quarta-feira, maio 13, 2020

"Tio, tio, tio"


Palavras são apenas isso até que a boca de alguém as torna em qualquer coisa de real; e agora, quando ouço, numa repetição persistente, "Tio, tio, tio", a minha natureza própria como que desaparece e começo a sorrir como um tolo. Por vezes é dito à minha frente, noutras estou ainda a aproximar-me da divisão de onde saem estes sons beatíficos. "Tio, tio, tio", como um alarme de aproximação de algo que gera no interior de um ser pequenino qualquer coisa que nem esse próprio ser consegue bem entender, apenas quantificar num palrar metrónomo. "Tio, tio, tio". Quando entro, vejo meio metro de parte de mim, muito indirecta, cabelo castanho encaracolado e roupa riscada de muitas cores, porque ela descobre que adora "paintá" e o que ela gosta mesmo é de pedir ajuda a arrancar as tampas das canetas com força e deixar tudo salpicado como o anúncio televisivo a televisões de alta definição. Sorri-me, quase sempre, noutras finge uma cara perplexa. Já sabe o que é manipulação e reserva uma cretinice sorridente, como se estivesses prestes a pedir algo e algures destrancasse que o segredo para fazer alinhar um adulto é simplesmente parecer simpática e bem disposta. Como se entendesse por instinto que na gente grande, a visão de uma criança pequena desperta a simpatia e também uma certa esperança que desaparece quando crescemos. Como se acreditássemos que o simples contacto com a infância que se arrumou tão distante, ainda que não seja agora nossa, desperte aquilo que hibernou e espera Primavera.

Acontece-me, de vez em quando. Pego nela ao colo e pergunto onde está a Beatriz, e ela aponta para si; pergunto onde está o tio e o seu dedo aponta repetidamente para o meu peito, e pergunto-me se na sua inocência ela encontra aquilo que não consigo de maneira alguma descortinar. Eu próprio em mim. Mas ela aponta e ri muito. Peço-lhe um xi e a cabeça cai no meu ombro com abandono. Tenho direito a beijos quando ela se dispõe a isso e nem sabe ainda como se dão beijinhos, abre apenas muito a boca e encosta à face quando calha, porque tem alturas em que o nariz é o destinatário e desvio-me a bem da saúde pública. Fazemos uma brincadeirinha com isso, de cada vez que damos beijinhos fazemos "Muá" muito alto e ela volta a rir muito porque gosta é de estardalhaço e de barulho, de ligar a banda sonora do triciclo e de ficar a abanar de um lado para o outro. Gosta quando lhe passo certas canções, da guitarra do Rodrigo e da Gabriela, da Badinerie de Bach, algumas coisas de Green Day e a "Comics" dos Caravan Palace. Tem a sua sala de jogos e quando brincamos, finjo que durmo e ela finge que acredita e acorda-me com palmadinhas na testa, e depois espera que lhe sopre na cara, em primeiro para gritar um bocadinho e depois fingir-se de zangada. Quando não brinca, caminha pelo quarto e quando se cansa, deita-se no meu colo sem pedir e fica só uns segundos quietinha, como que a recarregar uma bateria que traz na barriga, no "Pipinho", volta a entregar-se ao mundo.

No exterior, procura o "piu piu no céu e mesmo quando não o encontra, olha-me e pergunta "Vistes, vistes?" e eu faço que sim, que vi tudo e vi muito com ela, e até vejo tanta coisinha pequena e grande que me escapa fazia tempo, um pedacinho de parte de mim que sorri quando me vê, que me pede mãos e peito, que sem medo me aceita, que me faz sentir parte de algo, importante para alguém, que me faz ter vontade de sair da cama quando acordo, por uma vez, só para descobrir se hoje ela vai aprender algo de novo. Uma palavra, um tique, um gesto, uma dança, uma mecânica qualquer que na sua cabeça a estabelece e faz saltar um bocadinho mais o crescimento. Sejam a existência de pássaros, o miar dos gatos ou que quando ela está presente, consigo ser mais eu. O que preciso tanto, e fazia tempo que outra pessoa não tinha esse poder sobre mim, de me transformar de uma forma tão profunda que na verdade, nem mudo e sou aquilo que enterrei com a bonomia perversa da desesperança. O que nos liga a alguém não é inexplicável por norma. É uma soma de tempo, vontade, química e acaso; e a afeição de um bébé vem muito das duas primeiras, mas também de algo que eles reconhecem e não se explica, e é esse algo que dá aos adultos um poder quando estes sorriem ou abraçam. Uma nova possibilidade, um oráculo profundo que nos garanta que há mais de bom a chegar, que ainda que nos sintamos um ciclo repetido, pulsa ainda o que sonhámos, o que imaginávamos, há tanto, que nos tornaríamos. Sem erros, sem nos estragarmos, ainda antes de termos ganho o poder inconcebível de magoar alguém e a dádiva da dor dentro de nós como triste lembrança de que não somos nem imortais, nem imunes ao que é bom. Um bébé é uma estrada para um futuro onde somos os alguéns de um passado onde tudo era tão soalheiro quanto o sorriso de uma criança e tão terno e suave como os seus bracinhos estendidos pedindo um biberon.

"Tio, tio, tio" não é apenas um chamamento da Beatriz. É a recordação do que queria para mim, a insistência em ter esperança mesmo quando não se acredita nela, o empurrãozinho pequenino para fingir, durante uns momentos, que tudo pode ser como deve e não como é. Ando perdido em escuridões e ela puxa-me as calças e pede colo. Aponta para a porta da rua e saio com ela. Mesmo quando chove, há sol e eu consigo segurá-lo. Não devia ser possível, porque sou humano, mas este vem revestido da melhor capa protectora que existe: a possibilidade.

Sem comentários: