sexta-feira, agosto 02, 2019

Um simplório simplifica

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É estranho que num curto espaço de tempo tenham saído na imprensa portuguesa dois artigos que embora assinados por pessoas de diferentes formações - Maria de Fátima Bonifácio é professora universitária de História, João Miguel Tavares um jornalista - mostrem uma tacanhez impressionante que só pode ser considerada aceitável e normal nos tempos que correm. Bonifácio discorre sobre a incapacidade que pessoas de outras culturas, nomeadamente cigana e africana, têm em se inserir na nossa tão superior ocidental, deixando também um cheirinho de soberba religiosa. João Miguel Tavares bate o pé e coloca o espírito cultural europeu (ainda que se possa depreender uma outra interpretação de que falarei mais à frente) acima de qualquer outro: a sua arte, a sua política, os seus valores. Tavares, em particular, goza de uns quinze minutos de fama heróica devido a uma intervenção nas últimas comemorações do 10 de Junho. Na sua cidade natal de Portalegre, Tavares proclamou um discurso de tom anti-sistema, aveludado nas exigências, com um chavão facilmente compreendido: dêem-nos algo em que acreditar. Tavares, até então mais conhecido por um conjunto de crónicas patetas que desfia no jornal "Publico" e pela participação no programa "Governo sombra", ao lado de dois pensadores de classe como Ricardo de Araújo Pereira e Pedro Mexia, viu-se do dia para a noite elevado a um estatuto de intelectual da Pátria, de voz da Nação. Ninguém criou uma petição para substituir o nome de Camões pelo seu na designação do nosso feriado nacional, mas foi certamente por achar que tal não seria sequer suficiente para honrá-lo. O discurso de Tavares, exigindo rigor, direitos para as pessoas, mais saúde, mais educação, um Estado mais presente e a dar oportunidade a todos, entra em contradição com praticamente tudo o que Tavares escreveu como cronista, um mal disfarçado neo-liberal que se chateia com qualquer intervenção estatal porque "é de Esquerda", mas à primeira desgraça ou até incómodo pessoal, clama por coisas, exige coisas, acusa coisas. É o típico ideólogo idiota que só defende ideias em tom egoísta. O que é meu é meu, mas o que é vosso é vosso. Quando me convém. É algo muito comum também no outro espectro político, principalmente num certo campo artístico que dependendo de fundos estatais, faz dele o seu feudo. O alerta de "apoio às Artes" é o apoio a si mesmo. Nisso, há que dizer, Tavares é do mais português que pode haver. E não sei por que motivo ataca tanto a Esquerda, principalmente a imaginária que ele desenha na cabeça, pois tem bastante em comum com ela.

Quem criou ilusões sobre Tavares, desceu à realidade com o seu magnífico "Sim, há culturas superiores a outras". O título é polemico, e destinado ao click, mas o contéudo é uma ode à mentalidade pequena e sinceramente, um desprestígio em relação a uma escola onde leccionei no ano lectivo passado e que Tavares frequentou. Não vou analisar a crónica - para quê? Há quem o tenha feito melhor - mas o raciocínio que estabelece. Ou seja, a ideia de haver culturas superiores a outras. Bem sei que pode chocar algumas pessoas, mas sim, há culturas superiores a outras; a questão é saber o que é uma cultura diferente e o que pode haver de superior. Tavares usa o critério geográfico e espalha-se ao comprido. Porque, tal como Bonifácio, estabelece também a religião cristã como um conjunto de valores superior, origem desta nossa cultura ocidental que tão boas obras nos deu e com todos estes princípios tão europeus. Ora, o grande problema é que o Cristianismo não é, de todo ocidental. Como deve ser do conhecimento comum, a sua origem - ficcional ou histórica - está no Médio Oriente e tal como o Judaísmo antes de si e o Islamismo posterior, reflecte inquietações, eventos e morais que nascem precisamente daquelas zona geográfica. O Antigo Testemento deve ser lido em primeiro como um Código Penal, depois como epopeia mitológica fundadora de um Povo e só depois, mesmo no fim, como qualquer tipo de  manual de doutrina religiosa. Para os mais esquecidos, a Bíblia é um livro que defende, entre outras coisas, a venda legal de familiares como escravos para pagar dívidas, a criminalidade do consumo de camarão, o apedrejamento de pessoas por serem diferentes ou adultério, sentarmo-nos em cadeiras onde tenham estado mulheres menstruadas, comer morcegos, agredir assaltantes à luz do dia ou vestir roupa de lã. O Cristianismo é tão ocidental quanto o sushi, o chocolate, a K-Pop ou Bonga. Podem defender que estou a aldrabar um pouco, que obviamente Tavares se refere à Igreja de Roma, ao Papado e à sua direcção religiosa. Nesse caso, vamos defender uma organização que ao longo dos séculos oprimiu o sexo feminino, outras raças, outras culturas, apoiou governos fascistas, negou Ciência, censurou arte e cometeu imoralidades contra crianças? É essa a nossa superioridade? Não me parece; e no entanto, isto não é completa culpa de Tavares. O cronista alentejano apenas tem o "problema" de escrever num órgão de comunicação social amplo. A ignorância que debita foi-lhe transmitida em vários anos de escolas onde uma visão eurocêntrica da História lhe foi transmitida e passada de mão em mão. A Europa é o ponto fulcral dos acontecimentos históricos e fora dela, há ruído que só interessa a quem directamente a afecta; e quando fala do choque de culturas, é sempre para reforçar o negativismo e a violência. Portugal, por exemplo, foi na Idade Média um exemplo fantástico de convivência multicultural e multirreligiosa. O aspecto é referido de passagem nos manuais, mas pouco focado. A atenção centra-se nas batalhas, na guerra, na violência; e a ideia que fica nos espíritos é, obviamente, da incompatibilidade entre pessoas com ideias diferentes, existências diferentes. 

