quarta-feira, janeiro 29, 2020

Fachinação 18: Tó (pouco) Zen



Ouço o reverberar do rio. Tenho em mim um vago rumor de ter visto uma corrente de água muito perto quando cheguei ontem à noite. Acordei mais cedo do que devia, nem sei bem porque pois sinto-me cansado. Mas quero voltar a dormir e não me forço. Estranho o silêncio, se calhar, como se todos os restantes sons houvessem sumido num vórtice. Já não me encontro em Zhangye. Na verdade, já nem me encontro  - ou perco - naquela China capitalista e standardizada. Voltei a sair do mundo real. O Tibete. Depois da Muralha da China, foi talvez a parte da minha viagem que levantou mais perguntas entre as pessoas que conheço. Como eu. cresceram com as histórias secretas da opressão. De uma região outrora independente e agora ocupada. Mas estendido na cama, neste simpático hostel que tem como nome, claro, Nirvana, não me sinto oprimido. Nem pelas recordações. Na verdade, acho que ainda estou a cair em mim depois do stress do dia anterior, das vários novidades e de ter subido um patamar na minha definição de adulto, ao recusar comprimir a cara de alguém contra o pavimento. Para quem acha que o Oriente é zen, é meu conselho é que passe aqui uns dias. Essa ideia desaparece rapidamente.

Saímos de Zhangye de manhã cedo. O plano era aproveitar a ligação de comboio de alta velocidade até Lanzhou, uma daquelas cidades industriais, carregadinhas de fábricas, que como Zhangye serve essencialmente para registar num mapa que estivemos lá e pouco mais. Quinhentos quilómetros separam as duas cidades e o horário estipula que a viagem se fará em menos de três horas. Para terem uma ideia, o Alfa Pendular demora mais de hora e meia na distância de duzentos quilómetros entre Coimbra e Lisboa. Já aqui descrevi um pouco do funcionamento dos serviços ferroviários na China. Mas é a primeira vez que circulo numa ferrovia tão rápida, que se já foi tornando num mito urbano em Portugal - salientando sempre essa habilidade tão lusa que é a de colocar o carro à frente dos bois: um país onde quase metade do território não tem uma ligação de comboio regular e com qualidade, mas onde futurismos ferroviários e aeroportos são considerados prioridade. Como nas ligações normais, também a China é desigual no acesso aos transportes. O lado Este está muito mais bem servido: primeira geração de alta velocidade, que circular numa média superior a trezentos quilómetros horários, chega apenas a Xi'an, que não fica nem a meio do país; a segunda gerção, com locomotivas que atingem os duzentos quilómetros hora, acaba em Lanzhou. Que também não fica a meio. São prioridades. O Tibete, por exemplo, tem na totalidade apenas uma linha de comboio que chega a Llasa, a capital. Talvez esteja a ser demasiado exigente: afinal, esta expansão de alta velocidade começou apenas em 2011 e por muito que se queira criticar, a China é um país extenso, com uma geografia complicada; e a diferença de de celeridade nota-se dentro do comboio, subvertendo o clássico exemplo dado para explicar a Teoria da Relatividade. A segunda classe não é tão convidativa quanto esta cama onde me deito, mas circulav-se confortavelmente. A carruagem está cheia e há poucos bébés à vista. Aproveito para ler. De quando em vez, espreito a paisagem, verde, fértil. Um ecrã electrónico mostra de quando em vez a rapidez: chegamos regularmente aos trezentos, a visão do exterior apagando-se numa nitidez com traços que acertam onde as minhas pupilas tentam fixar o que já ficou para trás. É um pouco como ver o céu à noite, uma procissão de astros que já não são, mas numa escala temporal muito mais curta.


