terça-feira, outubro 20, 2015

A casa da árvore



Voltei à casa da árvore quase trinta anos depois. No cimo do carvalho, a 100 passos do regato onde eu e os meus irmãos descobrimos o vigor da pele depois de um banho frio, um amontoado de tábuas, ainda reconhecíveis como paredes e telhado. Nem sei bem como é possível, a casa sustentava-se mais em pregos do que ambição. Nós os três, sem nada para fazer e demasiado bicho carpinteiro a roer-nos, demos por nós num Verão sem nada mais do que tempo livre. O pai decidira fazer férias um mês mais tarde nesse ano, para dar tempo a que a minha mãe regressasse a si depois de alguns meses no sanatório, e então, numa conversa ao jantar, alimentou-nos essa ideia. Um projecto nosso, uma marca dos Coutinhos no espaço. Éramos gabarolas, e entre os nossos olhares passaram momentos de peito feito, de chegarmos no ano seguinte à escola e contarmos como, com aquelas mãos minúsculas e aqueles braços que mal passavam por ramos de pinheiro manso, ergueramos algo que se visse. Na manhã seguinte, o pai comprou-nos pregos, nós mandámos umas árvores mais pequenas abaixo e conseguimos que um tio nosso, que vivia numa quinta próxima, desencanasse umas tábuas, depois de ter mandado uma cerca abaixo. Em troca, ficámos de lhe fazer a vindima seguinte; o míldio ajudou-nos, mas por outro lado não, já que as vinhas eram tudo o que ele possuía. Quando se tentou matar uns meses depois, deu-me pena, e o meu irmão mais novo, só porque sim e porque de nós era aquele que mais jeito tinha para ser humano, voltou a plantar o vinhedo. Seguimo-lo, e depois também mais gente, e sempre pensei como um caminho quase directo para a morte pode voltar a gerar vida, ali, quando um homem fracassa até na vontade de morrer, quando volta a encontrar exactamente aquilo que perdeu, só porque o ponto do fundo pode ser a maior bóia para voltar à tona.

Três semanas passaram, e quase fechámos o tecto. Em todo esse tempo, o meu pai serviu de mesinha de cabeceira à sofreguidão da minha mãe. Todas as noites nos perguntava como ia o "Taj Mahal de Macedros", e eu nem sabia o que era o Taj Mahal, mas o meu irmão mais velho, que de vez em quando lia as Selecções do Reader's Digest, ria e sabia que o meu pai, meio a brincar, nos dava o seu orgulho como uma sobremesa que satisfaz mais do que tudo o resto. Contávamos-lhe as histórias, os dedos martelados, as esquadrias mal tiradas (quando nem sabíamos o que era), o cheiro das folhas de carvalho, os pequenos pormenores que só quem sobe uma árvore consegue trazer a tiracolo. Só depois dessas três semanas o meu pai decidiu ver como a casa se levantava pelos nossos braços. Esperava sorrisos e piadas, mas ele apenas mostrou preocupação. Suspirou seriamente "Não sabia que era esta árvore", e contou então que a floresta era assombrada, que durante a noite se ouviam gemidos e o seu pai contara-lhe que aquela árvore atraía imagens e espectros, luzes e sombras, todo o tipo de malapatas que não devem visitar os garotos. Era ele ainda mais menino do que nós quando quatro pessoas deram por si penduradas pelo pescoço no mesmo ramo onde a nossa habitação se erguia. Na verdade, fora eu quem escolher a localização, era a minha responsabilidade no projecto, e senti-me culpado, sem que o meu pai soubesse. Os meus irmãos notaram-nos, e aproximaram-se, como se por acaso a maldição subisse pelas raízes daquela esplêndida planta, seria para todos nós, não para mim, e o meu pai continuou a contar que ninguém sabia quem eram, dois deles tinham até aspecto de estrangeiros, louros e russos, talvez de Leste, e um mais aportuguesado, mas se calhar também estrangeiro, estava marcado de cruzes no peito. Ele não vira, mas o seu pai sim, e o pai de seu pai, e desde então que aquelas matas navegavam durante as noites, o vendo empurrando ramos e folhas, mas colando em figuras invisíveis que se apresentavam aos sentidos. Ele nunca vira, mas quando à noite ficava com o pai a vigiar, nas épocas em que os lobos desciam  aos vales, cobria-o um frio que não soprava dos termómetros e era outra bolina qualquer.

Mas os tempos passavam, e se calhar, disse-nos, o Passado é como as linhas de lápis que trazíamos da escola, em contas mal multiplicadas: usando a borracha, desaparece, e ele via na nossa vontade de fazer de uma árvore um cadafalso da preguiça o estertor final de quem não alcançara descanso de forma natural. Nas tardes seguintes, veio ajudar-nos a acabar a obra. A mãe estava um pouco melhor, e à medida que precisou menos da botija, sem que a arrastasse entre solavancos de um mundo desnivelado, ele certificou-se que nem os lobos, nem qualquer outro sinal do mundo que nos cobre vinha para nos buscar. Eu preguei no último prego, e mesmo no dia em que a mãe finalmente conseguiu sentar-se de novo na terra em que chegámos a temer vê-la como decoração de pedra. Com tábuas, fizemos uma escada, e ela pintou os primeiros degraus, ao contrário do que o meu pai queria, temendo que o cheiro a tinta fosse demasiado para os seus mirrados pulmões. Sempre pensei que eu e os meus irmãos éramos uma pequena reserva de oxigénio, e que se ela melhorara fora para nos beijar a testa uma e outra vez, como quem procura na pele de quem mais ama a fotossíntese do corpo. Ela chegou a dormir várias noites naquele chão torto, tão torto quanto o seu sorriso. Não sei se espantámos os fantasmas, mas hoje, olhando para a casa que se sustém, conto para mim a história de quem se aguenta em pé e em pé sustém almas penadas e caídas. Quando subi, tantos anos depois, à casa, aguentava-se, e eu até tinha mais uns quarenta ou cinquenta quilos. As madeiras estalaram, mas nem temi cair. Sentei-me e na palma da mão, um frio agudo encharcou-me os ossos, como se um regato que me banhou em criança jorrasse a partir da madeira em adulto. Sem saber porquê, fechei os olhos, e vi a minha mãe em filme nas minhas pálpebras, e o que fizéramos naquelas férias depois da casa, de como ela e o meu pai, numa floresta amaldiçoada, tinham o condão de tornar três garotos em cavaleiros e feiticeiros, e de como uma casa da árvore pode ser feita de mãos, e de sangue em corrente. Cada canto tinha as nossas assinaturas,e talvez por isso a casa nunca se corrompera. Porque se dos destroços não pudesse sair uma vitória, a matéria era um contínuo desperdício; e nas minhas contas, quatro dependurados perdem para cinco perfeitos sempre em pé.

Ainda que um deles tivesse que passar o Verão a comer com a mão esquerda à conta de três ossos tortos nos dedos da mão direita. Mas isso seria contar a desastrosa relação que um martelo tem com a minha anatomia, e seria uma história bem maior do que esta.

1 comentário:

MiSSS disse...

sempre quis ter uma casa na árvore mas ainda não saí da selva de pedra
beautiful story :)