quinta-feira, outubro 11, 2018

Perugrinação 5: Não se tiram férias da realidade


São seis e meia da manhã. Estou fechado dentro de um autocarro que será o meu transporte nos próximos dias até chegar a Cusco. As estruturas de transportes públicos no Peru são quase inexistentes, os transportes privados caríssimos. Os próximos dias incluem uma viagem para sul e a solução mais prática é embarcar num autocarro de uma companhia turística chamada Peru Hop. Não é particularmente confortável, mas já viajei pior, como sabe quem leu a saga do Quirguistão. Ir de um ponto para outro é sempre a parte mais chata de quaquer jornada. Se escrevesse um livro de viagens (e vários entre vós pedem-me que o façam, bem sei) com um capítulo "Lições que aprendi à volta do mundo", este seria um dos mandamentos. Por muito que a paisagem apele, nunca estamos completamente em nós para apreciá-la. A estrada pode ser libertadora, mas quando a obrigação de chegar a um ponto se instala, mais vale chamá-la de morfina. Olhei na noite anterior o mapa - e podem fazer esse exercício agora. De Peru a Cusco cansam-se 1310 quilómetros na rota mais directa; mas visto que esta passa por estradas que fazem tremer de medo lobisomens e vampiros, tal é o seu grau de perigo, a opção faz-se por dar a volta à cordilheira andina, estendendo o périplo quase 1700 unidades máximas de sistema métrico de distância. O sistema da Peru Hop é simples: vamos parando em vários pontos pelo caminho, sais e entras quando quiseres desde que avises. Nós inscrevemo-nos para a viagem completa, embora haja pontos a visitar. É um supositório às prestações. Na mochila tenho água e livros. São analgésicos, mas pouco mais.

Lima não acorda, acho, porque implicaria adormecer. A esta hora, o trânsito ferve e as pessoas não estão em casa, quanto mais na cama. Em vários partes, vejo homens sentados a ler o jornal. Então, pensam vocês, os quisoques já abriram? Não é necessário: apesar do tamanho gigantone desta metrópole, ainda há rapazinhos a distribuir jornais porta a porta, arrastando as suas bicicletas. Gabo-lhes o esforço, nem quero imaginar a hora do despertar. Aqui estou, de olhos abertos, pouco, mas por diversão e uma vez por festa. Estes garotos, todas as madrugadas, saltam da cama e lá vão pelas ruas. A saída da cidade demora uma hora e tal e espera-me a mais demolidora visão que tive de Lima até agora e não envolve um estupendo monumento ou o mar infinito. Como uma muralha que ninguém pediu, quase 180º em meu redor, estende-se uma enorme favela que vai rodeando a cidade quanto mais nos afastamos do seu centro. A mudança é brusca, mas notória, representada no mundo físico por um muro que separa a área urbanizada destas frágeis, ténues casas. Aqui no Peru existe o eufemismo de "povoados jovens". São favelas, ponto, barracos que se espraiam pelos morros castanhos, chocando de frente com a linha que define o aceitável do dever de ignorância. Aqui habitam e fingem que vivem quatro milhões de habitantes. São três Lisboa e picos. À barreira, chamam "Muro da Vergonha", e entende-se porquê. Ela é real e causa um efeito profundo: não há passagem, nem sequer pedestre, que permita atravessá-la. Não existem portas ou aberturas, vê-se arame farpado no topo em toda a extensão, torres com mais de dez metros onde seguranças vigiam os habitantes. São panópticos da miséria social. Dez quilómetros de um esforço concertado para separar os peruanos de Lima em tons de sol - sendo aqui não falo do astro, mas da moeda. 


