quarta-feira, setembro 18, 2019

Fachinação 2: Queimar fusos horários


Agosto foi o mês de Hong-Kong. Todos os dias, notícias dos protestos lutavam na televisão. De um lado, gente com cartazes e bastões num esforço cívico a pretexto da oposição a uma lei feita mesmo à medida de um outro país; do outro, a demonstração ainda incipiente do poder de um estado totalitário. A quinze de Agosto, Nossa Senhora abençoa os cidadãos do território autónomo com notícias de que o exército chinês se entrega a exercícios militares nas costas mesmo defronte da ilha. É um sinal óbvio, mas não só para eles. De certa forma, para mim também. Enquanto arrumo a mala, roupa cuidadosamente seleccionada, equipamento fotográfico pronto - não é muito nem particularmente especial, o que ajuda - as imagens das cargas policiais não me saem da cabeça. Parecia que até há um mês, aquela era uma das zonas melhor integradas no espaço chinês. Agora, a barafunda é total, fala-se abertamente de independência, pelo menos num canto deste centralismo que eu penso granítico - como estou enganado - reclama-se; e eu estou prestes a partir para uma zona geográfica onde o aperto é ainda maior, onde a opressão é descarada e o controlo tão próximo quando a marcação cerrada de Pepe às canelas alheias. Se eu tomasse boas opções de vida, não deprimia tanto, por isso.... espanta alguém? Dou por mim, no entanto, a escolher com muito cuidado as camisolas que carrego e principalmente, os livros de companhia. Deixo em casa, por exemplo, um livro de Murakami, por ser japonês; ou "A literatura nazi nas Américas", por pensar que a referência aos compinchas de Hitler me cause dissabores. Pode parecer ridículo, mas existem demasiados fantasmas na minha cabeça neste momento. Ainda estou a calcular como conseguirei manter um equilíbrio mental suficiente para suportar quinze dias de desconhecido, duvidando mesmo que a minha paciência me ajude a suportar desconhecidos. Não preciso que um rígido polícia oriental, remexendo na minha mochila, me chame a uma sala à parte por conta de um gajo que anda para ganhar um Nobel há anos e não conseguiu. Se ficar preso por lá, ao menos que seja por um Coetzee desta vida. E garanto-vos que não estou a exagerar: um amigo meu viu retida na fronteira, ao transitar do Quirguistão, uma edição do guia da Lonely Planet para o território chinês. Motivo? O mapa do país mostrava Taiwan como país independente. Algo que é aceite pela maior parte do mundo como facto. Mas o senhor Xi faz figura de urso e colocou como dogma que a nossa Formosa é um crime contra o que ele considera ser a verdadeira China. Que a sua independência é um logro; e como tal, esse meu amigo, guia desta expedição na qual embarco, apenas conseguiu safar um mapa de Pequim. Sim, é este ponto de picuinhice.

