quinta-feira, outubro 25, 2018

Perugrinação 7: Entregue aos bichos


Se têm a minha idade ou próxima, recordam-se de "A arca de Noé", um enternecedor programa das manhãs de fim de semana onde éramos convidados a fazer amigos entre os animais. Ninguém pode negar que havia ali uma magia qualquer, que fazia com que apresentadores tão díspares quanto Carlos Alberto Moniz, Fialho Gouveia e Ana do Carmo pudessem ter encabeçado as várias temporadas sem que nenhum parecesse fora do seu elemento. Talvez fosse da garotada, mas sempre senti que tal se devia aos bichos. Peludos, pequenos, assanhados ou até deitados no seu canto... A fauna vasta com que eu, como criança, era presenteado todas as semanas abriu a minha curiosidade e empatia para o mundo animal. Como qualquer bom programa de televisão deve fazer, educou; e ficou-me sempre pendurada na privação a ausência de um animal de estimação. Apareceram uns comigo já adulto, mas nunca é bem a mesma coisa. Do que os meus pais contam, fui uma vez ao Zoo de Lisboa, muito novo, e as poucas vezes que lá voltei convenceram-me de que não é assim que se vêem animais. Na nossa antropologia, quanto mais nos afastámos da nossa natureza original, para segurança, maior surgiu a necessidade de trazer a selva até nós, seres urbanos, ao invés de habitarmos entre o indomável. "A arca de Noé" deve ter batido nessa savana profunda da minha mente que ainda julga crescer em África; e enquanto cresço, cresce também em mim a ideia de que os animais não pertencem em jaulas ou até com liberdade cortada enquanto nos servem de apoio psicológico e consolo de solidão. Devem ser livres. Mas os humanos, e muita gente não acorda para esta realidade, estão condenados ao castigo de dominar a Natureza para daí retirarem o conforto que os impede de regressar à selvajaria ou de forma tão simples abraçar bichos, tê-los consigo. Não gosto de zoológicos; abomino circos; acho parques de diversão marinha uma das piores coisas que criámos como espécie. Quando cheguei ao molhe principal de Paracas, para me enfiar num barco rumo à Reserva Natural das Islas Ballestas, queria descobrir que ser voyeur indesejado também iria contra a minha moral.

Pequena introdução: as Islas Ballestas são um pequeno arquipélago situado ao largo de Pisco. Ganharam a alcunha de "Galápagos dos pobres", porque também aqui se concentra uma riqueza incrível de vida animal, que vai desde pinguins e leões marinhos até golfinhos e pelicanos. Devido a isto e à sensibilidade do habitat, foram declaradas reserva protegida pelo governo peruano. Tal significa que não podemos nem caminhar sobre elas, nem pensar minimamente em nadar nas suas águas. Estamos prontos para partir às oito da manhã e já uma multidão aguarda o seu lugar numa das várias lanchas rápidas que fazem a travessia de meia hora desde Paracas até ao arquipélago. O céu cinzento é cimento de nuvens que estão para ficar, mas não há frio. Quando me passam um colete de salvação tão laranja que quase me julgo Dennis Bergkamp no seu auge futebolístico, coloco-o e penso no que aconteceria se caísse da embarcação. As águas negras, escuras, quase nocturnas deste Pacífico mastodonte fazem-me criar que não mais viria à tona. Instalo-me na minha cadeira e de forma instintiva, enrolo uma corda no meu antebraço. Já andei várias vezes de barco, mas não me apetece arriscar. O meu maior medo, na verdade, é que a relação precária que mantenho há tantos anos com o meu estômago volte para me assombrar. Mas tal não acontecerá.
Hoje, pelo menos. Voltaremos a isso mais tarde.


O passeio começa. A saída lenta, morrinha, faz-se por entre as várias cascas de noz que se desculpam como barcos de pescadores ancoradas na baía de Paracas. Quase todos velhos, nenhum cinzentão como o céu. Alguns nomes são clássicos ("Santa Maria"), outros trágicos ("La llorona", que não sei mesmo se tem a ver com o famoso mito da assombração lacrimejante da América Central) ou simplesmente épicos ("La falsa virgen", numa declaração de intenções). Ninguém está a bordo, parece-me, embora de quando em vez se ouça o ranger das cordas, o estalar da madeira pressionada pelo salitre. No topo de alguns mastros, corvos e pelicanos esperam os mestres na saída para o mar, ou agourando ainda mais a vida dura de pescadores. Nada que preocupe o meu guia, que vai lenta e metodicamente contando a história de Paracas e das ilhas. A voz ganha uma outra vida quando nos cruzamos com o enigma maior que é "O candelabro". Já o mencionei na crónica anterior. É um geóglifo, portanto um desenho  feito em matéria rochosa, tão declarado e evidente que não pode ser coincidência. 180 metros de comprimento, 2500 anos de idade. Ninguém sabe quem o fez ou para que servia. A comparação mais evidente é com os rascunhos de Nazca, mas tal civilização habitou centenas de quilómetros mais a sul. Estampado numa duna que enfrenta o mar, quer saudar marinheiros, ninguém mais. Nunca foi apagado pelo vento, pela chuva ou pelo tempo: o seu poder está no mistério e na sugestão. Deve ter sido difícil fazer "O candelabro" nesta zona exposta aos elementos. Para mais, um propósito estava definido por quem o fez - sabemos que alinha pela constelação do Cruzeiro do Sul, como tantas outras construções antigas com uma clara intenção astronómica. No entanto, o local onde se encontra numa teve qualquer importância. Não é ponto de partida ou chegada para o que seja. É deserto. Onde se instalou uma desenho de iluminação que nem por isso traz mais luz sobre este assunto.