O complexo chama-se "Pamplona Alta", um aglomerados de paredes coloridas com telhados a fingir que tapam. As moradias comuns de Pamplona não tem água canalizada, ou sequer casa de banho, que é um buraco no exterior. Há uma ordem bem definida: quanto mais alto se estiver, mais precária é a sua situação. Os últimos a chegar ficam com os piroes lugares - aqui ninguém paga mais imposto pela vista, mas é taxado de outras maneiras. As ruas foram esculpidas na pedra, a segurança é garantida fechando as ruas com cancelas, com o principal objectivo de separar os ricos dos pobres. Pintada num muro, consigo entreler uma mensagem em espanhol: "Não se aceitam drogados, ladrões, membros de gangues, traficantes, etc. Sob sanção comunitária". Até a lei é local, como se Pamplona Alta estivesse removida da restante capital. Um estado dentro de um estado, um quintal que foi esquecido e não deve ser lembrado sob pena de gangrena. Numa ironia que de delícia só tem o fel, do lado oposto do Muro da Vergonha, são visíveis opulentas mansões. Do que leio mais tarde, o preço médio ronda os quatro milhões e meio de dólares. Os moradores e compradores são invariavelmente brancos. Em Pamplona, vivem os índios, os negros. O abismo da pele é mais claro do que a tez dos descendentes de europeus. Entre o muro e a estrada, há visões surreais, como se o realismo mágico da América do Sul não fosse uma criação literária, mas sim uma apropriação de Borges: pela janela, vejo um rapaz que não tem mais de 14 anos, incentivado pelos amigos em exercício. Faz abdominais com um bloco de cimento em cima do peito, bufa e esforça-se, aplaudem-nos e ele continua. Podia parar, mas não o faz. O bloco continua a oprimi-lo, mas o rapaz insiste na mesma, vai levando a água do suor ao moinho do esforço. Não estava, nem trava. Segue assim mesmo.

Bem perto, as ruínas de Pachamac aparecem subitamente, saídas de trás de um triste monte de areia. Estão degradas como as barracas da favela. Quem visitar, lê a história de Pachamac, uma cidade pré-inca que durante quatrocentos anos se aproximou de uma Lima sem forma e solidez e que só os coloniais espanhóis criaram. Era um local santo  amando divindades que comunicavam o futuro, um oráculo para todos aqueles que na zona costeira temiam os chiliques do subsolo, terramotos de sobressalto. Percorriam os velhos trilhos, as estradas de dor em pedra, dias e dias que hoje fazemos horas apenas para perguntar a estátuas impassíveis a razão de nem os seus próprios pés terem o merecido descanso da horizontalidade. Hoje respondemos aos terramotos com sismógrafos; na Antiguidade, os Lima e os Wilmac apenas agarravam e brandiam a súplica. Antigos e contemporâneos só têm impotência para oferecer, mas a nossa desenha-se em grafismos de delirium tremens. Pachamac significa por isso "alma da terra" ou do mundo. Era uma divindade inquieta. Os Incas continuaram o seu culto e mantinham a crença de que um movimento da sua cabeça cuspiria sismos. Por isso mesmo não se atreviam a olhá-lo nos olhos e os sacerdotes do seu templo aí entravam de costas. O espaço ainda por lá está. Esta zona religiosa era também um catálogo de acompanhantes para os imperadores incas. Para aqui se levavam as mulheres que compunham o, digamos, ginásio de diversão sexual da figura maior desta civilização. O nome dado ao edifício onde elas habitavam, e não estou a gozar, era Mamacona. Entendam daqui o que quiserem. Para impedi-las de fugir, havia numerosos guardas, cuja responsabilidade e diligência se recompensavam com a castração. Numa história por demais familiar no país, Pizarro ouviu falar da cidade. Enviou um exército para pilhá-la e destruí-la. Pachamac deve ter abanado a cabeça de frustração, não consta que o Pacífico tenha tremido ainda assim.


