quarta-feira, julho 12, 2017

12 de Junho


Soube da morte do meu pai três horas depois de ter estado com ele. Não sei se estranhei ou encolhi os ombros, não notei nada de diferente. A particularidade do padecimento de uma doença prolongada, longa, lenta, que age como um ladrão a longo prazo que vai tirando e tirando e tirando sem que se note sempre muito, mas que em pouco deixa uma pessoa sem nada, é que nunca há crises constantes. Acontecem de quando em vez e respira-se, fala-se quando se pode, mas morre-se, morre-se assim a vista de toda a gente mas escondido por dentro, uma toupeira que rói e esburaca e cada túnel invisível conduz a uma cova. É muito isto. Não vos sei dizer se havia algo de particularmente agourento no seu aspecto da última vez que o vi. Acho que não. Nos últimos dois, três meses, as diferenças são subtis e mais notórias para quem não está envolvido. Eu estava, embora passasse o tempo todo a dizer que não, até a mim mesmo. Foi por isso que quando recebi a fatal notícia, a minha primeira ideia nem foi chorar ou cair em mim. Pensei nos pormenores do funeral, de quando seria e dos horários, de quem viria, se muita ou pouca gente, da necessidade de preparar, de ajudar a minha mãe, que levou com a lambada bem mais do que eu, de estar ali. Sou uma pessoa depressiva por natureza, mas funcional, mesmo nas minhas covas mais côncavas. Assim reajo, assim vivo. Mesmo com o meu pai morto.

Rapidamente apareceram alguns elementos da família. A minha retirada de cena foi célere e já no sótão, a dois andares de tudo, cumpri uma promessa: por esses dias, eu e a D. estávamos naquela fase de ocaso que caracteriza a passagem de quarto minguante para Lua Nova. Nunca percebi muito bem o que se passou. Acho que nem ela, mas com o tempo entendi que as pessoas são assim muitas vezes, não se entendem, nem a elas mesmas, e depois é difícil entenderem-se com os outros. Éramos ambos inteligentes, mas não para aquilo. Ainda assim, o que nos faltava em entendimento sobrava no carinho que mantínhamos mútuo, um vapor tépido, e ela fez-me prometer que se algo de decisivo acontecesse, ligar-lhe-ia. Ora, a ocasião parecia pedir a minha lealdade. Do outro lado da linha, alguns segundos de silêncio. No tempo em que estivemos juntos, abri-lhe este lado da minha vida, conheceu o meu pai, acompanhou-me, susteve-me até. "Queres que vá já hoje? Saio do trabalho às 2.00". Não, era melhor não. À janela, olhava para o céu e as estrelas pareceram-me um pouco baças quando ouvi isto. "Vem amanhã de manhã, espero-te na estação". Se estava bem? Disse-lhe que não sabia, e era verdade, a dormência é elevada nestas alturas. Não desligou antes de me tentar confortar, de sentir em cada letra um beijo, em cada palavra uma cama onde nos podíamos encostar um ao outro e sentir que no mundo havia algo de bom.

