quarta-feira, maio 29, 2019

Perugrinação 21: Nostalgia, mas não de Tarkovski




Deixei Lima há duas semanas e quando volto, está diferente. Ou estou eu. Com mais pó acumulado, aposto. Quilometragem. Chegámos ontem de Cuzco. Ainda passámos um dia na antiga capital de Inca. Males estomacais voltaram a apanhar-me, mas ainda assim ganhei coragem para me levantar da cama e passear de tarde numa última vistoria pelas ruas, compras para amigos e família. A minha sobrinha começa assim uma carreira de ter um tio que lhe faltará a muitas festas de aniversário, em troca, terá prendas de todo o mundo. Num portal rectangular que dá para o interior de uma torre, um velhote quechua de chullo na mona sorri-me, um cliente. Pergunto-lhe sobre tamanhos pequenos, ele inquire a idade da destinatária - "Una ninã? Pero que linda!" - e ele nunca a viu. nem eu, sendo honesto. O que é que se pode escolher para alguém que não conhecemos? Sinto que é uma espécie de blind date com alguém que nem sequer tem gosto formado. Sou péssimo a escolher roupa, mas vem aí o Outono, a seguir o Inverno... Engraço com umas luvas verdes com quadrados de várias cores e um barretinho quechua com orelhas de abano e cordéis que parecem caracóis desfiantes, azul-claro, com algo de branco e laranja. Acho que a Beatriz gostará. Estou, basicamente, a escolher ofertas para daqui a uns anos. Não sei quem ela será tão à frente no futuro. Nem sei sequer como me verá, se me perceberá ou aceitará sequer, se não achará tudo isto pindérico. Mas pensando nela, torno-a bem real, defino-me em relação ao que lhe quero dar. Está pago, guardo num saco com as restantes prendas que adquiri. Dou mais umas voltinhas e regresso ao hotel. À noite jantamos e é a última vez que vejo aquele mar de casas com os pirilampos nocturnos a dizer presente. Pode parecer idiota, com tantas coisas bonitas que vi neste país, mas continua a ser das coisas mais fascinantes desta viagem, uma vista a partir da varanda do hotel, sobranceira a Cusco, num silêncio que crio para que tudo o mais fale, fale, diga. Não vos conto o que guardei da conversa, fica para mim. Fica para um caderno que é de alguém que não vocês. Escrevo nesse caderno na manha seguinte, enquanto esperamos no aeroporto da cidade por um voo interno para Lima. É o único aeroporto onde estive em que fui cheirado por cães polícia, procurando folhas de coca. Já tive armas apontadas a mim no Quirguistão, logo precisam de mais para me impressionar.


