sexta-feira, setembro 23, 2016

Cronistão 5: O mundo animal



O aspecto é de salão paroquial em Medellín, ainda para mais quando nos deparamos com um jardineiro caprino de quatro patas, mas o Park Hotel revelou-se um local agradável para repousar a nossa coluna nos dias que passámos em Karakol. A dona, uma senhora com os seus sessenta anos cujo nome a minha memória deixou fugir, não fala inglês, mas revela-se prolixa em russo, como qualquer bom quirguiz. Sabe que Portugal é na Europa, mas perde-se um pouco nos pormenores e também não é importante. Traça o limite, no entanto, na presença de calçado no interior do seu espaço: o hóspede ou entra de chinelos ou descalço e nem há contra-argumento! Existe um pequeno móvel com prateleiras para sapatilhas e sapatos e botas. Pisem as carpetes da simpática senhora com algo mais do que uma tira de plástico a proteger-vos as palmas dos pés e serão brindados com um olhar mais fulminante do que uma pistola. E por falar nisto: lembram-se dos Clint Eastwoods de que vos falei na crónica anterior? São tipos que por acaso têm uma arma em casa e, em ocasiões especiais (como, por exemplo, quando um grupo de ocidentais chega de malas aviadas a uma hospedaria de Karakol) surgem com a intenção de garantir que tudo está bem, que estamos em segurança.Talvez lhes escape a noção de que observarmos, assim do nada, uma arma de fogo nos deixe poucos seguros, mas tirando isso... bom trabalho! Ocasionalmente vemo-los na "lounge" do hotel, sempre a relaxar na Internet, porque, afinal, existe um código internacional de laxismo, acima de qualquer cultura, entre seguranças do Ocidente e do Oriente.



A tarde desse primeiro dia em Karakol fez-nos rumar aos Sete Bois de Vermelho, rochedos enormes em manada a poucos quilómetros da cidade. À noite, saimos para jantar e foi logo na primeira casa que nos pareceu aceitável. O nome está em cirílico e soa a algo como Micmasa, e infelizmente, quando abrimos os menus, apercebemo-nos de duas coisas: que tudo está em grafia russa e também que a dona do Park Hotel não é a única pessoa do Quirguistão ligada ao sector de hotelaria e restauração que desconhece uma língua que é falada por mais de metade do mundo conhecido. Somos convidados por uma prestável, e muito aflita, empregada de mesa, mais nova que eu e até do que o meu irmão, vestida de seda azul, lenço amarelo na cabeça e o sorriso de um veado que ficou encadeado pelos faróis de um jipe. Em atrapalhação, leva-nos a observar no exterior um painel publicitário de lona, onde figuram imagens bem convidativas dos principais petiscos da casa. A olho, e sem saber bem ao que vamos, escolhemos. Eu arrisco cobleti, que é algo parecido com panado de vaca. Come-se, embora não fique com vontade de abusar. No final, deixamos uma gorjeta de 100 som à simpática garota. Ela julga que é erro, tenta devolver e gentilmente fazemo-nos entender que é uma dádiva que lhe damos pela atenção e esforço que nos deu. Ri primeiro, quase chora depois, segurando a nota como se capturara o mais importante bicho do Pokemon Go. Para ela, é talvez uma fortuna; para nós, portugueses que se começam a sentir alemães nesta terra de moeda desvalorizada, é simplesmente euro e meio. Que no outro lado do mundo, longe dos nossos problemas e da nossa classe média de 500 mil euros, são o suficiente para colocar luzes de Natal em pleno Agosto no dia de uma miúda. Há maneiras piores de me sentir turista.



