sexta-feira, fevereiro 17, 2017

As linhas que o destino me escreve


Lembro-me que tinha uns 13 anos, talvez, e tudo começou com blocos de folhas de linha. Na escola, a professora de Língua Portuguesa decretara que todos os períodos devíamos escrever um texto subordinado a qualquer tema que quiséssemos. Porque os números nunca quiseram nada comigo, virei-me então para as letras, uma vingança sanguínea escarlate e começou aí então uma saga que duraria toda a minha vida: o Bruno agarrado a cadernos e papéis, de caneta em punho, traduzindo para o plasma branco mundos e palavras e aspirações e desejos e ocasionalmente tornando real, em frases, o que não conseguia iludir-se de julgar possível na própria realidade. Aquilo que se iniciou por um garoto, no seu quarto, colando as influências do que via e lia, gamando a séries e filmes conceitos apenas para refundi-los noutro enquadramento (aquilo que Tarantino faz e o eleva a demiurgo para alguns) chegou hoje a um homem adulto - em idade - destilando para o mesmo vazio todas as ervas daninhas que lhe trepam os muros da cabeça, as sebes do coração, a abertura da boca que deve explodir na ideia e acaba sempre por canalizar o estalo para o meu amigo mais fiel: a Escrita. Assim, com maiúscula.

É irónico que alguém como eu, que granjeou entre os seus mais próximos a fama de artífice das palavras, sinta a dificuldade de expressar o quão fundamental escrever é para mim. É no geral desconhecido que eu sou, na minha raiz, uma pessoa tímida e adversa a revelações e aproximações e a minha existência define-se basicamente como uma pessoa que vai caindo aos trambolhões por uma escada abaixo enquanto respira, enquanto procura qualquer tipo de corrimão para se deter e nem sequer sabe onde encontrá-lo. Escrever foi, desde muito cedo, a minha maneira de contactar a realidade e defini-la, o meu canal para os outros, a expressão do que sou e sinto quando a única coisa que consigo fazer com a boca é desesperar e por resultado agredir outros. As fantasias são o primeiro patrão da criatividade e alimentei-me sempre das minhas, a principal a de que conseguia admiração alheia através da minha caneta, fazendo rir outros com trocadilhos de filmes, levá-los a redescobrir-se em reflexões lidas à fogueira de um acampamento, trocar ideias sobre o mundo em suportes digitais ou tão simplesmente atalhar através da minha timidez em conversas ao longe com objectos de desejo e pulsão feitos femininos. Palavras, para mim, sempre significaram estar mais próximo, até de mim mesmo. As folhas e os ecrãs solitários são o meu mais longo e original psicólogo, teias de mim e das ideias em análise e levando-me a uma loucura aceitável e perigosa, mas também a elogios alheios e lágrimas de outros quando consigo cristalizar isso num raro texto quase perfeito. Quando penso em mim estendido na cama, com uma caneta azul, roubada ao meu pai, em punho, levando por vezes a minha mãe a questionar-se sobre o seu filho mais velho e o que raio a cabeça lhe ditava e tornava, vejo como esta minha relação com as ideias em frases atravessa todos os grandes momentos da minha vida, de como só consigo que o mundo seja mundo quando o puxo para a intimidade de um ponto final. De como muitas das pessoas que me preenchem foram puxadas por esta minha habilidade, de como criei nelas uma ideia de mim através desta projecção hipnótica que é a navalha gramatical que entra fundo na pele e causa as feridas mais lentas.

Por isso, enquanto os meus conhecidos e amigos me viram apenas desfilar uma caneta algures, na verdade estendia-me e mostrava-me, e acreditem que já escrevi em todo o tipo de locais, desde paragens de camioneta em Espanha até yurts no Quirguistão, desde falésias Algarvias até rochedos beirões, na privacidade do meu quarto e no espaço público de todo um grupo rindo e vivendo enquanto que eu, num canto, só pareço conseguir disfrutar da realidade em colocação distante da mesma. A ironia daquilo que me faz viver duplamente, que me esguicha alegria quando é tudo, também me torne um bocadinho de nada por me confortar na falsidade da ilusão. Se escrevo, vivo, mas também não vivo. Paradoxo das letras. Já fui muita coisa como escritor, ganhei dinheiro através disso, já me enganei também e enganei outros, já conquistei e fui arrasado pelo que coloquei em palavras, até escrevi um livro partilhado, já fiz delas quase tudo. Para além dos números, a sua escrita foi uma forma de contornar também as duas mãos tamancos que possuo e me tornam imprestável nos trabalhos manuais. Mas hoje, de máquina em punho, também isso foi corrigido e fico apenas com um único motivo para escrever.

Dois, se quero ser justo, Um deles sou eu, realizando-me por intermédio desta expressão, procurando respostas e indagando, chegando até a amar com palavras, se tal é possível, fazer delas carícias à distâncias, beijos gráficos e explícitos, a declaração máxima e transparente de um vulcão que treme na sua insegurança; a outra é quem lê e quem procura, quem espera por mais de mim, quem pára porque tem uns minutos, quem se mostra curioso e num exercício de voeyeurismo, espreita as minhas cortinas e tosse com o pó. É para esses que, de quando em vez, decido não lidar com a realidade de frente e opto por uma rotunda em forma de teclado. Escrever é muito isto também: inventar qualquer coisa pela qual vale a pena acordar no dia seguinte e simplesmente tornar-me numa espécie de alquimista das minhas imperfeições. O que lêem aqui é sempre a minha versão da pedra filosofal: bruta como só as pedras, mas com aquele bocadinho de esperança de quem transforma o seu chumbo em ouro e julga que está para durar.

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