terça-feira, abril 17, 2018

Ilhas Far Away 17: The shape of water - baseado em factos verídicos


"The shape of water" foi o filme que tomou de assalto os Óscares deste ano. Para os mais desinformados, fala-nos da relação tórrida entre uma mulher e um peixe, que Guillermo del Toro embrulha em papel de fábula para que se torne mais facilmente digestível. Gostei muito do filme quando o vi, mas senti-me imediatamente roubado, sentindo que a ideia foi decalcada de uma experiência que tivera meses antes nas Faroe. Também eu fiz amor com um peixe, tórrido e intenso, lento e musical; ou melhor, o peixe é que fez amor comigo. Mais propriamente com a minha boca. Explicar é difícil, roça o complicado, pois apela a sensações que se vivem e se percepcionam com os limites do corpo.


Este romance começou no nosso penúltimo dia nas Faroe. Discutira-se na noite anterior uma noite na capital, dispensando o planeamento de uma refeição caseira na perda de amor a umas coroas dinamarquesas. Nada contra, as coisas são caras por aqui, mas porque não viver como um nórdico por um dia? O Paulo, que já conhecia as ilhas de outras andanças, lançou para a mesa hipóteses. Havia um restaurante de sushi que era muito bom. Os hipsters da gastronomia saltaram logo a terreiro, ansiosos por poder instagramar para a posteridade um um pedaço de nigirizushi. Eu no entanto, e apesar de já me ter aventurado na cozinha japonesa, herança de dois anos de Japonês na faculdade (para quê? Amigos, não se tem uma vida amorosa árida na adolescência só à conta da personalidade), não sinto que alimento nipónico me encha o estômago; para mais, penso, se estou no norte do mundo, que coma alguma coisa no norte do mundo. E o que se digere por aqui? Carne fumada, por exemplo, filhos da fermentação natural do ar salino destas ilhas. Muitos vegetais. Bebidas caseiras, acima de tudo cerveja; e claro, em arquipélagos há peixe com fartura. A segunda sugestão do Paulo ia nesta sentido. No ano anterior, um restaurante servira-lhe um divinal peixe. Carinho, óbvio, não estamos propriamente Caipira, mas valia a pena. Espaço agradável, junto ao porto, típica casa de pescador adaptada a repositório de manjares. Pareceu-me bem, e logo mais alguns também preferiram a aventura de encontrar o Nemo. Bem, não o Nemo, caramba, coitadinho do peixe-palhaço.


Na noite seguinte, vestimos o nosso melhor fato de treino e demos as caras nesse restaurante. Como se adequa a uma história de romance, tomou o nome de uma mulher: Barbara Fish House. Nada de carne, só pratinhos de criaturas marinhas. Desde o início que nos ficou marcado como uma boa escolha, pois fora difícil arranjar mesa. Fomos obrigados a marcar para as seis e meia da tarde, mas como o nosso almoço me fez lembrar aquilo que comia durante as caminhadas nos escuteiros, o meu estômago importou-se muito pouco e até agradeceu o regresso aos horários de refeições medievais. Para refúgio de comensais nórdicos, esta casa da Bárbara tem telhados estranhamente baixos. Eu, que para os padrões destes calmeirões louros estou ao nível do Fernando Mendes e de três quartos de "Os Trapalhões", roçava com a careca no tecto. O interior é de madeira, claro ainda assim, com as mesas que apertam quem passa. É um espaço pequeno, mas bem organizado e decorado, simples luzes colocadas nos pontos certos. Da porta de entrada, vemos a cozinha, tudo transparente para quem chega. Recebe-nos uma jovem loura, bem gira, e o Gil, um dos que nos acompanha, pisca-me o olho e diz: "Olha, mais uma. Elas seguem-te" e o problema é que elas só me seguem, mas nunca me apanham. Talvez tenha mais sorte com o peixe. Chama-se Agda, sorri sempre e conduz-nos a um andar de baixo, vazio. A mesa está encostada a janelas que dão para os barcos atracados e eu aproveito para me sentar num banco corrido almofadado. Ao meu lado, a Maria e a Manuela trocam impressões sobre o local. O menu chega-nos às mãos. Escolhemos entradas e uma sopa de peixe. Como prato principal, peixe, está claro. Todos optamos por algo que em inglês se chama "Marcelo's ocean perch", mas para nossa desilusão, o presidente de todos nós nunca surgiu para uma selfie.