Sem dar muito por isso, chegamos a Lanzhou. Aqui entramos na parte mais enervante da viagem, pois devido à maravilha dos serviços rodoviários chineses, que não permitem comprar bilhetes online em carreiras mais curtas e interiores, entramos numa corrida desenfreada para chegar ao terminal de camionetas da cidade em menos de uma hora, de forma a apanharmos a única ligação desse dia para a vila onde ficaremos nos próximos dias: Xiahe. Portanto, é isto: sair do comboio; atravessar o terminal com as malas de arrasto; encontrar um táxi; fazer o caminho; chegar lá; comprar bilhetes; entrar na camioneta. Sete passos sem que se completem sessenta minutos. No entanto, alguns factores chegam para distorcer o tempo, qual Einstein novamente a aparecer nesta viagem. O primeiro é a própria cidade, que alberga quase três milhões de habitantes, o que significa, claro, que o tráfego deve ser maravilhoso; o segundo é o tamanho da estação de comboio, onde cabem bem duas Gares do Oriente e ainda sobra espaço; e o terceiro, claro, é uma mistura de ineptitude e má vontade que torna os taxistas chineses em candidatos a um patamar de desprezo que dedico a gente que não usa pisca quando conduz, a Fátima Campos Ferreira e às pessoas que oferecem como solução da minha melancolia um passeio ao sol. Tenho a responsabilidade de fazer parte do primeiro grupo a sair. Levo o dinheiro e as indicações por alto para comprar os bilhetes para toda a gente. O Hélder e o Tiago, que juram a pés juntos que fizeram meses no Afeganistão e por isso são os mais indicados para me acompanhar nesta demanda, juntam-se. Ao volante, um homem jovem, mas macilento. Aquele tipo de indivíduo que quando chega aos trinta anos, não viveu muito, mas existiu demasiado como autómato. Alguém cuja maior qualidade é a falta de luz nos olhos e que olha para nós esperando o destino da mesma forma que um camponês russ numa novela de Dostoievski reage quando se apercebe que o dia de trabalho acabou e a mulher se esqueceu de comprar vodka. Explico com "Bus", mas é palavra tem tanto efeito nele como a brisa numa parede de betão. O vazio dos olhos lembra-me um pouco a minha carteira ao fim do mês, mas insisto e nada. Com isto, o tempo passa. Atrás, o Tiago presta-se a grandes meios e escreve no tradutor. Depois de visto, algo na cabeça do indivíduo engrena e o táxi arranca. Ok, estamos a caminho; e os primeiros minutos são fluidos. Não há muito trânsito, as avenidas dão para meter uma quinta, olho para o relógio. Com isto tudo, temos quarenta, quarenta e cinco minutos. Faço os devidos descontos do movimento e calculo que dê.

Mudamos de faixa e no final de uma larga avenida, viramos à direita; e tudo se complica. Uma sequência longa de semáforos provoca um engarrafamento que se agiganta pelo facto de três vias desembocarem nesta. Carros surgem de vários lados, metendo-se, atravessando-se. Em Portugal, quando isto acontece, podemos contar com o taxista para exibir a sua falta de cultura cívica: impedindo qualquer um que seja de lhe tomar o lugar, não pelo nosso interesse mas pelo seu ego e convicção de que "eu é que sou, eu é que estou bem. Que palhaços, não sabem  conduzir!" É um garante de que os nossos interesses estão bem servidos pela má educação de alguém, por muito que esse alguém até seja capaz de nos levar a Setúbal quando entrámos no aeroporto e pretendemos sair nas Olaias. Ora, o homem que nos conduz em Lanzhou é aquilo que pode ser melhor definido pela palavra "mono". Toda a gente passa, a ninguém nega o jeitinho. Se há uma oportunidade de avançar no tráfego, pois que se dane, há outra pessoa que de certeza precisa mais disto do que eu. Sempre com a mesma expressão que apenas posso definir como um cruzamento entre a impassividade de uma placa de xisto e o carisma de Jorge Sampaio. No contador digital do meu telemóvel, o tempo passa e também eu me estou a passar. Ainda que não fale patavina de mandarim, chamo-lhes nomes com uma fúria tão evidente e universal que é impossível de não notar. No banco de trás, o Tiago e o Hélder fumegam um pouco também e esta panela com carta de condução militante nota que a cada lugar que concede a carros vizinhos, a nossa paciência decresce ao nível do Confúcio negativo. Faltam apenas vinte minutos, quando começo a apontar vias de saída daquela confusão, literalmente com os meus braços. A morrinha cerebral continua, mas algo no espírito do energúmeno atinge que nós temos pressa e também a possibilidade forte e real, perante a minha tempestuosidade de movimentos, que há uma hipótese séria de atira-lo para fora da viatura e assumir eu mesmo a condução. É então que, pela primeira vez, se decide a ocupar um buraquinho no meio dos carros e avançar lesto. Quase acredito em duendes, unicórnios e que os partidos portugueses se interessam pelo bem da Nação. Como areia numa ampulheta, os segundos deslizam a um ritmo mais rápido do que o trânsito. O Hélder, usando uma aplicação que lhe permite seguir o nosso percurso dentro da cidade, informa que estamos próximos. Não sei se o suficiente. Dez minutos. Vemos, a um longe perto, um edifício alto e antigo. É o nosso destino e não chegamos. Entre este stress e a nossa fúria dirigida ao homem, estamos como uma mola comprimida. A confusão desvanece-se e por fim o carro pode avançar normalmente. Quando chegamos, não somos os primeiros sequer. Foi o quão pasmaceiro se revelou esta criatura dos confins do Hades. Faltam menos de cinco minutos. Ninguém está imune à tensão. Eu descarrego parte do homem do leme que nos foi contemplado, enquanto retiro as malas. Pelo caminho, as pessoas do grupos vão apertando a vontade de descarregarem umas nas outras. O interior do terminal solta um odor que mistura urina, suor e alcatrão oleado. Talvez seja esse o empurrão que algumas pessoas necessitam para atirar chamas pelo ar. Seria o tipo de coisa na qual participaria no meu perfeito estado normal. Mas preveni-me a tempo: auscultadores no ouvido e retiro-me, que já sei que a bílis é um dos meus fluidos preferidos.