Hoje é o último dia neste país, na América do Sul. Amanhã regresso ao mundo que é meu. A ideia é visitarmos o centro histórico da cidade, que por própria admissão do Pedro, não é tão grande quanto isso. Por isso, sugere-nos a visita a um museu muito conhecido na capital, aquele que tem o nome de Mario Testino. Para os menos informados, é um famoso fotógrafo que ficou conhecido mundialmente devido a uma sessão feita com a falecida Diana Spencer, ex princesa de Gales. Localiza-se em Barranco, o tal bairro dos artistas sobre o qual já escrevi anteriormente. Num antigo palacete, reúne-se gente à porta, pinta de modernaços, alguns laivos hipsters, apreciam o sol da tarde num relvado da moda. Por sorte, a entrada hoje é à borla. Conheço várias fotos suas, são icónicas e no geral, celebram o excesso da fama, da festa, com um barroquismo muito próprio; e só quando paro de facto a observá-las, a reparar com olhos menos de quem folheia uma revista e de facto estaca para decifrar um mistério, de como a sua noção de cor é tão sul-americana. Há algo de todos os têxteis que encontrei nas profundezas dos Andes no seu mundo cromático, como se fosse um código de um peruano cosmopolita para os seus conterrâneos que não tiveram a mesma sorte: sou um peruano do mundo. Testino responsabilizou-se por tudo o que vemos aqui. Foi ele quem dirigiu o restauro desta mansarda, as fotos são suas, a curadoria das exposições temporárias de seu próprio gosto e escolha. Colabora com escolas e oferece oportunidades a novos artistas. Belo legado, mais do que fotos a preto e branco de um membro da realeza britânica. O rés-do-chão ocupa-se da carreira do Testino fashionista, fotos de celebridades e modelos, capas de revistas, portfólios da Vogue à Vanity Fair, o lado que projectou o fotógrafo na sua dimensão mundial. É quando acedemos ao primeiro andar que encontramos um espaço dedicado a vestimentas tradicionais do Peru Rural, impecavelmente iluminadas e fotografadas, a lente de um artista ao serviço da memória interna e folclórica do seu país. Mulheres e homens, crianças a saltar, pulsam tanto de vida quanto Kate Moss e David Beckham, se parecerem artificiais. Numa sala ao lado, as famosas fotos da última sessão da princesa morta. Sempre passei ao lado em torno desta plebeia britânica que aceitou um pacto com o diabo monárquico e deu por si acossada por fotógrafos literalmente até morrer. É apenas quando sozinho e em confronto com grande tela que noto como Testino lhe apanha uma melancolia plena nos olhos, mas principalmente nas mãos. É difícil de explicar, mas é um pouco como se os dedos procurassem um botão de passado que não existe. Para lá dos vestidos e da maquilhagem, com a cabeça pousa naquelas mãos, sente-se-lhe uma fome de fuga. Mas Testino não a deixa fugir, ainda que lhe permita a ilusão. Não é muito fácil apanhar pessoas. Eu não sei fazê-lo, não consigo, acho que não gosto. Acho demasiado intrusivo e viro-me para paisagens. Mas este peruano agarra-as pelos colarinhos, com a doçura de uma vicunha embeiçada. Torna alguém interessante, fulgente. É um dom.

De seguida, metemo-nos em táxis e rumamos ao centro histórico de Lima, uma extravagância colonial que vive disso, misturando nalgumas ruas um cosmopolitismo saloio de pequena grande cidade. Não o escrevo com desprezo. Há grandes edifícios e pequenos recantos, vida da América do Sul em curtas salas, cafés, ruelas. Como um grande embrulho espampanante, no qual descobrimos, depois de tirado todo o jornal, berlindes nada foscos. Já aqui falei das origens da cidade. Na altura não me demorei nos seus encantos históricos porque sabia que este momento chegaria; e o nosso percurso começa pela Plaza San Martin, também conhecia por Plaza de Armas. É o espaço público por excelência da consciência pública peruana. Se há manifestação, eclode aqui. Tomou o nome do libertador do Peru, José de San Martin, general que até era argentino. A sua construção marcou o centenário da independência do país, em 1922 e rodeia-o uma zona boémia da capital, com teatros e cinemas, salas de diversão, estabelecimentos nocturnos. Vou notando que a consciência pública não é apenas manifesta, mas anunciada. Este deve ser o Speaker's Corner do Peru. A cada canto, um magote de gente, ouve homens de megafone e aparelhagem sonora debitar as palavras de ordem mais acesa, trovoadas, e teorias de conspiração que fariam Alex Jones envergar uma erecção perpétua. Como quem nem quer ouvir, mas está doidinho por fazê-lo, aproximo-me de uma maralha que entre riso trocista e condescendente e a atenção dos que julgam, de súbito descobrir que o mundo tem uma manivela escondida que permite revertê-lo, escuta um arauto da desgraça; e qual é a sua? O Chile, esse país infame e ardiloso, vai atacando secretamente o Peru com a mais vil doença, o pior de todo os males: a homossexualidade. Pela calada da noite e penetrando profundamente nas fronteiras mais indefesas do país, presumo que as das traseiras, rapta os melhores filhos na nação peruviana e transforma-os com cabros, brócolis - gays. O método? A simplicidade de uma injecção, o tratamento demorado de um gás especial e a ideia é extinguir a população, acabar com ela, facilitar uma invasão futura. O dia brilha ainda, apesar do obscurantismo. Clama ele que a ditadura de Pinochet foi a única resistência a esta cabala da desgraça e que homem com homem é o rumo ao desfiladeiro quente do Inferno. O fim dos tempos, o tempo do fim. O renascer do Peru jaz em vaginas, aparentemente. Rio involuntariamente e ninguém nota, acho. No chão, esta voz do deserto exibe mapas, fotos, esquemas, ligações. Tudo aquilo que imaginariam nas paredes de um paranóico. Faz um grande gesto com o o braço, enquanto menciona Pinochet e por cima de si, passa um arco de sabão, feito por um palhaço - literal - que entretém miúdos numa banca lateral. É surreal, não mais do que aquilo que acabei de ouvir.