Caio na cama às dez da noite e apago-me de imediato. Finalmente convenço-me de que tudo é real e o meu cérebro bebe todas as horas de sono que consegue, porque na manhã seguinte temos alvorada às sete. Nem me custa acordar. Desço descalço e tomo o pequeno-almoço de duas opções: omelete de queijo ou crepes. Sejam crepes então e conversamos o que nos espera como programa da manhã: uma visita ao mercado de gado local. Uma coisa é falar; outra coisa é dar por mim numa coisa que faz a Ovibeja parecer a Expo 98. O chão mais limpo é de terra, porque no momento em que entramos num espaço com o tamanho do Queimódromo de Coimbra, lavrado de gente com os seus animais, rapidamente o gesto reflexo de não pisar bosta se digere: tudo acaba por ser bosta. Cheiro mais com os olhos do que com o nariz, pois tantos estímulos transformam o meu corpo numa sinestesia permanente e mal consigo apreender tudo o que me cerca. Vacas, cabras, ovelhas, cavalos, bichos humanos, todos em caminhos que nem se marcam mas se sabem, os de quatro patas puxados pelos de duas patas em cordas ou guitas, olhares perdidos, ignorantes e por várias vezes, pessoas que engelham pânico na presença de uma máquina fotográfica, como se um "clic" fosse possessão, alguns fazem sinal da cruz na minha direcção e sinto-me um exorcismo forma humana, o que se acentua mais quando cabras se acariciam nas minhas calças para abrir caminho.


Há gente que vende ferraduras, que soam forte mesmo sem fazer barulho, principalmente nas mãos de uma menina que domina o ferro e ainda olha para mim com vista dura, prática, esperando a foto mas prosseguindo. Um tipo empina o cavalo à minha frente e sinto-me num western asiático, ilusão quebrada quando puxa do telemóvel e conversa assim montado, porque quando se dirige um equídeo não se paga multa. O barulho é galopante, uma mistura de sirenes, bramidos, o reino animal manifestando-se sem grande desespero, mas exasperando-se. É a missa de Karakol, toda a gente vem, mesmo sem nada para vender, porque pouco mais há que passe por entretenimento nesta terra. Conversa-se no meio dos bichos, alegremente, livremente, mesmo que a Polícia passe de vez em quando, talvez também porque neste fim de mundo, onde um homem é segurança só porque possui uma arma em casa, não tem nada para fazer. Cumprimentos e abraços, um fã de Cristiano Ronaldo sabe que sou português e insiste que lhe tire uma foto, e depois aos amigos, e depois à família e acabo por traçar um retrato oficial com bichos e tudo. Sinto o que nunca senti na vida: o homem civilizado no meio da aldeia, uma aldeia que já só me lembro de quando mal tinha pernas para trepar limoeiros e laranjeiras; quando o mugir das vacas e o relinchar dos cavalos dança no meu pavilhão auditivo, obliterando tudo o mais, sou recordado que venho de algo um pouco mais moderno do que aquele recinto, mas pouco, que vi e ajudei na matança do porco e na vindima, que não tratei de amimais mas vi tratar e ajudei a minha avó a matar cobras à pedrada. Eu não sou dali, mas parte daquele pequeno circo ressoa em mim e leva-me a outras memórias. Enquanto fixo tudo em fotos, e vejo um cavaleiro que foge para longe quando me vê apontar a máquina, sei que apesar de dar gorjetas, não sou muito mais do que aquela gente simples e não simplória, que teme que a sua alma fique presa dentro de uma caixa negra, que se mistura com a bicharada porque lhe está ligada.



No final, arruma-se o que não se vendeu, e alguns homens têm de puxar bodes e cabras à viva força. Em contentores que parecem saídos da Lisnave, há lojinhas que vendem tudo ao copo, água inclusive, e outras coisas. Quando se viaja, não se deve procurar o que se tem, ou então acha-se o repetido; no entanto, por mais longe que caminhemos e voemos, haverá sempre um ponto em que nos encontramos, seja nas ramagens das florestas, no murmúrio das ondas, nas curvas empedernidas das ruas fechadas de velhas urbes; ou então simplesmente num tempo que foi meu, em que todos os sentidos se misturam para me devolver o que sou de verdade e não muda com as minhas rugas, os meus erros, as minhas intensidades da idade. Num mercado de gado, reencontrei-me pessoa; e isso, amigos, é o fungaga da bicharada.


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