O avião parte às 8.20 da manhã seguinte. A minha família leva-me até Lisboa pela madrugada, eu iludo-me fazendo uma directa. Digo-me que dormirei no avião, embora saiba que isso não costuma ser hábito. Não faço as contas na alturas, mas  entre atravessar fusos horários, viagens longas, esperas em aeroportos e não pregar olho, estarei praticamente 48 horas a pé. Porque nada ajuda mais à saúde mental como um cérebro carcomido pelo cansaço. No aeroporto de Lisboa, ainda é noite, cinco da manhã. Despeço-me da minha mãe e do meu irmão e gracejo que se não voltar, peço à Polícia Chinesa que envie as minhas prendas por Correio Azul. A minha mãe não acha grande piada, mas a minha mãe não acha grande piada a qualquer coisa que eu diga que possa prenunciar uma catástrofe. O Humberto Delgado já fervilha. O meu voo ainda não tem balcão de check-in e portanto, alapo-me. Ainda que tenha passado algum tempo neles nos últimos anos, acho os aeroportos estas entidades estranhas onde as pessoas não existem bem. São apenas carregadas. Somos carga na verdade. Daqui para ali e depois para acolá até nos meterem numa coisa com asas. É o único local onde alguém como eu, cuja única vez que tive ambições de transgredir a lei foi desejando a morte instantânea de uma pessoa - só aconteceu por uma vez, mas foi realmente sincero e virulento, teve sorte de eu não ser telepata - se sente bandido a sério: obrigam-me a mostrar documentos, sou revistado, os meus pertences vigiados. Em simultâneo, é a versão cosmopolita de uma Loja do Cidadão, onde os papéis errados trancam portas e as senhas correctas permitem atendimento. Fascinam-me também as coisas tolas do utente de aeroporto, desde a clássica implicância que a segurança tem com as garrafas de água até ao esquema de extorsão visível e legal que ocorre na área duty free, onde podemos comprar um igual recipiente de água e levá-lo para o avião sem que sejamos acusados de terrorismo caseiro. Todo o processo de espera é como o mais longo e aborrecido recreio escolar. Finalmente, o voo para Frankfurt das 8.20 surge. Quando tento fazer o check-in das malas, há um problema com os bilhetes. Aparentemente, só na Alemanha posso pedir o meu lugar para Pequim. Ele existe, dizem-me, garantem-me, prometem-me, mas a partir de Portugal nada podem fazer. Começo a especular se o Humberto Delgado não é uma simulação virtual da União Europeia.

O primeiro voo corre bem. Não prego olho, tento ler e despacho uma edição do Courrier Internacional que tinha em atraso. Fala do aquecimento global. Basicamente, vamos todos morrer, a Greta Thunberg sofre de Asperger e isso é giro/demoníaco (conforme a pessoa que opina), Trump é um idiota e ainda temos tempo, mas afinal parece que não. Ah, e existem problemas no Gabão e casos de corrupção graves na Indonésia. É por isso que adoro ler esta revista: não só me informa como me permite entender que o ser humano, mesmo com as diferenças culturas, é um traste em qualquer lado. Confirma as minhas boas impressões do mundo. Também gosto dela porque me faz passar por cosmopolita e intelectual por saber coisas de países que habitualmente não surgem na TV. Há quem julgue que perco horas a informar-me, que tenho consciência cívica, quando basicamente adquiro esta informação por quatro euros. No fundo, o problema geral das pessoas é a falta de curiosidade. Sorte a minha, porque assim, pelo menos, são-me permitidas qualidades. Em Frankfurt, acabo por conhecer os membros do meu grupo. Não é complicado encontrá-los, somos os únicos a reconhecer o idioma português. Alguns já conheço, outros não. Nenhum deles se assemelha à Natalie Portman, o que é sempre um ponto negativo. A espera pelo voo é curta e o aeroporto de Frankfurt um tédio. Hospedeiras da Air China sorriem largamente, mas como se conhecessem algo que me está vedado. O meu lugar fica a meio do avião, mas tenho espaço à frente das pernas. Pela segunda vez na viagem, passo pelo processo de descolar, que por muito que o repita, sempre me parecerá estranho. Os rebites tremem, placas de metal tentam vencer o atrito e a pressão e penso sempre na magnífica cena de desastre aéreo de "Fight Club", quando um avião vomita os passageiros em pleno voo. Lembro-me que li algures que estatisticamente, os momentos de maior perigo numa viagem aérea são a descolagem e a aterragem. Sou a mente demasiado racional do Jack. Há alguma turbulência, sinto toda a minha biologia ainda mais apertada e espremida. Quando chega a acalmia, verifico o entretenimento de bordo. É pobre, a maior parte dos filmes são chineses. No entanto, ainda há espaço para a curiosidade. Decido verificar se de facto, os voos para a China obrigam a cortes e alterações nos filmes ocidentais. Cobaia: "Avengers: Endgame". Bastam alguns minutos para confirmá-lo, referências a alguns personagens são obliteradas para as versões disponíveis nos aviões. O longo tentáculo da sino-censura é longo e chega a todo o lado. Até à atmosfera.