A pouca distância, encontra-se outro interessantísimo edifício cultural, a biblioteca pública Vargas Llosa. Quem lhe dá nome é do conhecimento geral, escritor do país que já meteu um Nobel ao bolso - de certa forma, é o Saramago desta gente, pois também é filho único nessa demanda Nobeliana das letras. A biblioteca tem o nome oficial de Casa da Literatura Peruana e o seu enquadramento dá-lhe um charme urbano que podia muito caber num largo romance sobre livros, palavras, mistérios presos em páginas. O seu edifício foi originalmente a principal estação de comboio de Lima, a Estación de los Desamparados, quase saída de Paris no seu desenho - o que é apropriado, visto que o modelo desta Lima que hoje conhecemos foi precisamente a Paris do fin de siécle. O nome não vem do facto de os antigos passageiros ficarem constantemente apeados junto à linha, mas sim de uma igreja que antigamente ficava neste local. Quando entro, noto o esforço realizado para manter o traço original da estação, desde a arquitectura até uma magnífico telhado de vidro, que conserva ainda os desenhos em vitral com que nasceu. Hoje guarda livros, mas ainda se sente que a qualquer altura, o gorgolejar mecânico e bruto de uma locomotiva se pode fazer ouvir e encher o espaço de fumo. Na verdade, descubro a ler uns folhetos, uma vez por mês tal acontece: um comboio liga Lima e Huancayo, cidade enfiada no interior dos Andes. Ainda agora lá estive, já me querem transportar de volta... Mantém tudo o que imaginamos, desde as bilheteiras em madeira até à escadaria de pedra e uma arquitectura de ferro que reconhecemos como europeia. É casa de livros desde 2009 apenas, mas que casa, e que utilização curiosa de um edifício civil. Ler aqui deve ser um poema em si. Fico com vontade de trazer os meus livros e escolher uma cadeira, qualquer uma, para durante o dia gozar da luz filtrada pelos vitrais, embalando-me em cenas de cinema que se constroem em camadas de papel, viver vidas alheias enquanto a minha é banhada a romance. Imagino-o e é encantador. Se procurarem em folhetos turísticos, ninguém vos aconselhará, por isso sugiro-vos ardentemente a visita. Vargas Llosa domina tudo, nome fundamental das Letras do país: as suas obras, a sua vida, a fotografia de um poseur artístico profissional com ar boémio, cabelo impecavelmente penteado e olhos daqueles que parecem dissecar a realidade ao mínimo ponto e vírgula.


