quinta-feira, novembro 03, 2016

Cronistão 13: Rock the casbah


A luz é branca, conheço-a mas num segundo estranho. A lentidão ergue-me em solavancos e difuso e baço, um lamento em árabe consegue sobrepor-se ao barulho do trânsito e ao zumbido entre os meus ouvidos. Chamam para oração e no quarto de hotel, a hora é de pensar na peregrinação por Osh, onde me encontro. Aqui estou num real hotel, dezenas de andares, corredores que lembram "The shining", elevadores apertados, funcionários que sorriem simpáticos impessoais. É a primeira cidade a sério que encontramos na nossa viagem e só a capital é maior. O seu domínio sobre o lado quirguiz do vale de Fergana, um dos locais mais venerados e disputados da Àsia Central, nem se questiona e 3000 anos de idade dão-lhe a honra de ser a mais velha cidade do pais. Quando caminhamos nas suas ruas largas, há dezenas de pessoas que avançam connosco e no nosso oposto, sinais de que nesta zona mais a sul abandonámos a maioria eslava e existe uma influência muçulmana vincada. Nada que oprima: mulheres de beleza impossível levitam e existem longe de nós, mas a poucos centímetros de um toque que confirme que não são aparições, lenços tapando as cabeças mas pouco defendendo os ocidentais de traços faciais que envergonhariam a mais bela caligrafia corânica e colocariam frases a arder apenas e só porque de outra maneira não se queima a atracção. Podíamos passear em Osh simplesmente para desfrutar disto mesmo, embora a cidade, em si,

O que existe também em abundância é um caos organizado em desorganização permanente, o que se espera depois de dias a conhecer os hábitos rodoviários das quirguízias terras. Cada um por si e vamos ver no que dá, semáforos em entroncamentos que acendem em simultâneo e oferecem uma visão semi-apocalítica que faz da Rotunda do Relógio um paradigma escandinavo de organização. É preciso ver como todos se escapam, como se mete o nariz para testar as águas e depois arrancar prego a fundo pelo buraco que se descobriu. O caminho que fazemos tem como objectivo um outro local onde a desorganização foi acordada com um aperto de mão seco e sincero e desde que ninguém se atrapalhe, todos podem simplesmente estar em reboliço: o mercado de Osh. É o maior bazar a céu aberto da Ásia Central e uma prova de como a vontade humana é, tantas vezes, uma lei eficaz quando existe bom senso e disponibilidade. Antes de descer as escadas, o meu olhar alcança tendas e panais, contentores e casamatas que se espalham por dois quilómetros e meio em ambas as margens de uma imitação de rio: são cinco quilómetros de barafuste, solicitações constantes aos transeuntes, apelos que sobrevivem e fazem girar todos os dias a vida de centenas de mercadores e vendilhões. Do meu lado direito, vende-se comida; do meu lado esquerdo, uma miscelânea de safanões e o que mais possa descobrir. Descendo umas escadas, estou no labirinto e o único minotauro que encontrarei será Vladimir Putin, estampado em t-shirts com a garantia de um posto que está cima dos czares: Mr. President. 

Há toda uma outra disposição social nesta cidade. As pessoas querem estar contigo, falar-te, impingir-te. Apontam para a tua câmara e puxam-te o braço, fotografa-me e leva-me contigo, vê bem o que aqui tenho, não queres umas tâmaras? Velhotas puxam para o seu lado garotas e não têm vergonha. Tudo é barato com despudor, mas não resisto a brincar ao regateio, apenas porque é um jogo com Liga dos Campeões nesta zona. As compras saem-me baratas: 350 coms por duas echarpes, um caderno por 5 e ainda trago alguns chapéus tradicionais locais por mais uma pechincha barata. Estou aviado de prendas, mas quase deixo caí-las com tanto movimento agitação, alucinação até. Cristiano Ronaldo é deus do negócio, cara e corpo estampados em mochilas e até tapetes, como se o sue nome pudesse oferecer a quem pisa uma fracção do talento dos seus pés. Descobrem-nos portugueses, "Ronaldo, Ronaldo, Europa" mais do que uma vez e repetindo, atravesso e fotografo, não consigo ser turista simples. Os recantos descobrem-se, um lado escondido do mercado revela-se e quando da sombra dos toldos vejo a luz do sol, a parte dos ferreiros revela barbas simpáticas, abertas, solícitas, convidativas. Todos são de todos, entendem-se e vivem, sou apenas mais um corpo que tão simples atravessa e existe com um tempo limite neste deserto de grãos de areia que são gente e cujo vento sopra em todas as direcções em afecto e resolução do mistério de choque de culturas, que não só não chocam como dão o agradável choque do clique.

Depois de comprar souvenirs gastronómicos (chás para a Raquel, especiarias para a Joana), cruzo-me com um vetusto e desenrascado senhor que carrega para um carro de mão dezenas de pães redondos. Entre a minha fotografia e um sorriso forçado que aprendi a armar para completo desarme de quem fotografo, sou surpreendido pela genuína simpatia deste quirguiz, que me estende um estupendo e apetecível pão. Quando procuro a carteira para pagar, nega, gesticula que não, ri-se e aponta para a minha barriga. "Está com fome", pensa e eu leio e estava mesmo. Entre mim e dois que me acompanham, vamos partindo pedaços e comendo, depois de profusamente agradecer a um santo vulgar. Nunca comi pão tão bom nem que me soubesse melhor. Tão sincera foi a oferta que senti na minha boca despertar toda a verdade, de falar sem medo, de simplesmente ser sem me mentir. O pão fez-me olhar para toda a experiência como aquilo que era: uma viagem, como a que fazia, como a que me carregou em ombros ao mercado. O mundo são pessoas em translação e eu apenas estou aqui para me deixar levar; e ainda com meio mercado para destapar, foi exactamente o que fiz.




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