Uma cultura superior ou inferior deve medir-se não pela geografia, mas pelo seu próprio funcionamento e por aquilo que valoriza; e ainda por cima a "Cultura Ocidental" não existe. O que é esta Cultura? É a Democracia? Dificilmente: afinal, como sistema político generalizado, não tem ainda dois séculos. É a Arte? A base da Literatura Europeia está quase toda nos Clássicos Romanos e Gregos. Pelos padrões geográficos de Tavares, parece-nos que não há nada de errado; mas é lembrar que estas duas áreas, na Antiguidade, tinham mais em comum com o Norte de África e Médio Oriente do que o espaço europeu; e depois há também a ideia de "Europa", que é um conceito tão recente que mal tem meio século. Antes de 1900, havia uma ideia de "Europa", sim, mas que se pode traduzir muito simplesmente por "superioridade branca"; e é aqui o pensador portalegrense começa a entrar em terrenos perigosos. Ainda que tente escapar-lhes, ao abraçar-se no início do texto a um conjunto de pessoas de proveniências diferentes, é evidente que não o faz de forma sincera, porque a sobranceria europeia que lhe atravessa as palavras descai de quando em vez para este problemático território. O que é, novamente, fruto da ignorância.Tavares fala de tecnologia e evolução, mas esquece que foi graças a uma grosseira exploração de outros povos que o Ocidente que tanto venera teve a vantagem de poder desenvolver com calma o Iphone. Não por qualquer tipo de vantagem cultural. Tavares fala de Shakespeare como grande farol artístico e despreza, por exemplo, a cultura Zulu. Ó Joãozinho, e informares-te mais? E conheceres a epopeia de Shaka, texto de tradição oral Zuli que rivaliza com qualquer uma clássica? Tem todos os ingredientes de uma peça do velho William? E pegares na Mahabarata ou na Ramayana, os dois grandes poemas indianos, tratados de filosofia disfarçados de épico de ficção científica? E a "Ode dourada" muçulmana, deserto quente em forma de poema de Imrul Qays? Tudo isto é grande literatura. É excelente uso da palavra, é drama humano, é imaginação galopante, é conhecimento dos costumes, é tudo o que Shakespeare dá aos seus textos. O que têm estes textos em comum? Nenhum deles foi escrito por um europeu ou por uma norte-americano; e provavelmente, o nosso cronista, depois de anos de educação decente porque europeia, desconhece que existe vida para lá dos Urais.

Li muitas interpretações sobre o que Tavares quis dizer, mas tenta-se tornar complexo algo que é bastante simples. Não tem a ver com racismo ou com teorias da superioridade. Na verdade, ele assume um obscurantismo assustador. A corrente de normalização da estupidez nos tempos que correm pode ser explicada de muitas maneiras, mas nenhuma melhor da maneira como, nos países ocidentais, se explora muito pouco o mundo fora do nosso espaço seguro europeu. Bem sei que o programa Erasmus abriu fronteiras e portas, mas se entras numa casa com um chapéu enfiado até aos olhos, dificilmente verás o que quer que seja. É urgente uma nova revisão de como se ensina o Mundo, e a História principalmente. O simplismo das ideias de Tavares está a par das correntes que querem carregar o ensino escolar com a culpa branca das desgraças históricas, como se noutros espaços do mundo a crueldade não fosse também uma moeda corrente. O mundo a preto e branco em que vivemos tem uma enorme responsabilidade de demagogos e votantes desinformados, mas também de intelectuais que carregam medalhas de liberais e conhecem muito pouco aquilo de que falam, acreditando, como qualquer bom apoiante de uma direita mais esclerosada, tudo é simples de explicar e o Bem e o Mal são conceitos lineares. Foi acima de tudo isto que me preocupou naquele pequena texto pateta, que daqui a um ano não será lembrado e que terá tanta importante para o cânone cultural como estes parágrafos que agora encaminhei aqui em análise apressada. Porque reflecte, acima de tudo, falta de horizonte, de movimento, de curiosidade até. A vontade do conforto e de com isso, afundarmo-nos cada vez mais num conflito invisível que vigora e parece não ter fim entre os que lutam contra uma das mais antigas utopias da Humanidade: a união planetária. Quase sempre através de métodos sinistros, mas na esperança de que possa acontecer numa vantajosa condição de entendimento e aceitação mútuos.

João Miguel Tavares dá a si próprio algo em que acreditar, e aos leitores, mas é uma mentira, ignorante, mas grave, É sintoma de algo mais profundo, que atravessa toda a linha de crenças mais conservadoras ou liberais: a de que há um "nós" e existe um "outros" bem definidos, fixos, definidos. Que os valores não se traduzem pelas acções, mas por inamovíveis factores físicos que nos cravam e fixam de imediato quando nascemos. De que o futuro é tão igual hoje como o era há 500 anos. Talvez por isso os homens que neste momento podem desenhá-lo, de Trump a Bolsonaro, pareçam tanto criaturas arcaicas, fantasmas do futuro passado.

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