sexta-feira, abril 01, 2016

O que fica e o que vai



Cá estou num barco, que mais parece um berço tal o embalo das ondas, e só consigo escutar a água no marulho do barulho. Nunca gostei de barcos, nem para pescar e amigos meus adoravam isso. Acordavam de madrugada, material arrumado em sacos e estojos, o alto mar como destino. Nunca me interessou. Fiz uns anos de corridas automóveis, era mais novo, e a sensação de ver o mundo a ficar para trás, da ausência de permanência e de multiplicar os tempos, quase como se pudesse viver o passado, presente e futuro nas voltas de uma pista, faziam-me sentir um tipo com poderes incríveis. Um barco está parado ou avança sem vertigem, mesmo quando abre as velas, como o meu, ou com um motor carcaça que mal o arrasta o suficiente para tornar o céu numa ilusão. Barcos são bons para quem gosta se parar e observar, e para mim isso sempre foi uma perda de tempo. O momento é o que é, e acabou. Foi-se: na velocidade, os momentos dividem-se e multiplicam-se e somam-se aliás a cada vez menos tédios. Um barco representava tudo aquilo que, para mim, a vida não deve ser: estática, paciente e frágil, submissa a outros elementos foram da minha própria vontade,

Mas a vida é quase toda ela submissão, aprendemos nós com os anéis nos ossos. Seja  ao panorama ou às suas pequenas partículas, e a Lia foi o meu bosão de Higgs. Apesar da falta de velocidade quando nos conhecemos (algumas palavras trocadas na festa de aniversário de alguém comum), também senti o mundo a ficar para trás, como se a mesma vertigem dos motores existisse nos olhos de uma outra pessoa (e existe). Nas nossas palavras, poucas, nasceu uma espécie de adrenalina que não se encontra nas pistas, e eu soube, desde logo, que o inquebrável que sempre conhecera como a minha pessoa estava destinado a ser vergado, de livre vontade. Aproximámo-nos, associámo-nos, juntámo-nos e durante anos, fomos cadeia, até que, há meio ano, ela se desprendeu de mim, e na verdade de tudo, pois pouca coisa que não a memória pode prender alguém que morre, e assim se extingue de forma deformada, cedo e sem que eu possa controlar. Algum tempo antes de ter chorado tudo aquilo que contive desde os dilúvios adiados da minha infância, convenceu-me a comprar um barco. O motivo era idiota, algo relacionado com nunca ter visto o pôr do sol num horizonte marinho, e quando lhe perguntei se não era para isso que serviam os cruzeiros, a Lia, que era bastante possessiva, desenrolou um imenso ensaio oral sobre a podridão do mundo e das pessoas e que nada disso lhe estragaria o desejo. Tínhamos o dinheiro e na altura, o fantasma do nada futuro assombrava-nos em fôlegos. Comprei-o e assim, o gentil movimento de uma bola de fogo que pica o ponto atrás de um limite fictício foi um ritual semanal. Nenhum de nós sabia manobrar o barco, mas felizmente conhecemos o Ti Rola, antigo pescador, homem que vivia na rua e que por um acaso, se é que foi acaso, surgiu e ouvindo comentários sobre o mar e sobre as suas incertezas, tirou do peito aventuras marinhas de outras idades suas, e bóia puxa rede, nos envolveu nesse pequenino sonho de pegar num barco para que eu e a Lia navegássemos num outro tipo de oceano, onde se encalha em recifes e não beijos e duas cadeiras de praia podem ser os lugares mais preciosos para se assistir ao espectáculo do fim do mundo, com a certeza de que nos dia seguinte este recomeça, de novo caminhando para o sue renascimento como cúpula da noite.

O que faço hoje, com o Ti Rola ao meu lado, é simplesmente forçar-me a deixá-la para trás: entregar ao profundo aquático estas cadeiras, mas estou aqui há umas três horas e não quero despedir-me. Nem é a primeira vez que paro e me recordo e sou acometido da única paralisia que é cura e não doença. O Ti Rola entende e vem, de todas as vezes. Gosta do mar, gosto do sal, gosta até dos limites fictícios. Eu também lido bem com o fictício e menos com o que é real. Por isso gosto mais da vapidez da velocidade do que do olhar permanente e fixo de embarcações que se sustentam sobre a densidade fluida das águas. Se tu fosses passageira, tudo era mais fácil; mas foste hóspede, e é muito mais complicado despachar uma casa do que um carro.

Mais difícil então é deixar para trás o que nos põe de pé de manhã e nos deita à noite.

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