quarta-feira, março 06, 2019

Perugrinação 15: Momentos mudos


Parece bizarro notar que num país com mais de um milhão de quilómetros quadrados, o Peru possua apenas quatro linhas de comboio; mas diz muito sobre o quotidiano do mesmo que a mais longa dessas linhas seja exclusivamente para uso turístico. A Peru Rail garante essa ligação, saindo de Água Calientes e terminando em Puno, a Sul, localidade de acesso a todos aqueles que pretendem usufruir do Lago Titicaca, cujo extremo mais setentrional se localiza em território peruano. Como em praticamente todos os países onde o investimento privado tomou conta das opções políticas, o comboio deixou de ser, ao longo do século XX, o meio de transporte importante que uma vez foi, atravessando o país de uma ponta à outra. É algo a que nós, portugueses, estamos bem habituados. Na cidade que tem sido parcialmente minha nestes dois últimos anos, e falamos de uma capital de distrito, existe o serviço apenas duas vezes por dia - uma viagem de ida e outra de regresso - em horários que não dão jeito a quem quer que seja. Perde-se algum encanto, porque não sendo o mais prático dos transportes, o comboio é certamente o mais romântico, nostálgico, capaz de gerar em nós instintos Proustianos. A única companhia que opera comboios na pátria de Machu Picchu é a PeruRail e ainda que garanta a cobertura de menos de 20% do território, transforma todo o serviço num deslumbre para turistas.  Na estação de Águas Calientes, uma voz em castelhano informa-nos da chegada das carruagens à linha. à entrada de cada uma, somos recebidos por dois funcionários impecavelmente fardados, com vestimentas de deseign criativo, branco e de linhas bordeaux. O vagão azul parece saído de um mundo smurf, mas no interior, a decoração é sóbria, onde em paredes beje desenhos de mapas antigos do Peru. Sou levado ao lugar por uma simpática jovem com menos uns dez anos do que eu, cujo inglês é comparável ao meu domínio do russo. Os bancos são confortáveis e recuam os passageiros no tempo. Não sei se propositadamente ou porque o orçamento ferroviário do Peru dá apenas para comprar uma caixa de pastilhas e um chupa, as carruagens evocam a antiguidade e quando o comboio arranca, chia e treme mais do que a antiga automora que fazia a ligação entre Coimbra e a Lousã. A velocidade é de apreciação da paisagem, algo difícil com o temporal que lá fora varre as vistas, e cada paragem uma maneira de fazer os pulmões esgueirarem-se por entre as frinchas das costelas.