Na manhã seguinte, a notícia já se espalhara. O meu pai morre a 12, o funeral é a 14 e 13 é azar, não só porque é o primeiro dia em que o meu pai não está de facto, mesmo lá longe, mas porque há muito mais gente que, não vindo substituí-lo, lhe ocupa o lugar com as memórias que traz. Já fui a vários velórios. Sei que o morto se recorda com histórias e gargalhadas, com alguém que traz mais um "Lembras-te quando...?". Ali, a justiça divina foi questionada várias vezes, para depois ser assentada como existente, que não vemos os desígnios de Deus, que este escolhe maneiras de testar os seus seguidores e senti vontade de testar a estabilidade e graça da minha mão nalgumas faces. Decidi ir buscar a D. Encontramo-nos, não sei bem como reagir. O que somos? Ela abraça-me: sei que o que somos é muito menos do que amamos e basta-me. O abraço é longo, queremos chorar ambos mas não ali. A minha mão é agarrada e só será solta no fim de tudo. No regresso a casa, vejo já imensa gente: vizinhos, antigos vizinhos, antigos colegas, gente que conheço desde criança. A D., para todos os efeitos, é apresentada como minha namorada, porque já há complicações a mais entre vivos e mortos. Ao longo do dia, e antes da chegada do corpo do meu pai, a minha casa é invadida por pessoas que sofrem e outras que querem sofrer, mas não sabem como. Vi homens que habitualmente transformam o mundo no melhor dos espaços através da sua boa disposição com ares tão cabisbaixos quanto um pântano cheio de algas. Encostados aos muros e às paredes, sustendo o sol, tentando fugir da realidade tomando para si a responsabilidade de tudo: contactar pessoas para informar que o Vitinho morreu, ajudar a coordenar o funeral com a minha mãe, pondo-me a mão pelas costas porque já me viram com um metro e menos, porque o meu pai fez parte da vida deles mais anos do que da minha, porque o conhecem sempre e agora foi-se, e eu sei que se foi e não nego nem fujo, mas a morte é sempre uma coisa tão natural e fluida, como um ar que nos dá e que se deu, como um momento de transição para nenhures.

As horas de velório são uma viagem surreal ao meu interior. Quanto mais pêsames me dão, menos me pesam. Adopto gestos maquinais, frases cliché, aceito os outros, que conheço na maioria, como estranhos que não vejo de momento. É um cortejo de espelhos foscos com a mesma cassete. No caixão aberto, o meu pai, de olhos fechados, dorme, mas não ressona. A D. está ali e não foge, mesmo quando uma e outra vez tem de falar e estar com gente que nem nunca viu na vida, nem voltará a ver. Quando me sinto a desfalecer de tédio, de sair dali e não estar, os olhos dela garantem-me que é ali que estou como devo, com ela ao lado, e de repente o que resta do mundo que conheço tolera-se, com algum contra-gosto. Não me recordo da maior parte das pessoas, se vou ser honesto. Sei que aceitei muitos sentimentos, ouvi muitas queixas de como tudo era injusto para o meu pai, de como só me apetecia arrasar a capela e gritar a todos que sim, que era injusto, que vi gente ali cuja perda não pesaria tanto, de que foda-se, o meu pai nunca esteve doente a vida toda e está uma vez e morre e que mundo é este onde a única coisa que todos querem fazer é estar e sentar e encolher os ombros porque a vida é assim? Tem de sê-lo, tem, temos de assobiar descansadinhos e numa sentença de morte levar ano e meio a sumir e encher assim um espaço de gente que sente falta? Não, não devia ser! Mas amigos antigos surgem, a L. abraça-me sem dizer palavra, num repelão como se quisesse levar-me dali e a mão da D. não larga a minha e no meio de tudo, de todo o luto e da perda, de quem chega e diz baboseiras, de quem chega e sabe que palavras colocar para que eu não caia num buraco, no meio de tudo, no meio de tudo isto a sua mão é o meu mundo. No meio da morte, é um pouco de vida; e o meu pai não me fez para estar morto enquanto respiro.

