segunda-feira, maio 01, 2017

Explicações


A função principal de um professor nem é pegar num programa elaborado por nem sabemos quem (e que tantas vezes está incompleto e desinformado, naquilo que à História diz respeito), nem meter garotos na ordem. Se eu fizesse da minha vida debitar factos e lições a pessoas à minha frente, ficava-me por Coimbra e continuava assim na minha saga de perder amigos a cada revelação de uma trivialidade aborrecida. Numa sala de aula, está sentado um punhado de jovens alienados, que hoje em dia, e cada vez mais, parecem prescindir do bom senso. Vocês notam isso também, principalmente em adultos: a estupidez desloca-se galopante e parece não haver solução para resolver este problema. Podem falar de doenças, fome, do aquecimento global, das claques de futebol, da maneira como as pessoas hoje em dia se tratam umas às outras como rodapés e objectos (e na verdade, esta última parte será intemporal e não me parece que mudará, porque enquanto existirem humanos, a crueldade sentimental ainda que inconsciente, será uma presença... chamem-me pessimista, mas é o que é), mas tudo tem origem na grande semente da estupidez. Dois cientistas norte-americanos publicaram um estudo, na passagem de século, que quase inaugurou uma nova ciência, a "estupidologia", defendendo que não só estamos a ficar mais estúpidos como também tal fenómeno nos impede de ver o quão estúpidos estamos a ficar.

Entre jogos de Baleia Azul (mas que nome idiota para um desafio suicida, hein?) e gente que acha que as vacinas não resultam - ou que são prejudiciais - , passando por um mundo em que narcisistas chegam a presidente, o racismo é aceite como normal e a incompetência um requisito necessário para se ser bem sucedido, principalmente de mão dada com a obediência cega, ser professor, para mim, passa também por aplicar aquilo a que chamo chapadões noticiosos. A miudagem é nova e a inconsciência quase faz parte dos pré-requisitos para se sobreviver ao 3º ciclo, mas não é estúpida. Pode ter a densidade de sofá-cama, mas se puxarem pelas suas cabecinhas, certas coisas percebem-se. Há que confrontá-los com a realidade e não mascará-la e o que vejo em todos estes problemas é que os papás não se dão ao trabalho de parar cinco minutos e explicar o que está certo ou errado. Pelo menos o que é importante. No meu primeiro encontro com os pais, fiquei surpreendido por ninguém ter pestanejado quando se depararam com um semi-homem responsável pelos seus filhos. Sou o professor mais novo da escola e ainda tenho uma diferença de dez anos para o seguinte. No entanto, à medida que ia entregando notas e tentando fazer alguns perceber os motivos das mesmas, deparei-me com dois tipos de educação: o cobertor e a janela aberta. Na educação de cobertor, os papás, tomam conta de tudo na vida dos filhos e querem saber à minúcia a totalidade do que se passa: perguntam não só sobre as nota,s mas sobre as aulas, os métodos, o papel da directora da escola, se eu respeito os penteados das crianças, porque é que a Xana Tok Tok não pode vir das umas aulas de vez em quando, se não tenho um cinto melhor para prender as calças e que ainda posso ficar sem ver televisão uma semana se não me portar bem. Uma das mães, juro, quis saber, passo a passo, o que faço na aula com um dos filhos (tenho ambos os tesouros na minha direcção de turma...) em todos os pormenores, desde a maneira como falo e explico até ao controlo que tenho sobre a sua atenção e trabalho. Para equilibrar a balança, a educação de janela aberta é aquela em que um pai não aparece porque não lhe apetece ou quando aparece, nos diz "Eu nem quero saber das notas" e lemos-lhes nos olhos que a escola é um local para passar o tempo e impedir que os moços e moças chateiam as suas cabecinhas. O professor é uma espécie de polícia e no fundo, se algo acontecer, a culpa é sempre nossa. "Mas porque não lhe deu uma lambada?", ouvi eu numa experiência anterior noutra escola e que posso eu responder a isto sem perder as estribeiras?

Não está nos meus planos ser professor para sempre, mas é também por estas coisas que levo muito a sério o meu papel de abrir mentes. Pelo menos esses. Há certos princípios de que não abdico: o fascismo é mau, não utilizarão palavras racistas na minha sala de aula ou teremos problema, a vacinação é essencial e nem venham cá questionar isso, a vida é um valor universal (duas aulas que dei recentemente sobre o Holocausto foram de tal forma esclarecedoras que no final, alguns alunos estavam com cara de quem me queria vir pedir desculpa pelo evento, e nem tinham estado envolvidos) e apesar de alguns maus da História serem de facto maus, os "bons" não o são tanto quanto isso e aquilo que se varre para debaixo no tapete e não aparece em manuais de História é posto à luz do dia por minha indicação. Para além disso, neste terceiro período, uma turma minha começou a ter aulas de cinema na aula de direcção de turma que têm comigo todas as semanas. Aprenderão conceitos técnicos e narrativos básicos e ainda verão um filme a preto e branco (a saber, "Casablanca"). Eu recuso-me a acreditar que é impossível parar a vaga de estupidez que varre o mundo de uma ponta à outra, que jovens não entendem certas noções da vida quando lhes são explicadas, que é normal amar a mediocridade e conformarmo-nos com isso. Penso em mim mesmo, em como fui incapaz de melhorar-me durante anos, caindo em padrões que me magoaram, repetindo e mantendo pessoas que por muito bem que saibam e que aqueçam e que brilhem, são apenas dor e entulho nos meus dias e se não me consigo aperfeiçoar ao ritmo que quero, ao menos que possa intervir em vidas alheias e deixá-las, pelo menos, um bocadinho mais conhecedoras. Não quero que a estupidez vença, nem a de pais e muito menos a de filhos que aqui em baixo, mais a sul do que qualquer norte nacional, se parece saber tão pouco acerca de certas coisas boas da vida.

Na semana passada, numa aula, mostrei-lhes o duelo a três do filme "The good, the bad and the ugly", logo depois a explicar-lhes o brilhantismo do famoso corte de edição do osso do filme "2001". A aula tinha acabado e ninguém reparou (e estes miúdos estão sempre a olhar para o relógio). Estavam presos a um filme de 1966, um western sem particular acção ou frenesim, queriam saber o que se ia passar. Vi-me obrigado a quebrar o encanto e fazê-los sair da sala. Na verdade, a estupidez só prolifera e se espalha porque não a paramos. As pessoas querem saber e conhecer, mas se não forem orientadas e aconselhadas, é normal que acabem nos locais errados. No meu pequeno quintal de 60 alunos, uma parcela minúscula na imensidão do mudo, isso não acontecerá. Porque não deixo, porque não quero; e quando uma pessoa não se controla a si mesmo, que pelo menos controle os outros. É um dos poucos benefícios de sermos imperfeitos por natureza.



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