A mim, nem me incomoda. O meu corpo, depois da excitação de ter visitado uma das "sete maravilhas do mundo moderno", recorda-se que esta brincadeira começou às três da manhã num exíguo quarto de hotel e que sou caloteiro de horas de sono. O embalo da viagem convida claramente ao pagamenro da dívida e num percurso que demora hora e meia, apago mais vezes do que as costumeiras. O conforto dos bancos apela a que simplesmente me instale e desligue o interruptor. Quando acordo, estamos perto da nossa estação e não me sentido recuperado, sinto-me que dei a mim próprio mais algumas horas de coerência para suportar o resto do dia. Descemos em Urubamba, mas ainda não é aí que pernoitaremos. Mais uma hora de viagem de carrinha conduz-nos a um Eco Lodge onde somos recebidos por uma família conhecida do Pedro. O lodge compõe-se de várias pequenas casinhas, cada uma delas abastecida por energia renovável e um sistema de canalização que aproveita a água. Parte dos produtos usados nas refeições são cultivados ali pela própria família. Cumprimentamo-los, antes de, por fim, gozarmos de um pequeno tempinho de morte temporária e precisa. Quando nos dirigimos para a sala de jantar, o Jorge, o meu constante companheiro de quarto durante a viagem, repara num bólide amarelo que descansa numa garagem improvisado com quatro paus e um telhado de zinco. Não consegue seguir caminho sem admirar as curvas, o design e me informar, um leigo de automobilismo, que se trata de um Mazda bastante popular nos anos 80, famoso por ter participado em provas de rali. "Caramba, isto é um RX", e fica tão maravilhado que pressinto problemas futuros com a polícia local e acusações de furto qualificado. Ao chegarmos à sala, voltamos a saudar a família. Um pai e uma mãe com quatro filhos. Num sofá mais afastado, uma senhora velhota diz olá, mas continua a ver as notícias numa televisão pequena. Já nos esperam alguns aperitivos, enchidos, alguns queijos, saladas, para petiscarmos. O jantar é arroz com carne e peixe, à escolha de quem quiser. Cai-nos muito bem, até porque eu, pessoalmente, sinto o meu corpo tão pesado e tão vazio em simultâneo que comida quente, feita ali mesmo com o cuidado caseiro, vem resolver toda  uma série de problemas. Antes de finalmente poder regressar ao meu bungalow, o Jorge não resiste e volta ao romance com a sua loura metálica. É apanhado no acto pelo putativo dono do veículo, o patriarca. Confessa-nos que é um daqueles projectos em continuação. Comprou a carcaça base numa sucata e nos últimos meses tem vindo a recuperá-lo, pois recordava-se de, em novo, assistir a a provas de rali passando perto de sua casa e ficar fascinado com aquele Mazda. Sempre sonhou ter um e agora, cumpriu o sonho. O Jorge gaba-o, depois ao veículo. Por momentos, penso que va cravar-lhe uma voltinha, mas não chega a esse ponto.


Despertar na manhã seguinte às seis e meia. Há um dia muito comprido que nos espera e começa precisamente no mercado de Calca, a vila mais próxima. Localizada no Vale Sagrado, não é particularmente turística, mas o Pedro insiste que nos ambientemos um pouco ao mercado, espaço onde chegam pessoas de toda a região, para que assistamos ao lado mais genuíno desta população próxima dos indígenas Quechuas, aqui sem tiques de exibicionismo excursionista. Este ponto de venda funciona como centro ecnómico de todos os pequenos produtores da região. É domingo e logo pelas oito da manhã, já está cheio de gente que traz consigo acima de tudo comida e tecidos. Os menos autêncitos tmbém carregam bugigangas várias que deverão ter sido produzidas no Peru, mas via Hong-Kong. Entre caras sorridentes e desconfianças latentes, vou caminhando devagar, tentando mostrar que não venho aqui para estragar o dia a ninguém, embora, estamos, a falar de mim, essa é semre uma possibilidade séria. Com a memória das minhas aventuras num mercado de gado em Karakol, recordo como estas pessoas mais simples podem encarar uma máquina fotográfica com declarado horror; mas sou recebido com curiosidade e no máximo, vergonha natural. Não peço poses, não peço abébias: só licença e autorização para captar momentos e assim sigo. Vê-se de tudo um pouco, desde bancas exclusivamente de sapatilhas, até velhinas que cortam pedaços de pimentos nos dão a provar. A maior parte das mulheres passeiam o Montera, um chapéu típico quechua, vestindo a Llicla, um poncho colorido à múltipla escolha, que as agasalha e protege também. Garotos correm por todo o lado, um pede-me que abra um pouco as pernas para rastejar por baixo de mim. Não têm medo, sorriem e brincam, volta e meia regressam à banda de onde saíram e voltam novamente a deambular. Alguns deles têm o tamanho de miudagem de sete anos, mas quando lhes descobrimos a cara, envelheceram trinta. O ar da montanha não deve fazer assim tão bem. Não se escuta música, mas barulho de vozes. Quase niguém grita pregões e os espaços estão bem definidos entre carne, peixe, verduras e tralha. As bancas são de madeira e ocasionalmente, há pequenos botequins de quatro paredes de metal. Num segundo andar, encontro uma larga sala, com duas bancas corridas de pedra, onde gente vê televisão e come cança e uma sopa estranha que mistura caldo de pato cozido com ervas aromáticas. Olho para o ecrã e passam as notícias, uma delas anuncia que foi recentemente aprovada no Parlamento uma Lei Mulder. Concluo que o Universo joga aos dados e me tocou a vez. No centro da sala, uma caixa de vitrais tapa a estátua de uma santa. Como pano de fundo, montanhas brutas. Ainda assim, sinto que não estou totalmente nas profundidades arcaicas deste Peru. Horas mais tarde, virei a confirmar que esta sensação é verdadeira.


