quinta-feira, setembro 07, 2017

Sonho


Fez-se luz e quando os meus olhos escancararam o mundo, descobri que eras uma manhã. Umas horas antes, deste por ti como uma noite que me tapa e cobre e envolve e num fumo me preencheu o corpo tornado duplo. "Bom dia", e era uma observação óbvia, calma e, no gesto seguinte, rematada por um beijo. Lençóis azuis envolvem-te o corpo, deito-me ao lado do céu. "Sonhaste ontem?", e sim, sonhei, mas porque perguntas? "Resfolegaste bastante... Resfolegar, adoro esta palavra!", e o teu corpo contorceu-se um pouco nas rugas da cama, como se as tuas pernas dessem início a um rio imenso que rodeia as rochas com a corrente; e tentei lembrar-me do meu sonho, sabia que sim, que sonhara, quando tal acontece sinto-me sempre um pouco mais cansado, um pouco mais desprovido de jeito para lidar com os dias. Sonhos deixam nas margens do rio uma poeira fina, roliça na pele, algum ouro nos olhos. O pesadelo tornava presente aquilo que o roía lá dentro, aquele uivo crespado sem som mas total impacto, o nevoeiro ácido a pôr liquido nos juntas interna do corpo, era mesma uma dor sem forma, um fumo indefinido de gritos carregados como nuvens de chuva num céu de Inverno. Não se apresentava com identificação, apenas o habitava sem renda paga ou aviso. Nem conseguia recordar-se da sua entrada ou se eventualmente nascera com aquela tinta negra dos anos que passam, dos dias que estão, de uma divagação simples nos cantos do quotidiano. Pedras nas margens, um grosso calhau que obriga o rio a desviar o curso, capaz até de resistir à sua milenar e telúrica força. A dor é mais primitiva e original do que a felicidade, que é um dado adquirido da evolução.

O afogamento não se apresentava, mas também não refulgia nos seixos aquele raio de sol que por vezes encontro no sorriso daquela que me inquiria com olhos negros. Ajuda-me a recordar. "E como posso ajudar? Acaso sou filha de Orfeu?" Nunca, ora, Orfeu é o encantador de sonos e tu deixas-me bem acordado. "Talvez isto ajude" Os ombros descaíram um pouco e com um trejeito da tua cabeça, cabelos deslizaram sobre o meu peito, uma cortina onde se entrevê algo que só pode ser visível a quem se abre ao mundo. Ao teu mundo. Estranho ao início, mas que técnica pateta, mas cada fio de cabelo deixa em mim uma semente e o que cresce é a árvore da abstracção, como se da tua cabeça brotasse uma fonte, em tons de negra luminescência que me envolva novamente na minha inconsciência. "Oniris bate à porta. Já consegues abrir?" A carne lateja, um ligeiro formigueiro mergulha-me então num passado próximo e começo a dar corda ao coração, a regressar ao outro eu que se atreve fora do que é real e começo a ver, na luz que quebra os fios de cabelo em estrelas, um ponto de fuga. Escapo-me e o sonho regressa.

Estou num imenso planalto de estepe, onde tenho por única companhia um exército equídeo que pasta verde. Não é erva, é mesmo cor, e os lábios ficam verdes, o corpo também se malha no viço da cor. Perto de mim, um lago de margens defendias, uma fronteira entre o céu e esta terra que piso. A abóbada celeste é de berço e sinto-me tão bébé, como se renascesse nos grandes espaços, no brilho das águas, no tamanho impossível das montanhas nevadas que me rodeiam . Sou dominado pela ideia de já aqui ter aberto os meus olhos, mas fecho-me a essa ideia, nunca podia ter estado, lembrar-me-ia, como se alguma vez me esquecesse do que me faz ter vontade de abrir os olhos. No delírio onírico, caminho até à água e caio, sou submerso mas não me afogo. Um breve apagão e quando volto a mim, saio de um frigorífico, congelado, gelo verde como o viço das vacas, eu desenho-me vermelho do frio e despido despojado, encontro um par de pés. Um olhar não captura ninguém, apenas um contorno que apenas se define na sua incerteza. Bate palmas e na minha mão, um cofre engole-me e prende-me e sem chave, captura-me. Quero sair, bato e esmurro, grito e urro, mas a total liberdade dos grandes espaços encolheu-se sobre si própria. O tempo passa sem que note e aqui estou. Sou um dos que resta, e o cofre estreita-se num aperto e não sei como estou agora fora e na minha nudez a raiva toma conta dos meus músculos e rebento o estuque de uma parede branca com punhos encarcerados na dor e quando não sobra mais estuque há parede e quando não há mais parede, existes tu, a palma da tua mão.

E regresso a mim, no hipnotismo da curvatura que me sustenta e te dá graça, no cabelo que voltou ao sítio, num exército feliz que na tua boca alinha a paz no mundo. "Então, esclarecido?"; e claro que sim, puxo-te para mim, beijo-te a cara e os lábios, a ponta da língua no nariz e no queixo, uma boca que convida o teu peito a gemer por interposta abertura, e o teu sorriso como carta branca para tudo o mais, para me libertar num largo espaço. "Novo sonho nos espera, olhos abertos e consciência ao desafio" e o planalto tem o tamanho de uma cama e quatro pernas para correr até às montanhas e ao lago.

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