O céu começa a cobrir-se de dezenas de aves. Estamos a chegar e um arco de rocha cumprimenta-nos, agarrado a um enorme rochedo onde descansam pássaros. Apesar de me sentir desconfortável por este papel de turista entre câmaras que se erguem na sua intrusão, é impressionante a quantidade de animais que aqui se encontram. Onde é possível que algum se instale, a rocha some. As lanchas circulam lentamente em redor das ilhas e podemos observar que a maior parte das espécies está na hora da sesta. São exércitos parados, esperando ordens. Aqui e ali, guardo momentos, como um desorientado pinguim que caminha tenuemente numa falésia, quase caindo quase voando. Está isolado - os seus colegas encontram-se mais acima, protegidos. Pertencem a uma das mais raras espécies, o pinguim de Humboldt. Como o barco não está tapado, parece um safari e nem de propósito surgem os leões marinhos, refastelados nos cantos possíveis. Passamos muito perto de alguns, em rochas, bocejando, abrançando o princípio da inactividade. A semelhança com salsichas cinzentas é admirável e apenas os bigodes e um focinho quase Chapliniano impedem a confusão. Não mostram medo, talvez alguma indiferença perante os nossos olhos. Cada movimento seu causa um enorme frenesim entre os turistas que me acompanham. Alguns seguram máquina e telemóvel em simultâneo, numa turba feroz de registos. Seja para redes sociais, seja simplesmente para reforçar a sua presença no momento. De qualquer forma, os animais voltam ser usados para nos trazer de volta à vida e no prolongamento do nossos conforto preguiçoso. Talvez tenhamos vindo até estes, mas ainda assim não consigo sentir que, de alguma forma, continuam a ser nossos prisioneiros.


Vejo um guindaste partindo do topo de uma faléssia e logo de seguida, um aglomerado de casebres brancos, cobertos de excrementos voadores. No seu prolongamento, um cais de madeira suspenso, um milagre que o tempo ainda não derrubou na sepultura marinha. Há algumas décadas, estas ilhas mostravam outro tipo de riqueza ao mundo, ainda que também tivesse origem animal. Mineiros chegavam a este cais dispostos a extrair o guano escondido nas cavernas interiores, caca das várias espécies de morcegos aqui residentes. Pelos seus altos níveis de nitrogénio, era um fertilizante muito procurado, inclusivé na Europa. Ainda hoje se dá essa recolha, embora já não sejam necessárias estas infra-estruturas; para além disso, é uma actividade extremamente regulada, de forma a não perturbar estas espécies. Tal tarefa é deixada aos turistas... Os bichos, no entanto, não se deixam incomodar. Ocuparam estes restos humanos como seus e podemos vê-los descontraídamente a balouçar nas podres cordas ou observando-nos, num reflexo devolvido, pousados nas decrépitas tábuas do cais. Tudo à nossa volta produz estímulo e em redor dos barcos, leões marinhos mostram a cabeça, mergulhando e ressurgindo aos seus desejos. Antes que os caros se afastem em definitivo, uma visão bem fofa - num recanto de uma caverna, três pinguins bébés felpudos mexem-se em agitação, parecem esperar comida. São brancos com salpicos negros, imitam pássaros verticias com penas que cedo cairão. Não se despedem, nem precisam. Sinto-me um intruso, ainda que em meu redor a mania dos flashes. cresça. Percebo que o meu turismo é outro, um onde estou sozinho com o resto do mundo. Ver pinguins e outros mamíferos que só tive em frente no Oceanário é bom, mas não sei se um pouco de mim não morre com isso. Pior: se um pouco de mim se deveria sentir mais vivo com isso e não consegue.

Já em terra, ainda ouço palavras como cormoran e boobies, uma delas mais divertida do que outra. Dizem respeito a pássaros. Todos são amantes da zoologia agora O autocarro da Peru Hop espera-nos com destino a Huacachina. Antes de entrar, passo por uma casa com um gigantesco cartaz autárquico. Apoia sem hesitações Lorenzo, um homem com uma visão, uma promessa: vai trazer para Paracas uma planta que tranforma água salgada em doce e resolver assim os crónicos problemas de abastecimento líquido da região. De merda Paracas nunca teve falta, oh ironia. Seria estranho que uma vila tão dependente dos animais fosse finalmente salva por plantas. Assim como assim, aqui nunca transmitiram "A arca de Noé". Mas aposto que algures nos anos 80, passou uma versão peruana do Capitão Planeta. 

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