No fim da visita, a ideia é regressarmos às carrinhas e subirmos a estrada que serpenteia a montanha sobranceira a Calca, a Suhasiray, rumo a Cuncani, uma exígua povoação completamente entalada em montes, recôndita, quase intocada. O dia soalheiro convida a passeio e a viagem continua. Em nosso redor, altas rochas compactas nem fazem sombra, por muito altas que sejam. A estrada carrega-se de curvas, umas ao enfim de outras, mas o condutor lida com elas suavemente, a velocidade cruzeiro. Nos meus ouvidos, música rouba-me das pessoas, mas coloca-me ainda mais no centro daquilo que procurava quando passei os olhos pelas imagens peruanas: as montanhas. Respeito-as, mas namoro-as, sei que me retribuem mais do que qualquer outra pessoa na paixão que lhes tenho. Quero captar o seu perfil e rosto, em linhas de definida atracção, trazê-las para Portugal comigo em algo mais do que a minha mente, mostrar-vos, atrair o vosso desejo para este canto do mundo. No mais, escrevo sobre os interstícios da viagem, os momentos de transição, as pequenas que se treslêem e ficam de fora do que se conta depois. Faço dos grandes cenários e dos locais conhecidos, dos Machu Picchus e Nazcas destas andanças; mas pelo meio, de um lado para o outro, existem pessoas e estórias pequenas, locais onde nos rodeamos do que é genuíno, aquilo que não chega em fotos, os transportes e as viagens de carro, aquilo de que mal escrevo quando os poucos que consomem estas crónicas absorvem. São os momentos mudos, porque raramente lhes dou voz. Mas hoje dei. De mercados e projectos tão simples quanto recuperar carros da nossa infância, os sonhos comuns de gente incomum porque os concretiza, recuar no tempo numa voltinha de comboio. As coisinhas que preenchem e ainda assim não chegam para tapar aquele buraco que sorve tudo, que não se cala e pára, que exige mais e mais nunca se contenta. A ideia de que alguma vez eu possa ficar satisfeito com a vida esvai-se, é fumo. A certeza de que não tenho o que quero é permanente. Pensar em ti, em ti mesma, e nunca alcançar o desígnio de acordar a teu lado, de partilharmos o que é meu e teu, de me fazeres um pouco mais, dói-me muito mais do que as pregas da viagem. Mas existe e reflecte-se em tudo, nas montanhas e no mar, nas cidades e nos descampados, nas rugas das pessoas, nas lágrimas que nunca me denunciam porque não deixo. Um outro género de momento mudos.

Paramos então. O topo da montanha não surge, logo isto não está no programa. Do lado oposto ao do nosso estacionamento, uma placa anuncia o Parque Arqueológico de Ankasmarka. O Pedro não sabe o que ali está, mas temos algum tempo a matar e nunca se sabe bem o que se encontra nos intervalos do planeado. Oportunidad epara esticar um pouco as pernas. A máquina vem comigo, ao que parece ainda ali queimaremos uma horinha. Tudo bem. A trezentos e sessenta graus, a minha fome de altitude mais do que fica saciada. Pressinto um festim para os meus olhos. Subindo a estrada, uma velhinha quechua traz as suas cabras. Saudações e ela segue, as cabras também. E é então que mais uma vez, das profundezas da minha escatologia pessoal, um trovão me rasga de alto abaixo e culmina nos meus intestinos. O rimbombar de séculos não se ouve pelos montes, mas eleva-me o pânico. Uma das minhas nádegas fala claramente para a outra: "vai haver merda entre nós".

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