quinta-feira, setembro 27, 2018

Perugrinação 3: Manhã em Lima


Um bocadinho de contexto: fundada no século XVI, por Francisco Pizarro, Lima é um monstro de cidade, sendo a segunda maior da América do Sul e terceira maior de todo o continente americano (atrás desses dois berlindes chamados São Paulo e Cidade do México). Pasmem-se, que a mim aconteceu o mesmo. Tem praticamente nove milhões de habitantes e nem sequer existia quando o Império Inca dominava o espaço do país. Como calculam, não é fácil circular numa metrópole desta dimensão. Se já vos descrevi o movimento pela cidade de madrugada como um caos que se intui, imaginem o que é viver nela durante o seu período mais fervilhante. Existe tecnicamente um metro, mas apenas com vinte e seis estações, espalhadas por trinta e cinco kms,  e que não se aproxima sequer das maiores zonas de interesse pela cidade. O táxi podia ser uma alternativa, mas como todas as grandes cidades que são, em simultâneo, selvas não há exactamente taxímetros ou taxas: uma pessoa fala com o taxista antes de entrar e negoceia um preço. Se for aceitável, a coisa faz-se; de outra forma, ou há discussão ou o negócio nem se realiza. Se eu devia achar estranho? Sim; mas lá está, vocês leram as minhas deambulações na Ásia Central. No que toca a transportes, sabem bem que é preciso algo descabelado para me surpreender. Quase aconteceu, ainda assim; e a culpa é do "Combi". É uma espécie de autocarro, o resultado que aconteceria se pegassem naquelas cápsulas amarelas do Kinder Surpresa, as aumentassem cem vezes e fornecessem rodas. O nome vem da abreviatura para Kombinationfahrzeug, a designação original destas pequenas viaturas surgidas em Lima na década de 1950. Na altura, eram todas Volkswagen type-2, tentando resolver não só o crónico problema de falta de transportes públicos na cidade, como também o rarefeito espaço que é dado aos veículos nas ruas e avenidas. O nome alemão é de facto complicado, Combi soa melhor; e o efeito na cidade é notório, principalmente porque a eles se devem quase metade dos acidentes de viação em Lima.


No entanto, acabam por ser das minhas coisas preferidas na capital, porque funcionam de uma maneira incrivelmente patusca. Ainda o veículo não parou - e garanto-vos que não estou a exagerar no tamanho, é grande para carro, mas pequeno para autocarro e assim de cabeça, lembro-me de ver, no máximo, uns 20, 25 lugares de passageiros - e já um indivíduo sai. Que faz ele? Grita a todos o destino do Combi e faz uma publicidade colorida e com ginga: que é rápido, que é seguro, que é divertido, e assim inquire até transeuntes individualmente. Isto também acontece quando os semáforos avermelham e este corajoso personagem insiste em angariar mais clientes no exterior. É desenrascado e calcula na perfeição os ritmos da viagem. Od passageiros fizeram desta figura habito e nem viram a cara. Para além disto, serve também de bilheteiro e daquela vozinha que no metro anuncia as estações seguintes, alertando com volume e assertividade. No primeiro onde viajámos, o Ernesto, nome del hombre de combi, era também diplomata, pois quando soube que éramos portugueses, foi arrancando todas as referências lusas que possuía: Cristiano Ronaldo é o maior; os Portugueses descobriram o Brasil; Andrés Carrillo joga no Benfica! (Fixem o nome deste jogador peruano, pois só têm a noção do quanto Carrillo é popular no seu país natal quando andam pela rua e vêem dezenas de camisolas oficiais com o seu nome nas costas) Quer saber o que fazemos, o que achamos do Peru, porque apanhamos o Combi e nisto, o nosso intérprete é o Pedro, o guia da viagem que conhece perfeitamente o modo de vida peruano pois habita no país. Sempre que entras no Combi, a Cumbia segue-se, deixando toda a gente mais relaxada. Até mesmo malta velhota, e encontro bastantes, sorri e se mostra curiosa, embora não ensaie passos de dança quando nos aborda. Os peruanos, no geral, são simpáticos e já estão habituados a turistas. Lima, que não será de todo o principal destino turístico do Peru, não sofre de problemas que afectam outros locais mais focados pelo Turismo e tem, por isso, uma relação pacífica com os mesmos. O mesmo não se pode dizer do tórrido affair que os condutores da capital mostram com as buzinas dos carros. É quase pornográfico e digno de #metoo em bold. Começo a perceber que enquanto nós temos o Código da Estrada, Lima exerce o Código da Apitadela. Quando pretendes ultrapassar ou mudar de faixa, não fazes sinal: apitas. Isto vale para rectas, curvas e rotundas. Se vais parar ou abrandar na rotunda, dás uma guinada e apitas - por esta ordem; se pretendes alterar a faixa, o mesmo procedimento vale; e entre sinais com máximos e apitos, o trânsito em Lima circula e escoa, um pouco como os glóbulos metálicos da cidade. Em todo o tempo que pemaneço em Lima, não vejo um acidente. O que não é dizer muito: posso dizer o mesmo do Quirguistão e isso não é necessariamente uma recomendação de segurança.