A viagem é para durar duas horas e meia. Mantenho-me afastado de todos isolado no meu próprio mundo sonoro. Vejo que cada um almoça o que pode. Eu vou comendo umas bolachas. Vou recordando aquilo que sei sobre o Tibete. Pátria da nação tibetana, é mais um dos bocadinhos da China que tornam o país num mosaico multi-étnico que apenas é comparável a Rússia. Ainda que, nos últimos anos, a balança se tenha equilibrado com migrações maciças de Han, do que me recordo, numa ocupação efectiva depois da perda de independência em 1959. Sei que existem montanhas, e que são bem altas. Tipo o Evereste, que é basicamente a Capela Sistina da morte em altitude hoje em dia. Lembro-me que foi um império durante vários séculos, até ser conquistado pelos Mongóis e depois Chineses, mas em regime autónomo. No século XX chegaram a tornar-se independentes, mas a China terminou com essa aventura. Sei que o Dalai Lama era a figura mais reverenciada no Tibete, embora não fosse o líder político de facto, e que o Budismo é de longe a principal religião O actual Lama máximo fugiu de lá quando era criança e nunca mais lá voltou, sendo hoje um emigrante permanente numa missão de chamar a atenção para um problema injusto com qual ninguém já se importa hoje em dia. O Governo Central ocupou efectivamente esta larga região e não é previsível que a situação mude. Há iaques, acho, aqueles parentes bem peludos das vacas e que já encontrei no Quirguistão e há uns dias no mercado de Kashgar. Com toda esta história de ocupação - e resistência, penso, tenho memória de protestos e revoltas - espero que sinta no Tibete o senti em Xinjiang: um polegar a apertar uma população diferente, presença policial forte nas ruas, câmaras ao pontapé. As tais pessoas que referi no início presumiram isso também. Que estes coitados deviam ser oprimidos, que até eu devia ter cuidado com o que via e fotografava; e é verdade que no Ocidente, até pela posição pública de algumas vedetas que se converteram ao Budismo, como Richard Gere, a ocupação do Tibete, algures pelos anos 90, assumiu contornos de desígnio mundial. Como bem sabem, nada pode parar a "Belt and road" chinesa e os investimentos públicos de centenas de milhões. A mentalidade chinesa, nisto, é muito mais pragmática. Eles não presumem que há valores humanistas, apenas valores, e principalmente chineses. Que muitas vezes nada têm a ver com direitos humanos ou bem estar geral. Ou individualidade. Cada um está ao serviço de uma causa maior, o país; e no caso do Tibete, uma vez anexado, acredito que a pressão de se converterem a esta outra religião civil tenha sido forte. Ainda assim, do que li, à maneira romana, a China não cortou a influência da religião budista na zona, o que seria aliás idiota. Poderás professar o teu mantra... desde que a tua divindade final seja o Comité Central.

