terça-feira, junho 13, 2017

Listas pequeninas


No grande esquema das coisas, o esquema das coisas grandes passa-me um pouco ao lado. Os objectivos maiores da existência de uma pessoa, aquilo que compõe os sonhos da gente comum, fogem-me como uma maré que recua à boca do mar, devorada pelo ciclo da Terra. Como tal, a tarefa de abrir os olhos nas manhãs e convencer-me a sair da cama é hercúlea e não poucas vezes um exercício de negociação entre, pelo menos, uns quarenta sete pedaços da minha mente. O acordo é complicado, mas alcança-se e as partes que defendem, fincando os dedos dos pés na terra ocre do meu cerebelo, que nada vale a pena, que deambular pelos dias respirando e apanhando com os estímulos do mundo nada mais é do que uma antecâmara do inevitável, são convencidas por um pequeno conceito, uma artimanha digna de um Ulisses anímico, que construí para derrubar as muralhas resistentes da dúvida: a importância do subtil e do discreto, da poeira que polvilha na estrada dos nossos dias o barulho das solas crocantes, os momentos pequenos que tantas vezes passam ao lado como órfãos da nossa estima. Parece que têm asas e nem as agarramos e vamos a ver, se passarmos num crivo os nossos instantes diários, estão ali como cola que segura a encadernação de um livro maravilhoso e de preciosidade superlativa. Agarro-os. Sei-os, conheço-os e cá em baixo, empurram-me no calendário.

A brisa do fim de tarde. As estradas longas onde solto o carro nas minhas mãos, o volante como uma lente com a qual absorvo um transe mediúnico que me põe em contacto com os fantasmas do prazer da estrada. O sorriso de garotos depois de uma piada solta a correr pela sala, rodeando-lhes os pés até à cabeça. Caminhar entre os campos, o sol transformando-os na maior mina de outro a céu aberto deste lado do Guadiana. Os meus ritmos, as minhas horas, as minhas escolhas numa casa onde pairo e navego à deriva boa das vontades impulsivas. Receber um "boa tarde" de toda a gente pela qual passo. Viagens de comboio que embalam a mente revolta num berço de estática. Praias desertas, mergulhos num mar sem ninguém, secar e voltar ao mesmo. Uma fatia de gelado depois do jantar. Ver o John Oliver à segunda-feira enquanto janto, num ritual que se repete. Pôr leituras em dia estendido na cama, encaixada num pequeno quarto que é tão literário quanto as páginas. Fechar a porta e sentir a chave no bolso antes de ir para a escola. Dançar sozinho na cozinha enquanto preparo uma refeição, sem julgamentos, sem me esconder. Ouvir chamar "Professor!" no recreio da escola e ouvir a pergunta mais idiota de sempre, todos os dias uma diferente, e querer rir mas não podes, só na sala dos professores. Auscultadores nos ouvidos no meu percurso para o local de trabalho. O sol das manhãs que começam às oito e tal, tímido e ainda frio, mas tornando a violência do despertar em algo de aceitável, como um regaço no qual me instalo para ser sussurrado e amado. A observação dos hábitos de gente diferente, num contexto removido do meu, aprender a ver o outro em perspectivas que não são minhas. Podcasts em ladainhas. Buscar as toalhas penduradas no terraço, o calor lambendo-me a pele com a ponta Fahrenheit. Pés no mosaico frio em tardes de Verão. As expressões de admiração depois de revelada uma informação mesmo incrível. Sentir-me em paz na solidão, mesmo que morda algo aqui dentro, um lobisomem insatisfeito que mais parece não querer lugar algum para voltar a ser homem.

São alguns dos meus berlindes, estes. Cheios de cores, encerrados em cápsulas de vidro, brinco com eles sempre que a ocasião se faz ladrão do meu bom humor. São uma ignição cuja chave guardo com firmeza dentro de mim, atrás de certos retratos de certas pessoas em acertos constantes. Metrónomos do ímpeto, agentes secretos na espionagem do meu relógio de humor, armas de arremesso fundas em estilhaço. Mantêm-me à tona, flutuando num alentejo com o mar longe, mas um oceano permanente onde manter.me à tona é o prazer no final de cada dia, quando me deito, quando sei que o sono tarda, mas que passou mais um desafio. Ganhe ou perca, é meu e o maior prazer é esse: a posse de mim e do que sou. Para dar a mim mesmo e a quem mais deseje receber uma prenda embrulhada de surpresa.


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