O contínuo rumo a Sul afasta-nos dos prédios e Pamplona Alta lança a sua sombra numa parte do país que se cobre de penúria. Pucusana, Sunampe, Cerro Azul ou Bujama Alta fazem de conta que se pode lá habitar. mas as pessoas encolhem os ombros, ignoram os montes de lixo constantes e as ruas não alcatroadas, os animais companheiros fiéis do indizível e tijolos amontoados de ilusão de casa e levam a sua vida. Volta e meia, procuram a companhia dos cartazes eleitorais. Todos prometem mundos e fundos. Os problemas do país medem-se pelas promessas eleitorais: em Lima, a grande preocupação era o o barulho das buzinas no trânsito: aqui, garante-se que o próximo ciclo eleitoral trará electricidade e talvez alcatrão. O Peru é uma lâmina: às vezes alivia, noutras entra fundo na carne. Aqui, não sei sequer se há carne para cortar. Não consigo esquecer isto enquanto a camioneta avança. Numa ocasião, temos de contornar dez quilómetros adicionais, pois uma ponte titubeante parece um gráfico demográfico do século XIV europeu, o que impede a natural progressão do trânsito automóvel. Este desvio tem um destino, uma fazenda colonial chamada San Jose. Uma pausa para visita guiada à era da escravatura, só numa de limpar o palato. Uma guia peruana muito expedita e apaixonada pela história do espaço explica-nos coisas: que o primeiro dono se chamava Salazar, o que provoca olhares cúmplices entre os Portugueses; que aqui se produziram açúcar, algodão e mel; que foi passando de mãos graças a casamentos arranjados; que se tornou no foco de vinganças durante a passagem para a independência, como símbolo fatal do poder espanhol nesta província de Ica; e que depois da Reforma Agrária de 1960, o latifúndio foi dividido e a sua última dona, Manuela Eguren, abandonou a Hacienda com os seus doze filhos. Uma delas ainda hoje detém esta casa e preservou-a como um museu. Conservou-lhe a memória do esplendor e acima de tudo, da barbárie. Como qualquer sede de plantação colonial, o trabalho era escravo. A visita colide-nos com essa realidade, fazendo-nos experienciar a tortura e a arbitrariedade da dor. O quanto um corpo pode estar à mercê da linguagem agressiva da autoridade sem limite. Nos subterrâneos da Hacienda, há quilómetros de túneis ligando câmaras que serviam de habitação a estes escravos, todos africanos, pálidos num negrume que os engolia no final de cada estertor diário. Apenas com as lanternas dos telemóveis, é fácil perdermo-nos aqui, e acontecia muitas vezes a quem quisesse fugir, morrendo desorientado de sede e fome. Os túneis obrigam-me a andar corcunda e são eles próprios um castigo. A vida do subjugado era simples: um dia de confronto com a terra e o chicote; uma noite de sono embebida do cheiro a evacuações corporais e roçada em corpos semi-mortos. Não admira que no século XVIII, uma revolta definitiva tenha acontecido e os donos da Hacienda fossem decapitados e torturados nos mesmos intrumentos que durante décadas serviram para reforçar o poder colonial. Numa das Câmaras subterrâneas, deixo-me ficar para trás e abro a palma da mão no chão. Quase que sinto a música do sangue, o cheiro das lágrimas, tudo na ponta dos meus dedos. O ar pesa mais do que a consciência. É uma experiência estranha, ectoplásmica.


O tecido da América do Sol, sabe quem leu Galeano, é o da mulher constantemente violada, num ciclo do qual os seus filhos farão parte. A pobreza às portas de Lima e esta memória do horror num canto que se quer lembrado mas nem por isso, de tal forma que até as pontes se encolhem numa tentativa de deixá-lo como ilha da amnésia que ninguém pode pisar, são tão primos quanto as aves e os dinossauros, com a diferença de que os dinossauros se extinguiram. Este Peru de exploração vive, respira, tem sangue quente e viçoso. Nos últimos anos, tem havido uma tola discussão sobre a assunção de culpa da escravatura por parte de quem explorou, falam-se de indemnizações que são jogos de revisionismo históricos destinadas a armar demagogos políticos e desconhecendo que a crueldade não é retroactiva. Reduz tudo à Europa, quando a exploração do outro é um traço do Homem que vem desde a Mesopotâmia. A palavra "escravo" origina nos brancos eslavos levados pelos Vikings para a Àsia, numa trasladaçao populacional perfeitamente comparável à africana na época da Expansão Ultramarina. Os Europeus não criaram a escravatura, tornaram-na global, compreendendo umas das verdades imutáveis de qualquer paradigma civilizacional: para que uns estejam confortáveis, o desconforto de outros será máximo. Os negros que aqui morreram foram arrancados aos seus pelos seus, depois vendidos a estrangeiros para morrer num continente do qual nem uns nem outros eram originários. Pamplona Alta e a Hacienda San Jose são símbolos do outro lado deste hipnótico e paradoxo continente, que exige de nós o coração se queremos elevar a alma e perceber onde estamos. Um dos meus livros de viagem é a "História Universal da Infâmia", de Jorge Luís Borges. A infâmia pode ser universal; mas quando escrita por alguém da América do Sul, é menos um romance e mais um diário com pinta de metrónomo, tão implacável como a memória que permanece na acácia de 400 anos que ainda resiste na praça principal da Hacienda - e tão decrépita quanto esta.

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