Algures nas quase onze horas de viagem até Pequim, devo ter adormecido. Não fiz por isso. Alturas há em que o corpo é velhaco e nos rapta. Levou-me para longe, de volta a Portugal. Num descapotável azul, o sol beijava-me a cara como quem quer. Como já fui beijado um dia. Não queria levar-me consigo, porque o mar mesmo ao lado jogava ao macaquinho de chinês comigo e nada mais se passava, era só isto, uma delícia que se prolongava, um momento repetindo-se numa eternidade digna de Moebius, azul e luz, comigo seduzido. Não sei bem por que estava a ser dominado por tal imagem. Nunca tinha visto sequer o carro do sonho e o cenário em si fora fabricado completamente pela minha mente. Talvez o meu cérebro, melhor amigo e pior dos facínoras em revezamento, me estivesse a dar um recado. Que não estava sozinho nesta longa demanda, que me protegia e que cuidaria de mim sempre que pudesse, sempre que eu, na minha infinita complicação, não decidisse de livre vontade esticar-lhe os limites da resistência. Uma palmadinha no ombro occipital. Mantemos uma relação complicada. Umas vezes complico eu, noutras ele. Mas se mais ninguém se preocupa comigo, ele sempre por lá esteve no refúgio. Dentro da caverna da minha inconsciência, para onde me escapo sempre que o mundo se arma num breu incompreensível, cria uma ficção de sossego. Sabe do que padeço, o que me inquieta; e dentro de tudo isso, armou um cenário livre de mácula, livre de pecado. Puro nas intenções. Quando acordo, estou sobre a Mongólia - cuja capital, Ulan Bator, é um dos meus topónimos preferidos, pois parece o nome de um vilão de "Star Trek". Não deve faltar muito para aterrar. Vou sentindo a pressão da descida gradual do avião rumo a Pequim. Fecho os olhos novamente, mas não consigo regressar ao sonho. O carro azul partiu e a luz solar deu lugar a um amanhecer lento. São quase cinco horas locais. Lá em baixo, fábricas, telhados atropelando, sinais de que vive aqui uma multitude de gente à qual não estou habituado. A área metropolitana da capital chinesa é gargantuana. Ainda não cheguei, mas já lá estou uma hora antes; e quando dou por mim lá, não sei se estou de todo.


Uma coisa que se descobre de imediato sobre os Chineses é o seu amor profundo à falta de tradução. Quando a fazem, é em inglês macarrónico e necessito de perguntar a mim mesmo: como terá soado esta frase na cabeça de quem a escreveu? É necessário encontrar um voo interno que nos levará a Kashgar, mas demoro a perceber para onde ir e o que fazer. De um lado para o outro, sou iludido por um balcão que anuncia, saxonicamente, que é o check-in de estrangeiros. Trabalham lá duas senhoras de meia idade. Uma faz zero, a outra sabe fazer zero. Gastam meia hora a atender dois tailandeses, sem que lhes consigam resolver o problema. Não me surpreendo, visto que uma delas está ainda a tentar perceber o que é um computador, porque tem teclas e até que raio pode ser um quadrado luminoso com imagens e letras. Windows, em chinês, claramente se traduz por Windah! Com isto, um outro funcionário cruza-se connosco e talvez espantado por ver doze ocidentais agrupados num mesmo local - não sei se desconfiado de sermos roadies dos Fleetwood Mac - olha-nos. Mas diz zero. Contempla apenas. Um de nós lá ganha coragem para lhe perguntar se estamos no local certo. Um olhar vítreo, vazio, como se a nossa comunicação se desenrolasse em marciano. Com alguns gestos e a ajuda dos nossos bilhetes de avião, o jovem lá entende que estamos confusos, ou que somos perfeitos idiotas. Encaminha-nos até uns guichets onde preenchemos papelada que informa o divino Estado chinês de quem somos, de onde viemos, para onde vamos e até planos para jantar - esta última é inventada, mas não parece. São uns papeluchos amarelos, rectangulares, com os mesmos caracteres estranhos que vemos espalhados por todas as placas e também traduções mal amanhadas em baixo. Um novo balcão aguarda-me. Elevado, como para me mostrar o meu lugar. Do outro lado, uma mulher polícia com a cara mais séria que possam imaginar. Ordem para avançar, dá-me um outro polícia, que controla as filas, gesticula-me com ardor para que siga. Papel e passaporte do outro lado. Chega-te mais perto, vês esta câmara? Olha-a. Agora, põe a mãozinha neste sensor, tal como se explica. A foto do passaporte é minimamente parecida comigo? Óbvio, ambos temos cara de susto e calvície precoce. A minha imagem ficou agora registada no sistema chinês: onde quer que vá, saberão onde estou. Passaporte carimbado na minha mão, papelinho recolhido, posso avançar: estou oficialmente na China e travei o primeiro conhecimento com a sua máquina de controlo.

