segunda-feira, abril 03, 2017

Fixar-me


Viver no nenhures do Alentejo exige uma certa disciplina de espírito: estar solitário é um dado adquirido e nos tempos livres, torna-se essencial dominar duas artes quase milenares: a vivência connosco mesmos e saber preencher o tempo de forma a não criar raízes no tédio. Ao longo da minha vida, sou mais artista de uma do que de outra, mas nunca mestre absoluto em qualquer uma delas. Sabermos estar com a nossa companhia é um exercício complicado quando o “eu” tem a inquietude mental de um esquilo rodeado de avelãs e, como é meu apanágio, um dom fulminante de dar ao chicote sobre o meu próprio lombo mental. Ao contrário de certos mitos que se espalharam entres os meus conhecimentos, a minha convivência comigo,nunca pacífica, pauta-se por um respeito pessoal e uma incapacidade de me aborrecer quando estou sozinho. As minhas ideias são por norma tão idiotas e descabidas que passo metade do tempo a matutar sobre elas e a outra metade interrogando-me sobre onde a sua origem. Assim se passam horas que de engraçado têm pouco, mas de fascinante são camiões TIR em tamanho. A guerra que ocorre de mim para comigo nunca me impede de reconhecer que o meu cérebro é das melhores coisinhas que tenho e colocá-lo a trabalhar é ao mesmo tempo perigoso e de enorme gulodice. Sobrou-me assim cá em baixo arranjar um hobbie para me entreter. A escrita estava fora de questão, pois é demasiado importante e medular, demasiado essencial e sanguínea para encará-la de ânimo tão leve. Ainda assim, surgiu há uns anos na minha vida algo que se desenvolveu e entranhou e tem funcionado melhor do que qualquer meditação transcendente ou yoga.


Ora, não me recordo quando comecei a levar a Fotografia mais a sério. Terá sido antes de adquirir a minha actual máquina, uma Nikon D3200 que embora modesta nas suas ambições, já permite umas brincadeiras. O prazer que retiro na construção de uma imagem podia perfeitamente ser imputado à minha paixão pela 7ª Arte, mas reconheço lá na profundidade dos motivos, quase numa vergonha pública, que o principal motivo se deve ao facto de ter como mãos um par de tamancos de madeira e não poder, assim, desenhar ou fazer qualquer coisa de criativo com as mãos. Como tal, virei-me para a outra forma que conhecia de criar desenhos, mas da vida real. De pequenas máquinas digitais passou-se a algo mais sério, tentando convencer-me de que sabia fazer alguma coisa com aquilo e a pouco e pouco, sem estudar técnica fotográfica ou regras de composição, fotografar passou a ser algo tão natural e presente que o meu estojo fotográfico vai sempre comigo em viagem, não vá eu cruzar-me com um daqueles cenários únicos e fascinantes que ficam bem imóveis num formato digital para dezenas de likes no Facebook. É certo que elogios nas redes sociais também contribuem para que me convença a continuar, mas acima de tudo há dois motivos pelos quais fotografar se tornou numa recorrência regular.


O primeiro é a abstracção que me causa quando me encontro apenas eu com a paisagem. Invariavelmente é a paisagens que me dedico: a minha falta de jeito para lidar com pessoas transferiu-se também para a sua captura no jogo de espelhos da máquina. É aí que a luz penettra e fixa as imagens e está visto que eu de luz tenho pouco, sou mais negrume e breu e na verdade a minha fé nas pessoas tem diminuído recentemente, o que também não ajuda. No entanto, e como na vida, quero muito acreditar que consigo também apanhar a essência de alguém numa imagem e não desisto.  Olhar o mundo como ele é, no entanto, é o meu ponto forte: o enquadramento, a composição, jogar à apanhada com a luz apenas para vê-la esvair-se por entre as minhas mãos transforma o simples acto de ver a paisagem por um quadradinho pequenino e tolo numa meditação sobre a vida e num ponto de fuga a mim mesmo. Calculo números, testo luminosidade e sombra , em pé ou de joelho à profissional, agora a verticalidade e depois a horizontalidade, tudo isto que se segue à atenção que os meus olhos dedicam a um pequeno instante do mundo que passou e fica firme, esperando que na minha paciência me dedique a jogar xadrez com o mundo. Toda a vida me programei para uma relação visual com montanhas e altitude e tal é algo de pouco abundante na paisagem alentejana. Sair em safari fotográfico aqui pelo sul é desprogramar-me e aprender a gozar a planície, apreciar uma luz diferente e a redescoberta do gozo que a profundidade pode trazer a uma fotografia. Vai-se do mar ao campo e há razões em todo o lado para dar dedo, pede-se apenas atenção e uma oportunidade de experienciar novos cenários e belezas. Não é fácil, mas se me quero distrair aqui por baixo, insisto e já levo que mostrar.



O segundo é o meu apego ao espaços abertos e livres, ao convite da estrada à frente de um volante, à acção de duas pernas que abrem a boca para engolir a terra. A máquina fotográfica é a maneira de contar a história sem impedimento de gramáticas e pontuações e embora seja mais fácil trazer o fascínio em frases encadeadas ao ritmo de quilómetros, uma imagem vale não só mais do que mil palavras, mas também cem espantos. Soltar um suspiro fotográfico é devolver ao mundo um obrigado egoísta e se fotografar é, acima de tudo, negociar com a luz, lidar com ela, domá-la para que nos oferte a imagem que queremos, é acima de tudo uma homenagem ao mundo, a vénia de reconhecimento que algo é tão esplendoroso e dominador, tão rei de nós e tudo o mais que queremos levá-lo connosco sem poder. Nas paisagens do Alentejo, perco a minha mente e vou aprendendo a construir uma ligação a este novo canto do país onde sou, e serei sempre, um estrangeiro. Sento-me às vezes no Nada dos chaparros e dos montados, escutando os pássaros e o silêncio, olhando sem obstáculos uma distância sem fim, sentindo-me regurgitado por um ambiente que não é meu, mas que pedi emprestado. Quando o fotografo, roubo-o. Sempre gostei de me sentir transgressor e em calhando, é com a máquina que, feito rebelde, irei desaparecendo no calor das cores do Alentejo, na clareza do céu, nas filas de sobreiros que tombam e murcham na sua copa, em protesto contra o esquecimento que a esta zona foi votada. O meu único trabalho e ajuda é guardá-los numa câmara escura, para que todos saibam que existem e que também eu vou vivendo, ocasionalmente, abaixo da linha do Tejo.

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