O momento mais doloroso desta experiência, para mim, foi o fecho do caixão. Nas semanas seguintes, pensei em como a imagem e a forma, o corpo e os olhos, são de facto o que nos liga ao mundo. A tampa cai e o meu pai deixa de estar visível. O meu irmão, que passou dois dias a enganar-se e com um ar fleumático, numa resignação de que sabe o que espera porque a vida está mapeada e segue determinados trâmites, cai por fim. Chora desalmado, lágrimas que salpicariam as paredes se ao menos ele deixasse e abraça-se instintivamente a mim, um fenómeno cuja ocorrência só pode ser comparável a uma decisão sensata de Donald Trump ou a Marcelo Rebelo de Sousa negando-se a uma foto. Eu choro também, um pouco porque o momento me bate tão fundo quanto uma bomba atómica detonada em profundidade, um pouco porque não deixo o meu irmão mais novo chorar sozinho. Carpimos ambos e é verdade, ele não volta. É real por fim, andámos a enganar-nos. A minha missa é passada em estoicismo, procurando pormenores de uma igreja que conheço de trás para a frente, pois uma boa parte da minha vida está dentro daquelas paredes. Só quero fingir que não estou ali. Noto que o espaço está tão cheio que gente ficou de fora. É uma segunda de manhã, atentem. Acho incrível e de certa forma surpreendo-me. A minha relação com o meu pai não foi próxima. Não me estou a queixar, às vezes é assim quando as incompatibilidades se amontoam. Mas era meu pai, claro, e ver tantas caras pungentes, pesando em si o momento numa perda inconsolável, suspiros sérios e olhares líquidos, memórias que não se perdem e só ganham substância na certeza de que são tudo o que sobra quando não há nada mais, conforta-me de alguma maneira. Catrapisca-se no enorme radar da existência, mas deixa-se marca. Não dá para a imortalidade, mas é um feito e conhecendo de onde veio aquele que me fez a meias, garanto-vos que é uma vitória sair do mundo quase em ombros.

O funeral foi o que foi. É o fim. Gente vem do nada para chorar comigo, gente que se aproxima e ainda hoje é próxima. Passaram três anos desde que recebi aquela notícia. Do alto desta torre, espreito então esse 2014 e ainda o sinto como um atropelo. Não me recordo de ter tido um ano tão intenso em toda a minha existência, em esplendor e ruína. Nunca mais fui o mesmo depois, em tudo. Quebrei regras pessoais, estiquei os meus limites e ainda hoje envergo um guarda-chuva de amianto, para me proteger da chuva nuclear resultante. Há muito mais histórias em 2014 e se a curiosidade vos espicaçar, sugiro que leiam o que está para trás nesta ilha e tentem decifrar. A D. esteve comigo até ao fim, mesmo quando criámos esses mesmo fim para nós. Sinto que passei por estes momentos de perda com os seus ganhos, pelos pingos do aguaceiro por sua causa e nunca me esqueci que apesar de se parecer tantas vezes com a tômbola do Jogos de Santa Casa, o grande desenho da existência não é linear. A nossa maior dor pode oferecer-nos uma cura milagrosa e quando alguém desaparece, o buraco só fica se o deixarmos por tapar. Ainda que o sumiço seja o mais definitivo de todos. A D. doeu-me tanto, ainda me comicha um bocadinho às vezes quanto estou sozinho e sopro bolas de sabão invisíveis, mas aumentou o meu coração em escala macro. Nunca lhe agradeci isso, nunca lho disse. Talvez o leia aqui eventualmente.

Se for sincero, o meu pai não me ensinou assim tanto sobre a vida. Não porque não soubesse, mas porque não me sabia explicar. Nasci-lhe estranho. Fui a primeira criação e talvez lhe tenha saído mais do que a encomenda. Nunca percebeu bem o que era, apenas que não seria mau ou de deitar fora e passou o resto da vida, se não a tentar entender-me, pelo menos a garantir que nada se atravessaria no meu caminho de me entender também. Não sei bem o que pensaria hoje de mim, se me tornei em algo que ele acharia aceitável como pessoa, se lhe carrego a memória como devo, se não traio de alguma maneira a expectativa de quando lhe deram também uma notícia, mas a de que ia deixar de ser apenas marido e GNR, mas também aquilo pelo qual o tratei durante esta história toda: meu pai. Talvez tenhamos deixado muita coisa por dizer, mas se a vida fosse feita de finais felizes, ninguém queria lê-los ou vê-los. Sei que estou aqui e ele não. O mundo é um pouco pior por isso: não pela minha presença, que algures levará a alguém um certo conforto, mas não estando ele, fico sempre com a sensação de que os homens decentes nunca estarão completos. Por mais anos que passem e por mais bébés que nasçam, sinto que nunca o estarão; e essa talvez tenha sido a morte mais esmagadora desse dia.

2 comentários:

Unknown disse...

Que dedicatória tão linda primo… um beijinho grande

Lara disse...

"Gente vem do nada para chorar comigo"