Um comboio interno liga os vários terminais e conduz-me ao três, a partir de onde seguimos num voo de seis horas para Kashgar. É a viagem interminável. Toma-me uma sensação de fraqueza, não física, mas espiritual talvez, numa mudança radical de culturas, numa sensação de ter queimado fusos horários sem sequer me terem pedido licença. Somos novamente controlados e revistados, implicam com as baterias da minha máquina e uma powerbank. Aparentemente, existe aqui um pânico do lítio. Que a China se mantenha longe do Gerês então. Quando um pequeno avião abandona a pista, estou preparado para apenas me reerguer no meu destino final. Mas não. Aparentemente, aqui a aviação funciona como a Rede Expressos. Mais ou menos a meio do caminho, aterramos. Problema técnico? Não. É apenas uma escala. De 45 minutos. Em Urumqi, capital desta província. Somos forçados a sair do aparelho e esperar meia hora neste pequenino aeroporto enquanto não nos dão ordem de reentrada. É quase ridículo. É novamente passar pelo pânico de levantar e descer. É tolo, é muita coisa que me ocorre e que se acumula quando tenho tantas horas sem dormir e uma enormidade de tempo em suspenso, literal. Regressamos e volto a sentir-me deslocado enquanto se ganha altitude. Ainda mal pisei a China - na verdade, quase nem pisei de todo - e isto já me parece quase uma subversão da ordem. Mais valia estar calado, porque me esperavam rodopios bem maiores. Vou escutando podcasts acerca de serial-killers e pessoas muito más, talvez na esperança de projectar nos sons as vontades que me acometem. Mas quando percebo que ainda mal partimos e já estamos para chegar, entendo que é melhor não dar muita bandeira, porque é complicado matar centena e tal de gente em dez minutos. Para além disso, sou incapaz de transformar uma bateria de lítio numa arma de destruição maciça. Não vi episódios de "Macgyver" suficientes.

Em Kashgar, a temperatura alta e o ar abafado são a primeira impressão que tenho. Na manga que nos conduz do avião ao aeroporto, uma carpete vermelha recebe-me e pelas paredes, videiras de plástico querem levar-me ao Alto Douro vinhateiro da candonga. Ouvi histórias do comportamento da Polícia neste aeroporto e sinceramente, estou preparado para tudo. Na mala, levo sete latas de atum e receio que impliquem com elas. Não demora muito até que a bagagem me chega às mãos. Mas, estranheza, a maior parte dos oficiais sorri ou joga no telemóvel. Há um que me pede o passaporte, mas nada mais. Faz sinal para que me encaminhe até à saída e possa, por fim, voltar a habitar o solo, que é o meu local de pertença. Sinto o meu ectoplasma ainda a regressar ao meu corpo e ainda não chegou todo. Espero que não tenha sido obrigado a dar explicações sobre mim ainda em Pequim, teria muito que explicar e faria certamente rir até a senhora mal encarada que me carimbou o passaporte. Mais do que partir, interessou foi Kashgar. Perceberam? Kashgar. A piada é má, eu sei, mas prometi a mim próprio que a faria numa crónica. Se a acharam de mau gosto, então parabéns: bem vindos à China. Faz parte da mobília.


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