domingo, outubro 18, 2015

Colectâneas I



Da lista de coisas que se escrevem quando não somos nós, ou o somos em excesso:

O meu contorno levita sobre ti, como se o desejo de ser em ti me desse poderes de me desencarnar e surgir em teu redor, como uma lua em órbita num delicioso planeta em com a tua forma. Pouso na tua boca, e faço-me um verbo: ser. Nesse momento, deixo de existir, mas vivo finalmente em ti.

Sonhei ontem que na floresta, nos rumores dos ramos, sopravam palavras que te tentavam apanhar, mas sem nunca sequer criar raízes em ti. Estavas muito acima delas, e eu muito abaixo das raízes, e só te entrevia em frases curtas e sem sentido, e na tua mão, seguravas um livro onde o teu corpo desaparecia, um livro verde e castanho que luzia quando aberto, menos que o teu sorriso, muito menos que os teus olhos, mas mais do que os teus cabelos, que se confundiam com o vento e com a terra. Desapareceste para dentro do livro, e perdi a capacidade de falar. Os ramos calaram-se então, e pediram desculpa deixando cair as folhas sobre mim como se aconchega uma criança que perdeu a inocência. Sem cair, o livro levita e tu voas bem acima do mundo, pois pertences a um espaço do universo onde moram as respostas.

Na bolsa a tiracolo, as palavras vagueiam como medusas. Cada uma delas se prende aos meus dedos, queimando, cheias de veneno, mas também de promessas: juramentos tóxicos. A rubra pele endurecida de tantas frases juntar tira mais um vocábulo, cola com outro, marca o compasso de uma marcha de soldados vagos e inglórios. Batem continência à tua porta, esperam ordens, prontos a ir para a guerra. Quando as bombas caem e se vaporizam, o veneno é para mim, a bolsa um dano colateral. No meu peito, combato uma guerra de trincheiras.

Ontem, perguntaram-me por ti. Não tive resposta, porque desde que te foste que és uma questão. Não lhe satisfiz a sua curiosidade; e assim, o meu coração voltou para debaixo do cobertor, que ainda não era hora de acordar.

Explica-me porque é que a tua cara é a razão pela qual eu desejo que o mundo continue a rodar em torno do seu eixo.


Sem comentários: