sexta-feira, setembro 30, 2016

Cronistão 7: Fadado para morrer



Desde o primeiro dia que nesta terra distante a morte me tem passado pelos olhos. Não vestida de negro, foice a tiracolo, mas a maneira que nós, humanos por natureza e inclinação, arranjámos para mantê-la presente como fantasma: campas alinhadas em cemitério, últimas moradas de gente no momento em que expira ficou mais sem-abrigo do que abrigada. Se por cá reina a opressão do branco, campas como filas de almas penadas a ocupar os cemitérios, aqui as necrópoles são quase literais cidades de morte. A semelhança de alguns túmulos com casinhas de brincar é por demais evidente e as lápides fazem-se acompanhar de zero representação. Há diferenças substanciais em relação ao Ocidente e a primeira é a localização. Habitualmente, estão fora das povoações, e por fora quero dizer uns dois ou três quilómetros, pelo menos. Encontramo-las à beira das estradas, raras vezes delimitadas, apenas ajuntamentos de memória. As cores da paisagem dominam e aqui, nesta ligação que fazemos entre Karakol e a nossa próxima dormida, são de vermelho arenito. Por fim, não se usam fotos: há retratos esboçados do ente falecido, tentando talvez apanhar-lhe mais o espírito do que a forma. Quando olhamos fixamente, as faces esfumam-se um pouco, tremem e as pessoas voltam à vida em arremedos. É irresistível parar e tirar fotos. Do nosso lado direito, a margem sul do Issyk-Kul contrasta com a oposição de brutais montanhas, guardiãs dos mortos, respirando a paz da última morada. Noto que todos têm aqui lugar: há campas muçulmanas, ortodoxas e até comunistas, presumindo eu que o ateísmo também alapa morada. Muito ecuménico, este espaço, e quanto mais o fotografo, mais em paz me sinto entre pilares de pedra que se erguem dos restos mortais de alguém. Inunda-me uma ideia em expansão, nesta cultura diferente, de que faço parte da algo maior, seja isso o que for, sem símbolos ou marcas.


O encantamento continua uns quilómetros mais à frente, quando sinto a carrinha virar para uma estrada de terra batida. Uma placa indica "Skazka" e não entendo Quirguiz, como sabem. Pergunto o que quer dizer e respondem-me que vamos entrar no desfiladeiro das fadas. Não estou na Irlanda, mas aceito que existirão também tais criaturas na terra dos cavalos, porventura unicórnios. Cinco quilómetros depois, lidamos com dois garotos que são reis de uma cancela. Se queremos passar, cada um paga 50 som. Baratinho, por isso sacam-nos o dinheiro e avançamos então até um estacionamento improvisado na base de um barreiro. Mal saio, o sol oprime-me de imediato contra o solo e quando os meus olhos se ajustam ao enigma, contemplo obras de arte esculpidas por mitos com duas mãos. Numa larga extensão de forte vermelho acre, onde consigo escutar o tinir de milhões de anos de planeta, ergue-se uma cidade que não existe porque não é cidade. Seguem-se casebres, avistam-se pináculos de palácios que jamais existirão. O vale é um desfile de ilusões de óptica oferecidas com desprezo pela água da chuva e um vento caprichoso, mas sensível. Um torreão anilhado, assente no dorso esburacado e arenoso de um lobo de rocha, é o panóptico que a todos controla, invasores de um espaço privado desse senhor feudal inclemente que é a Natureza. Fotografar tudo isto é mais missão do que desejo. O meu dedo anseia por ganhar calos e tendinite, capturando esta aldeia das fadas onde a luz do sol é uma dança sem fim. Quirguistão e Magonia não rimam sequer na magia da presença, mas os seus domínios, onde elfos e duendes e gnomos têm também o seu bairro próprio, estão agora no digital de um cartão de plástico, mera sombra do que vimos, mas uma poderosa alegoria da caverna dos nosso olhares.


Subo até à base do torreão e sento o rabo em pó de fadas, desiludido por não ser LSD. Recolho areia, atiro-a e estupidamente, mas de propósito, tomo um banho, mas sinto--me outro, telúrico, pronto para me embrenhar no labirinto das fadas. Saio não pelo fio de Ariadne, mas puxado pelo mistério e pela vontade de descobrir mais. Sem querer, sinto-me preso numa teia de memória, o calor que me banha é superior ao do sol e penso em alguém que faz da magia das fadas a banalidade de um sorriso e num beijo , prende-me a um encanto onde sou simplesmente mosquinha, nem morta nem viva, só presa e encantada nesta polis de faz de conta, vermelha, mágica e ilusória.


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