Xiahe é, neste aspecto, uma cidade simbólica, pois aí se localiza o segundo mais importante santuário budista, a seguir, claro, ao Palácio de Potala em Lassa. Quando chegamos, fica claro que o foco desta localidade é precisamente o edifício religioso: há uma longa avenida, ladeada de lojas e restaurantes, cujo final é a entrada do mosteiro. O nosso hostel não fica longe. A dona é uma holandesa chamada Claire, que há alguns anos se radicou aqui depois de se casar com um local. A casa é onde o teu amor se realiza, para alguns. Para mim, nem sei bem onde é. Longe daqui, talvez. Depois de tudo, subo ao quarto que me está destinado e preciso de me deitar antes de tomar banho. Não só para contactar novamente com o mundo, mas acima de tudo as minhas vértebras. Quando desço, já é só para jantar. Comemos no hostel. A ementa é, previsivelmente, chinesa, mas com algumas reviravoltas: enterrada no fundo do menu, existe a possibilidade de pedir um bitoque. Mas de iaque. É escolha única. Dois de nós mandam vir. Um deles, Mário - comendador de Fronteira - regozija-se com alguma proximidade da comida ocidental, ainda que por interposto bicho asiático. Desde que calcou estas tão santas terras budistas, crepita nas suas palavras uma vontade antiga de reclamar a independência local para si, soltando dos grilhões da opressão este nobre povo de século. A ideia, presumo, será governar como rei filósofo, mas prescindindo de epítetos socráticos. Não resisto a roubar um par de batatas fritas. Sabem-me a tudo o que não sabia que precisava. Lembra-me a minha própria fome. Atiro-me à gastronomia local com uma vontade que julgava impossível, mas se dizem que a fome é negra, certamente se referem à minha própria natureza de humores. Um momento cai na mesa em que todos revêem fotos e existe no ambiente uma latência que se deve certamente ao cansaço acumulado não apenas de hoje, mas dos milhares de quilómetros que já fizemos. Quando se sugere um passeio para resmoer o jantar, nem todos se juntam. Somos um punhado que decide visitar o silêncio nocturno de Xiahe. Faz algum frio, como seria de esperar aos três mil metros de altitude. É um passeio calmo, sem muita conversa. À noite, a vila parece mais mortiça e viva em simultâneo. A iluminação dos candeeiros não disfarça um certo breu que se instalada e olhando para o céu, é bem possível ver o cortejo estrelado com nitidez. É civilização, mas só a meio caminho. De quando em vez, escuta-se uma voz maquinal arranhada que grita algo que não percebemos. Durante uns minutos procuro a sua origem, mas só a encontro no altifalante de uma sapataria que está aberta às onze da noite. Onze. Da noite. Deve querer dizer alguma coisa a propósito de preços baixos e produtos de qualidade, por certo. Mas apercebo-me aí que quero cama.



Mas ainda antes que me possa nela depositar, julgo já sonhar. No interior do hall de um banco, na zona dos multibancos, onde a forte iluminação não deixa espaço para brincar às escondidas, um homem de meia idade, calças de ganga, camisa de flanela, compõe um telemóvel sobre um banco. Penteia-se com os dedos, enquanto dedilha o aparelho. Demora-se uns segundos neste ritual. Puxa de um comando do bolso e aponta para trás de mim. À frente de uma loja de portas entreabertas, uma pequena coluna desperta. Uma canção triste e romântica toma conta da noite. Fazendo contas ao ritmo, o personagem principal deste momento de filme rouba ao ar um microfone e num playback sentido, sincronizado, treinado, olha o ecrã do celular com pulsão e é a estrela de um live para algures. Não sei se quem lhe guarda o coração; não sei se uma audiência de fiéis seguidores; não sei se é casting para Vasco Palmeirim e Catarina Furtado verem. Mas depois do reboliço que foi este dia, nos confins do Tibete, no meio das montanhas, a vida arranja sempre um espacinho para te dar um calduço e piscar o olho aos intervalos da respiração.

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