terça-feira, novembro 04, 2014

Lisboa e a menina moça



Voltei onde já fui feliz. Onde, quero eu crer, ambos fomos. Desta vez, para evitar um deja vu em câmara lenta melancólica, evitei Sete Rios e desci no Oriente. Foi estranho, isto de pôr os pés numa cidade que nos diz tanto e ter de conjugar-me no singular. Senti a falta do monóxido de carbono do terminal, senti a falta de ver o teu carro e de entrar para um mundo de coisas boas numa viagem de dois dias, da casa carnuda em que recebias os meus lábios, dos teus olhos a saltar à corda com mil e uma coisas que faríamos, e até aquelas que sabíamos não caber no nosso tempo disponível, ainda me lembro muito bem da falsa espontaneidade do teu sorriso, quando querias convencer-me de que era daquele momento, mas eu sabia bem que era de sempre, de todos os dias da semana em que, não estando comigo, te imaginavas. Chegar a Lisboa era regressar, de facto, e a mim mesmo. Ao que queria ser, pelo menos, e quando estava contigo, senti-me muito próximo. Nunca pensei poder sentir-me em casa numa cidade onde raramente estivera; e no entanto, acontecia de todas as vezes que, em Lisboa, me acolhias.

Recordei tudo isto. Recordar é dar corda ao coração, que se for uma caixinha de música, com engrenagens bem colocadas, toca-te ainda canções que aleijam, mas também confortam. Voltei e não te encontrei, mas sem te procurar, reconheci-te. Sozinho, no meio de um nenhures contemporâneo, cheguei a fechar os olhos para te dar a mão, e até deste, ou eu quis, por momentos, voltar a ser quem já não sou, pelo menos enquanto me tenho, mas sei que nos horas livres do pensamento, ainda vamos aos locais onde fomos, em plural, passar os nossos momentos singulares. Cenas passam na tela, e na sala de cinema os beijos são pipocas, e tudo o mais luz que se desvanece na escuridão e projecta as imagens no ecrã. Já sei o final. Mas continuo a ver, porque as surpresas só me agarram quando não lhes pego. Ali, parado de pé, a nostalgia passa em IMAX, e percebo então que vives em mim como um copo que se bebe sem que moleste a garganta, uma bebida que preciso para enfrentar o resto, mas já deixando de ser alcoólico. Revestes-me num silêncio que partilho,sem que realmente o tenha contigo, e Lisboa volta a ser nossa, ainda que não seja realmente de ninguém, e eu juro que consigo ver ao longe a tua silhueta e sorrimos um ao outro, encolhendo os ombros, com a vida em ciclovia e nós sem bicicletas.

E sem medo, damos as mãos, já sentados, e permanecemos num caos silencioso e desordenado. Não sei se morrerei um bocadinho de cada vez que vivo esta cidade, digo-te, e talvez isso faça parte de me refazer, até porque és tijolos. Sobes para cima do meu muro, e sem teres intenção disso, desapareces felina, o sorriso o último vestígio de que estiveste não estando. Tranquilo, anoto algumas palavras. Farei delas isto que se lê, e algo mais que guardo em mim, um pequeno gira-discos onde o teu riso passa em stereo quando fecho os olhos e quero ser mais um a crescer em mim. Sem dor, sem mágoa, sem mais nada que não uma centena de peta-zetas na memória, cada uma um brilho na tua cara. Em Lisboa, lembro-te menina, lembro-te moça, e o melhor de tudo, lembro-me menino a teu lado, sem querer crescer à força.

Não me esqueço, mas paro de me lembrar. A melancolia tem o seu momento, e outros, aos seus ombros, se tornarão também um exercício de faz de conta; e quando me levanto, regressaste ao carro, a Sete Rios, e aos meus braços. Estás bem, estás comigo, embora eu também esteja noutro lado. Posso ser muitos, posso ser uma versão melhor do que sou, e uma pior, e esta que sou agora é talvez a mais conseguida da possíveis. Mas no carro, abraçados, ficas com a versão que me melhor te encaixa: a que ajudaste a fazer nascer; e aí, podemos mesmo voltar onde fomos felizes, e ficar assim para sempre.

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