Depois deste banho de cultura, um pouco de conhaque, com a possibilidade de ser literal. Mesmo à esquerda da Casa da Literatura, o bar Cordano oferece a possibilidade de parar e petiscar alguma coisa. É um daqueles sítios em que se entra e se viaja no tempo. Duas portas abertas, quase como se pudéssemos atravessar o início do século XX em vinte passos e regressarmos de imediato ao nosso. O Cordano foi fundado em 1905 por italianos, naturais de Génova, e ainda hoje aqui se mantém, um dos estabelecimentos mais antigos e tradicionais de Lima. 112 anos de existência e mantém praticamente o seu aspecto inicial. Não há música, não há televisão, não há wi-fi. Existe a conversa e a possibilidade de as pessoas continuarem a ser pessoas. Deve o nome a um par de irmão que foram co-fundadores do café e o legaram, mais tarde, aos filhos, que ainda hoje mantêm negócio em conjunto com os empregados, que também são donos do espaço .Em Lisboa, já lhe teriam tratado da saúde para criar um Alojamento Local. Por aqui, felizmente, ainda há quem permita que a cidade mantenha um charme próprio. De tal forma é importante que foi declarado, em 2005, património nacional.Os empregados respeitam um pouco estas raízes, não apenas no uniforme, mas também na atitude. Fotografias encarquilhadas nas paredes lembram-me orgulhos pessoais de dono, a alegria de receber gente ilustre numa casa que é mais do que quatro paredes, o prazer de ser anfitrião e assistir a vida que se desenrola em torno de mesas. Cheira a filme antigo e olhando em redor, ouço jazz, com tons de tango, vejo homens de chapéu de aba, cigarrinho ao canto da boca, num lanço de escadas rumo ao coração de alguma moça mais desprevenida e capaz de cair na esparrela de um copo. Este segundo dia em Lima desperta-me mais evocações do que o primeiro, ou se calhar estou mais disponível para recebê-las. Talvez a deriva pela minha paisagem, a montanha, tenha finalmente despertado a sensibilidade que adormecida, me esquivava da realidade. Na praça central da cidade, o sentimento de caos volta, mas justificado: muitas pessoas, trânsito acumulado, luzes abananadas. Oportunidade para ver mais de perto uma das curiosidades arquitectónicas desta urbe, os Balcones de Lima. Quase todos são dos período colonial dos séculos XVII e XVIII, e são hoje Património da Humanidade. Sendo Lima uma fundação original dos colonizadores espanhóis, os seus pormenores e pormaiores devem muito à Europa, a influências mouriscas e nestes balcões, claramente, ao sul do nosso país vizinho. Juntam-se aqui o Barroco e o Árabe, esculturas de madeira de vasto pormenor rendilhado. Ainda hoje continuam a ser símbolos do poder colonial. Serviam para o Vice-Rei local, representante máximo do poder imperial espanhol, se dirigir às multidões e o seu intrincado desenho, escondendo que está do outro lado da janela, permite a qualquer um ver as grandes cerimónias públicas sem ser notado. Este Balcões localizam-se em edifícios de poder e religiosos importantes e são, claro, imagens de diferenças de classe, para colocar os plebeus no seu devido espaço.

A noite volta a acabar num jantar no centro comercial onde na nossa primeira noite a sério no Peru, tomámos finalmente consciência de que estávamos noutro ponto, noutra realidade. Escolhemos com mais gosto desta vez e evitamos fast food. Um restaurante que observa a escuridão do Pacífico, onde nos tratamos de forma diferente, desta vez não como estranhos completos, mas apenas semi-estranhos. Acho que é o máximo que qualquer pode almejar nestas viagens de curta duração. As pessoas vão sendo amigas, com a noção de que o contrato acaba normalmente quando se regressa ao aeroporto. Conhecemo-nos, mas noutras viagens, arranjaremos outros amigos temporários, de lugar em lugar, uma colecção deles. Mas aqui, não pensamos nisso. Rimos e relembramos, comemos bem, sonhamos com a noite imbuída de sal marinho e luzes foscas. Lima, amanhã, não é, foi porque está para trás. Hoje é verbo ser; amanhã é verbo estar. Ainda estou meio abanando da violência sensorial da América do Sul e quando regressar, sei que sentirei falta. Ainda não percebo é do quê. Mas isso fica para outra reflexão, outro local. Hoje, como um belo bife com vegetais e ainda não voltei. Quero pensar que amanhã acordo, saio do hotel rumo à Casa da Literatura e tirando um livro das estantes da antiga estação, sou personagem de filme antigo, tão melancólico e nostálgico quanto o meu aparelho de sentir.

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