Mas há razões para virem a Lima, para além do pitoresco. Se sobreviverem ao trânsito, sugiro-vos que procurem um restaurante. A cidade é considerada a capital gastronómica das Américas e come-se muito bem de facto. É regular encontrarem restaurantes daqui na lista dos 50 melhores do mundo e o facto de o país ser incrivelmente multi-cultural leva a que na sua cozinha se encontrem influências chinesas, portuguesas, creoulas, quechua, japonesas... Tudo misturado até mesmo nos pratos tradicionais, e destes o principal é o ceviche. É um jogo de risco com o nosso próprio estômago, pois trata-se de peixe ou outro produtos do mar como polvo ou calamares preservados numa solução de sumo de limão. Por isso mesmo deve ser servido o mais fresco possível, antes que dê raia. Acompanhado normalmente de batata doce, também pode trazer abacate - regozijem-se, novos vegans! - ou milho, algo que é omnipresente em toda a gastronomia sul-americana. Na prática, há muitas semelhanças com o sashimi japonês, ainda que as origens do ceviche estejam localizadas numa civilização pré-Inca chamada Moche, que não consta que conhecesse o rock ou que comprasse pacotes de chamadas à antiga Telecel. O prato é tão popular que existe um feriado nacional em sua honra, reparem bem. É, claro, a primeira recomendação que o Pedro nos faz e leva-nos a uma cevicheria chamadoa "El Muelle", ou seja "O Molhe", pois a não muita distância de onde estamos, ainda que com um desnível apreciável, encontra-se o mar. Quase toda a gente pede ceviche a uma senhora extremamente simpática que nos explica com cuidado os pratos, revelando um gosto e simpatias particulares na apresentação do que o seu país tem de melhor. A descrição do ceviche lembra-me o meu trauma gastronómico mais clássico, a minha nemesis sob a forma de moluscos do mar. Desde pequenino que a minha mãe descobriu um estranho fenómeno: polvo ou lulas que caiam no meu estômago são imediatamente regurgitados como se eu fosse um pelicano. Não acho que a melhor maneira de me apresentar a este país e ao grupo que viaja comigo seja através de reforçado canto gregoriano. Assim, perscrutando a ementa, uma dourada assada apresenta-se e eu aceito o convite para sair. Tenho pena dela, pois tem na minha memória a concorrência de uma perca das Faroé que me esmifrou os orgasmos do paladar em pouco tempo.

O restaurante fica numa rua secundária e calma, conseguimos conversar sobre as primeiras impressões do país, sobre fotografia, sobre outras viagens que fizemos. Os pratos chegam e os amantes de cerveja descobrem os prazeres da Cusqueña, uma birra bem popular no Peru. A dourada está uma delícia, não comparável ao meu amor nórdico, mas bem preparada, tenra, condimentada com pimenta e algumas ervas aromáticas que lembram bastante a cozinha mediterrânica. Quanto ao ceviche, os convivas parecem maravilhados e deslumbrados, o travo forte cítrico misturado com os molhos e condimentos ressaltando do peixe as suas qualidades melhores na ponta da língua. O Pedro alerta que um problema no Peru é o café, geralmente entre o medíocre e o criminoso, com um toque de desporto radical da boca. No entanto, conhecendo-se a cidade, até nos safamos, ainda há alguns lugares que se desviam da crença religiosa que um café bom é um café queimado. A pouca distância, fica o Colonia, um estabelecimento singelo, mas simpático. Defronte, um palácio simples, mas que se destaca das outras habitações no local. Questionamo-nos sobre o que esconderá, não está aberto. Em cima, de pé e desfraldadas, várias bandeiras batem continência ao telhado. Uma é imediatamente identificável como a peruana; ao seu lado, duas extremamemte coloridas, arco-íris, o prisma irisado dos Pink Floyd estampado num pedaço de pano. "É um bar alternativo", pensa aqui o vosso Poirot dos pobres, convencidíssimo que tudo sabe e tudo adivinha, "que coragem em exibir assim a bandeira LGBT num país tão conservador quanto o Peru. Gabo-lhes isso". Isto é uma estupidez; mas só descobrirei porquê quando chegar a Cusco e portanto, deixo-vos no suspense. Não em relação à minha estupidez. Acho que tal é do conhecimento geral. Esta particular é apenas bastante engraçada.


O café está aprovado e depois de uma manhã de andar em labirinto, a ideia é fazer a tarde quase toda em caminhada. Depois de mais uma voltinha de Combi, paramos em Chorrillos. Lá em baixo, vê-se a praia. O céu convida pouco, Lima é uma cidade permanentemente nebulada, embora raramente chova. Mas é o Pacífico, o tal oceano que não tem memória segundo Andy Dufresne, personagem principal de "The shawshank redemption". Nunca na minha vida tive o Pacífico ao alcance do meu olhar. Sobre ele sei quase tudo, que é grande, que é fundo, que é mais escuro do que os outros oceanos, sei os seus limites e recortes, países que banha, uma tonelada de informações acumuladas no meu sótão em forma de cabeça. Mas quando calco a areia da Playa Agua Dulce, apresento-me como leigo. As minhas pernas procuram o contacto com o mar, agacho-me e tiro fotos das aves que tiraram a tarde para passear na praia, mas guardo a máquina e entrego as minhas mãos ao Pacífico. Fecho os olhos, tento que o Pacífico seja maré alta que afunda as minhas guerras, a água não é fria, é tépida e estamos no Inverno, banho nela as minhas mãos completas e entrego ao meu corpo uma outra novidade, um outro oceano, um pedaço do mundo que nunca foi meu, nem será quando for embora, mas é agora parte do meu mapa. O Pacífico é um gigante escuro e balouçante e numa ironia de linguagem, é também violento, lar de vulcões e sismos abismos; mas enquanto ali estou de cócoras, deixando-lhe que me acaricie, é apenas água e extensão, um ponto de foco, uma estrada sem buzinas ou guinadas, sem confusão e levando-me numa viagem momentânea ao meu início. Não me tira o peso dos ombros, mas posso descarregar um pouco dessa tonelada. A água é mais densa com sal, mas por isso também mais rica. Pode ser que, nas águas do Pacífico, a minha guerra faça as pazes com os peixes e seja mais tarde um ceviche delicioso em quem tiver a sorte de com ela terminar em armistício gastronómico,

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