quinta-feira, novembro 01, 2018

Perugrinação 8: Mar de areia


O meu maior pecado como cinéfilo é nunca ter visto "Lawrence da Arábia". Não é apenas por ser um clássico inegável - tenho-o em DVD há mais de dez anos e encontra-se ali numa prateleira, tão quietinho quanto as areias do deserto. Não há grandes justificações para isso, nem sequer desculpas. É só imperdoável. No entanto, sei o filme de cor, acho que o vi às partes toda a minha vida e a única coisa que acontecerá quando finalmente me sentar num sofá para me penitenciar será simplesmente ordená-las. Já dele falei a alunos, explicando cenas e pormenores e para quem acha que tal é estranho, desconstruir um filme a que nunca se assistiu, a resposta é simples: David Lean é um desses realizadores com pormenores que valem filmes inteiros e se Peter O'Toole é o nome que mais vezes associamos ao épico das areias que Lean nos deixou, outro homem está acima em importância e esse homem é Freddie Young. Permitam-me um momentinho de nerdice no meio do paleio de viajante. Young ganhou três vezes o Oscar de Fotografia sempre com obras de David Lean e é o artista por excelência do grande plano e do ecrã cheio. Em "Lawrence da Arábia", e repito que nunca vi o filme, fixou-me na ideia a imagem desértica que me tem acompanhado, um cruzamento de vapor de luz com o amarelo carregado da extensão, a linha do horizonte como passagem para um outro mundo, o beijo do calor nas faces encarquilhadas pela desidratação, fantasmas brancos que levitam sem caminhar. Aguardava por isso a minha chegada a um deserto real, um túmulo de grãos infinitos. No plano de viagem, sublinhara com vários traços Huacachina.


Huacachina é um lugarejo, uma horinha a sul de Paracas. Pobre e desolado, um amontoado de tijolos pintados de branco que separados dão casas, atrai milhares de turistas, ainda que a população permanente seja de apenas cem pessoas. Ninguem está interessado no entulho - chegam aqui para fazer uma estrada de três quilómetros de forma a contemplar o único oásis de toda a América do Sul. O que não falta a este continente são desertos, desde o Atacama até à Patagónia, e no Peru temos mais abaixo Nazca e Sechura; mas o que distingue este é a presença de um pequeno aquífero em torno do que qual todos os edifícios são construídos. É o umbigo do deserto. O local simboliza o Peru de tal forma que aparece na parte de trás da nota de 50 sol - as notas peruanas usam o esquema "tromba importante à frente/local emblemático atrás". Aliás, podemos dizer que é símbolo de todo o continente, tem até a alcunha de "Oásis da América". Como qualquer símbolo, há uma lenda. Conta-se que existia aqui uma pequena lagoa e uma princesa - não sei aquela que era cantada pelo Boss AC - pôs-se bem desnuda para melhor apreciar o fresquinho aquático na pele. No entanto, reparando na chegada de um caçador bem másculo, não teve mais tempo do que o demorado para vestir-se, deixando para trás na confusão um espelho. Segundo parece, o espelho assentou no fundo da lagoa e esta cresceu até ao tamanho que podemos ver hoje. Portanto, isto é literalmente um espelho de água


Hoje em dia, pouco mais é do que uma atracção turística. Água tem sido retirada do oásis por gananciosos donos de terras contíguas, obrigando um consórcio de outros donos de terra gananciosos a descarregar líquido no lago de maneira a manter o aspecto aprazível. Na verdade, Huacachina não parece ser aquela experiência genuína que pensei, simplesmente mais um show-off para turista ver, daqueles que infelizmente têm povoado um pouco a visita ao Peru. O que procuram os turistas? Terapêutica, as águas têm fama milagreiras; diversão, existem várias actividades que se podem fazer por aqui, desde sandboarding até uma voltinha de buggy nas dunas. A nós está-nos vedado o buggy. Aparentemente, na semana anterior à nossa chegada, o filho de um dos proprietários dos buggys decidiu que estava na hora de conduzir um dos veículos ainda que, e repare-se, não tivesse carta de condução. Responsabilizou-se pelas vidas de cinco estrangeiros e a meio da voltinha, o buggy capotou e entalou um alemão, matando-o. Deutschland under alles; e o Peru fica com uma complicada situação em mãos com o mais rico e poderoso país europeu. Nada mau para o garoto, acabou por se destacar de alguma maneira. Um dos grandes problemas da vaga de turismo no país é que a maior parte das empresas de serviços não são reguladas e isso é ainda mais comum e evidente em zonas pobres como esta; o pior de tudo é que, como segundo a lei os buggys não são considerados veículos sequer, tecnicamente a única coisa ilegal por aqui foi mesmo o alemão morto. Apesar de a minha viagem não contemplar uma visita à Amazónia, sinto que de alguma maneira acabei por vir até à selva.

Como não há passeio de buggy, o programa depois do almoço é livre. O calor mostra-se pleno, tenho até oportunidade de vestir calções. O hotel onde ficamos guarda uma piscina e é tentador ficar refastelado; mas Freddie Young espera mais de mim. Junto-me ao Jorge, o meu colega de quarto, numa pequena exploração às dunas. Da varanda exterior, as dunas elevadas são perfeitamente visíveis. Pelo seu dorso dourado, trepam formigas de duas pernas, sombras que o sol projecta, impelindo-se até à linha que faz de topo da colina. Seguindo para o lado esquerdo com o olhar, encontramos a promessa de vastidão do deserto. Pegamos nas nossas máquinas, mochila às costas e esperam-nos as areias. Meio da tarde e quase ninguém está junto ao Oásis. Quase todos foram atraídos pela áurea praia sem mar. Também lá chegamos e molhamos os pés sem água. Penso em descalçar-me, mas o melhor é jogar pelo seguro. O deserto de Huacachina não é grande, mas quando se procura o seu fim, ali bem perto daquela linha com que o sol salta à corda, não se encontra. De máquina fotográfica erguida, os pormenores são muitos. Fotografar é um desenrasque na captura da luz e aqui, pela altura das dunas e a inconstância das areias, ocasionalmente sopradas pela aragem, essa luz tem como parente o imprevisto.