A comida foi chegando. As entradas saíram num voo do prato para as nossas bocas e quando a sopa chegou, eu especulava o que conseguiriam estes ilhéus com coisinhas do mar. Maravilhas, aparentemente, e eu nem sou de comer sopa de peixe. O melhor, no entanto, estava guardado para a sessão de sexo que uma uma perca de amor me reservava. A atracção foi imediata: mal apareceu sobre a mesa, era óbvio que ia comê-la. A galdéria mal escamada também se pôs a jeito, surgindo aberta a meio, de pé para mim. Aqui em Portugal, os peixes são muitos mais conservadores: deitados na sua travessa, aguardam iniciativa, esperam que os viremos antes que a acção se inicie. Este não, vinha pronto e não me fiz rogado. Devorei pedaço a pedaço, faca e garfo como brinquedos sexuais, cada ida à boca um caminho para o orgasmo. Não fazem ideia dos espasmos que me provocou. Nem cheguei a perceber muito bem como foi preparado. Parecia frito, mas nem um pingo de óleo me tocou nos beiços, mesmo a aparência crocante nem era pão ralado, não sei mesmo. A acompanhar, umas batatas a murro pequenas mas substanciais no deleite, regadas com azeite em gel, salsa e algum alho, um pequeno molho adocicado que se aconchega nas bochechas e serve de lençol para o imbróglio sexual em que eu e o peixe nos envolvemos. É triste dizer isso, mas tive menos prazer noutras aventuras. A sociedade fixa-nos tanto no prazer sexual que nos esquecemos de que os nossos sentidos são, por si mesmos, uma fonte de prazer intenso e explosivo, um arrasador sismo de deleite. Pela boca morre o peixe? Mais pela boca o peixe me matou de exultação. Sobraram as espinhas ao vento da nossa saciedade satisfeita. Mas ainda havia a sobremesa, um quente frio de gelado e chocolate aquecido que deu o golpe de misericórdia na resistência de alguém que toda a vida se armou em esquisito com a comida. Séculos depois de terem terminado as suas viagens, os Vikings haviam conquistado uma das mais difíceis batalhas que pode haver no plano humano: a minha resistência à novidade.

Saí do restaurante não de papo cheio, mas de pulmões bem vazios de arfar. Todos vínhamos contentíssimos. A Teresa, esposa do Gil, comentava que não se lembrava de comer um peixe assim e eu não queria ter memória exacta do que acontecera, apenas aquela impressão de arrepio que só as grandes e fugazes paixões nos criam que um qualquer pormenor proustiano nos faz revivê-las. Depois disto, ainda acampámos numa cervejaria onde encontrámos o gang dos niponófilos. A meio da noite, um jovem faroês aborda-me e implora-me que peça a Cristiano Ronaldo que compre aquela ilha. Está bêbado, dá-me umas palmadinhas nas costas e tira um boné que usa (sim, num interior, à noite) e o nosso permanente herói nacional da bola também é de uma ilha, deve perceber que nos podemos apaixonar por um peixe que isso não é estranho. Na volta, aposto que também gostou do premiado filme de Guillermo del Toro que a minha noite de prazer inspirou.

1 comentário:

Gil disse...

Agora deste em crítico gastronómico? Muito bom Bruno. E o peixe também ficou na nossa memória, não só porque era feio como a noite mas também porque era absolutamente delicioso. Abraço