nada disto, e não sabes. Estas letras são todas uma merda, ninguém vai gostar, não tens outro remédio senão reescrever tudo". Mas o primeiro continua, e pesquisa. Escreve mais e mais, o trabalho acumula-se, uns pensam que ele é alucinado mas isso de que interessa se o trabalho aparece feito, e ali todos são alucinados de uma forma ou de outra, e assim anulam-se uns aos outros, ninguém estranha e vêem dois a trabalhar quando só um é que escreve, e o patrão não sabe que está a ter dois a trabalhar pelo preço de um, num código do trabalho à chinesa. Fora dali, o segundo vai à sua vida, e o primeiro fica, segue para casa e só por curiosidade, expõe ao mundo o que afinal lhe custa tanto a caber na cabeça que é de talento e não de tormento. Outros gostam. O primeiro é o último a sentir uma pequena vitória, mas sente-a

Já passou um mês, e continuo a disfarçar. Estás debaixo da terra, mas sou eu quem continua a sentir-se dentro de um buraco. Todos os dias, quando venho do que é dele por direito de pai, faço uma linha torta, e esboço-me com os pés num chão que é areia movediça, e envolve aquele número que sei de cor, com as flores que nem consigo cheirar e a vela que apaga e acende, e nunca se queima. Não consigo entender, mas também não há que entender. Há que seguir, e tu sempre foste mais de ir em frente do que parar para perceber. Tento que venhas comigo, levar-te de cada vez que dou um passo para fora de casa, e nos momentos em que não sou uma parte sequer do meu melhor, desculpo-te porque a culpa nem é tua, que para além de não estares cá estiveste quando eu devia ter sido mais do que há em mim de maravilhoso, que calhar não vias porque não te importavas, e se não fosse maravilhoso era teu na mesma e não fugias disso. Porque me tinhas feito, e porque nunca te passou pela cabeça que por muito descabelado, estranho ou irreverente que eu fosse, não seria aquele a quem chamavas "filho". É nessas alturas que sou só mesmo eu, sem ninguém ao ombro, e como não rezo para o vazio, nem oro ao que não faz sentido, levo um joelho ao abismo que te tem, deposito com a mão o beijo que nunca deixei de ter dar, e tenho-me noutro lado, onde não estás, mas por outro lado até estás, porque não vais embora enquanto eu disser o teu nome, ou me lembrar da tua cara. Enquanto eu for eu, e a minha memória for o jardim marinho onde podes nadar no conforto do teu mar. Sem mais ninguém, só contigo e sem vozes a moer.

Tu só podes ter o bocadinho mais curto. Alongar-me sobre ti em mim é dar-te espaço, que não é de fuga mas de apanhada. Agarraste-me. Tens-me em dias pares que são ímpares na quantidade de dor que me dão no beijo que não damos e naquela risota com que me fazias regredir aos tempos em que não conhecia outra coisa que não caramelo. Não falar sobre ti é fingir que não existes. A mudez é esquecer-te. Por isso escrevo textos tão longos sobre o que não articulo, e o que não posso sequer calcular noves fora quando estou feito num oito. Ainda me afogas em imagem fixa. O mergulho é a compulsão da dor, e esquece-se que o bom mesmo é não senti-la. Hoje banho-me nela. Amanhã, a toalha do futuro vai-me secar de ti, até à próxima vez em que fores a minha preia-mar. Semana após semana, cada vez menos. Mas cheia de todas as vezes que me cobre.

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