Enquanto o Jorge demora o seu tempo ao nível do oásis, eu procuro a altitude, um outro ponto de vista. À minha frente, uma grande duna inclina-se e presto-me a subi-la. Não é fácil caminhar em areia. Se concebem que numa praia já cansa, imaginem fazê-lo num plano picado. A chegada ao topo convida a sentar na areia e apreciar. O tapete deserto foi baldeado, a espaços limpo, noutros afundado. Pegadas misturam-se, desnorteiam-se, rumos indefinidos em passos vividos. Quando o vento sopra, é uma vassoura, apenas para segundos depois alguém estragar o um arranjo. Estou num mar com densidade suficiente para permanecer à tona sem nadar e neste momento, vejo tudo do topo de uma onda, todas as vagas próximas e distantes. É como se a ondulação fizesse pausa e pose para ser fotografada. É um mar amarelo, mas estamos longe da China, e ainda assim este amarelo começa a alranjar com a descida lenta do sol. Tiro da mochila "A história universal da infâmia, de Jorge Luis Borges e dou início ao projecto "Borges nas Américas". Primeiro finjo que o leio; depois, é apenas o livro contemplando o deserto. O meu olhar e o meu pensamento, no entanto, estão no pico que encima a duna onde há umas horas vi formigas humanas a caminho. O Jorge desapareceu, por isso estou por minha conta. Desço este monte de areia a correr e num ápice, estou no sopé do seguinte.

Tenho tempo. Em meu redor, uma maralha de gente, quase todos com menos de trinta anos. Dão vivas, riem, alguns levam pranchas de madeira debaixo do braço. Trepam esta enorme duna apenas para descê-la, e há pouco motivos melhores para fazê-lo. Eu observo o sol, calculo o seu ângulo, apenas quero encontrar um ponto perfeito para fotografar o seu ocaso no deserto, Lawrence do Peru. Encontro alguns dos meus companheiros de grupo já alapados, sem grande vontade de continuar a subida, longa e desgastante. Quando observo o topo, vejo um magote, esperando a sua vez para surfar a areia. Talvez não seja o melhor ambiente para aquilo a que me proponho. Sento-me então e da mochila sai um tripé que comprei especialmente para a ocasião. Quase que me sinto um fotógrafo verdadeiro. A vista é incrível, a maior caixa de areia que já vi, reverte-me para uma certa criancice de escola. Quero rebolar, mas o adulto em mim sabe o quão difícil é retirar areia do corpo e da roupa. No entanto, sinto os seus pequenos grãos aventurando-se nos pelos da minha perna, com se fossem lianas. Tripé montado, máquina acoplada e de súbito, a hora mágica. O sol precipita-se para a fronteira entre o dia e a noite e enquanto o faz, desliga em banho maria o seu motor de combustão. São cores tórridas que temperam a paisagem, Em primeiro, uma bola de fogo enorme quase engole o resto da Terra; depois um pirilampo num interstício de presença. A passagem é rápida, mas encanta os olhos. Fascino-me como um ocidental que vê o deserto em estreia. É magnífico e pleno de vida, estranho como um deserto pode florescer desta maneira. Mesmo por entre a vacuidade turística deste espaço, há coisas que a saciedade humana não apaga. Esta é uma delas; mas a saciedade tem os seus poderes e de súbito, um desses mesmos turistas passa, dá-me um encontrão e reacção dominó, toco no tripé e a minha máquina mergulha de lente na areia.


Quem é fotógrafo, consegue imaginar o que me atravessou pela espinal medula. Uma mistura de gelo, fúria épica de Super Guerreiro e vontade de dançar o corridinho na focinheira do turista. Um diagrama de Venn conseguiria traduzir o meu sentimento na perfeição. Nem respiro fundo sequer, que guardei o ar nos pulmões. Retiro a minha câmara com cuidado do seu possível túmulo e com a minha t-shirt e o máximo cuidado que os meus tamancos com cinco dedos podem reunir, limpo o que posso. Ponto positivo; o filtro polarizador estava colocado, logo a lente não ficou riscada. Mas o zoom e o foco encrencam, dificultam o seu movimento. Entraram grãos de areia suficientes para comprometer a actividade fotográfica. Algumas fotos de teste, a lente ainda funciona. O astro solar sumiu; no oásis, a luz artifical liga-se e vários pontos amarelos surgem reflectidos no espelho da princesa. Com calma, arrumo a máquina e tento arranjar uma fórmula qualquer de esperança no deserto em que se transformou o meu interior. Não de areia, gelado. É bonito, o espectáculo à minha frente, mas só consigo pensar naquilo que ainda não está e vem por aí, as linhas de Nazca, Macchu Pichu, os Andes, aquela altitude toda... Estarei lá, mas só trarei palavras, as minhas, o que é fraca tralha quando quero mostrar o que me abriu olhos e consciência. As minhas expectativas desaparecem como a luz de um fósforo. Afundar-me no deserto. Tendo em conta a minha vida, é possível na sua totalidade. Afinal, eu sou o cinéfilo que nunca viu "Lawrence of Arabia"

1 comentário:

Gil disse...

Imperdoável a tua relação com "Lawrence" ☺