quinta-feira, abril 23, 2020

Fachinação 27: Epílogo


Acordo. É o último dia. Os últimos dias passam sempre como o milho na mó, espremidos, um pó que é soprado e nunca se apanha. Últimos dias de fuga do mundo, últimas dias de preocupações em arrumar, últimos dias de despedir de quem fez parte do nosso tecido esvoaçante de dias anteriores. Mais do que dizer adeus, últimos dias são de voltar a dizer "olá" a nós mesmos no regresso. É só quando me sento na cama em dias últimos que entendo tudo o que ficou para trás nas viagens que faço. Somos sempre alguém diferente quando estamos longe, quanto mais não seja porque nos dobramos à novidade dos locais, à diferença das pessoas. É como me sinto, pelo menos, não exactamente estranho... mas outro. Ser outro dá muito mais trabalho do que ser estranho. Porque temos de nos conhecer também no que fazemos e passar os dias à procura dos traços que sabemos nossos. Não sei se é por isso que quanto mais avança a viagem, mais melancólico fico. É como se tivesse saudades de mim, ou pior, como se soubesse que este novo eu, com pontos que gosto e que são novos, é apenas temporário. Que perco-o mal esteja de novo na realidade que deixei em Portugal. Não sei porque me embrenho nestes pensamentos agora, que são sete da manhã. Talvez porque a noite anterior foi surreal.


Apanhámo-nos numa das ruas mais decadentemente capitalistas da capital do maior país comunista do mundo. A Dongqidao é uma espécie de Quinta Avenida chinesa, luzes brilhantes e milhentas de lojas de multinacionais, restaurantes de comida rápida, o crespúsculo substituído pela intensidade da electricidade. É uma das vias mais importantes da capital chinesa, cheia de estabelecimentos comerciais e embaixadas. Há uma loja da NBA com quatro andares, todos eles visíveis a partir de fora; e numa rua paralela, podemos ver até bem ao fundo casas em estilo colonial onde se alojam embaixadas de países tão diferentes quanto a Mongólia, o Vietname, a Irlanda, Roménia ou Cuba. O mundo, vai-se a ver, encontra-se sempre no consumo. Na compra. NO comércio que vem tão da antiguidade chinesa quanto o Mandarim ou o chá. Caminhamos um bocado à deriva durante vários quilómetros, até os pés nada mais serem do que chapa. As minhas pernas, depois da malha da manhã e do início da tarde, estão feitas colunas de templos antigos, pedra escavacada. Com um ratito no estômago, jantar é necessário. Dividimo-nos e inevitavelmente, no meio de tantos restaurantes de comida chinesa, o meu último jantar em Pequim é num McDonalds. Não me sabe mal, digo-vos. A única loja onde acabaremos por entrar, para compensar o desvio superficial, é uma livraria. Tenho bastante curiosidade depois da experiência, que agora me parece fumo, em Kashgar. Encontramos bastante literatura ocidental, best-selles. Uma coleção imensa de Shakespeare, quase tudo de Stephen King em chinês e em inglês, Stieg Larsson, tudo o que se espera de um entreposto livreiro ocidental. Mas num canto mais selecto da loja, onde as estantes são de uma madeira nobre e o espaço muda em largura, longas prateleiras acomodam, clássicos chineses de filosofia e compêndios de acupunctura. Estes não se desfolham, abrem-se. Longas ilustrações caem-me para as mãos e caracteres chineses analisam pontos de pressão, conselhos para não transformar as agulhas em algozes de paraplegia. São carotes, mas há quem compre. O grupo de advogados do grupo ainda namora uns códigos penais chineses, mas também acaba por não trazer. Em grande destaque, num poster, Xi Jinping anuncia o seu mais recente livro, um gigantesco plano para o país com ditames que foram integrados na Constituição nacional no ano passado. No exterior, o contraste. Uma avenida fervilhante, colorida, em vagas de gente que não morrem na praia, mas antes ressucitam no pavimento. Azáfama total, de um lado para o outro.  Em todos os cantos, grupos exibem-se em cultura. Não sei se voluntário ou se estamos na altura de algum festival; mas do exterior da livraria, se olhar em meu redor, há demasiado a acontecer. Mais distante de mim, gente vetsida de verde salta e rebola em números circenses, aguns deles comandando um dragão de plumas que parece uma montanha russa. Têm de todas as idades e marcham no ritmo dos mal ensaiados, mas que adoram o que fazem. Mais perto, três portas à nossa esquerda, um grupo instrumental de sopros enche a rua com aquele trinar que me irrita tanto da música chinesa; e à nossa frente, mas do o outro lado da rua, dezenas de dançarinos azulados, numa coreografia orientada, estão longos minutos em movimentos orientais ao som de baldas de fazer chorar não as pedras da calçada, mas o cimento do chão. Mexem-se numa câmara lenta deliberada. A conduzi-los, um senhor de t-shirt branca, com a convicção de que ser Messias pode envolver passos de dança Atrás de sim, as montras de uma Prada anunciam saldos e roupas de corte elegante e muito na moda. Sei que o contraste traz uma ironia óbvia, mas prefiro concentrar-me em quem, por um gosto decerto, se encontra a esta hora da noite num local tão movimentado em coordenação completa com outras pessoas pela simples razão de mostrar a todos a sua cultura, a sua intenção, a sua mensagem do que é para si ser chinês e viver a China, Um só país, uma só cultura, uma só gente. Pouca discordância na coreografia, no gesto. Unidade. Representam a ideia deste país, na sua força de imposição a todos os que sendo diferentes, são convidados a ponta de uma bastão a serem iguais. Uma China multicultural de uma só expressão e direcção.


É a última imagem que guardo antes de me ter deitado, já torcido, na noite anterior. Há viagens em que sentimos que ainda há mais, que podemos mais. Nesta, a minha mente e o meu corpo sentem a necessidade de regressar. Não sei se é da China ou de mim. Talvez no tenhamos infectado ambos. O que é uma palavra engraçada de usar, porque quando escrevo estas, muito depois de viajar para casa e de ser revistado por causa de um lenço de papel ranhoso em Munique, China é o país que domina todas as atenções. Estamos todos fechados em casa à conta de um bicho que brotou de lá. Algures em Dezembro surgiram uns rumores. Quase ninguém prestou atenção, porque aparentemente não era nada. No entanto, porque uma estadia no país me deixou desde logo alerta a verdades e sossegos do governo local, comentei com alguns amigos que aquilo não era verdade, que a situação de certeza era mais séria. Longe de sonhar que em Março estaria fechado em casa, mas ainda assim com uma desconfiança que não é paranóia porque se esteve para lá dos truques da autocracia chinesa; e a verdade é que Xi Jinping foi negando até a pura brutalidade e granítica resistência do Comité Central ter chocado de frente com algo que nem a sua soberba humilde pode dominar: a natureza invisível. Em duas semanas, uma das províncias do país brotou uma doença respiratória que nos dias seguintes se espalhou pelo mundo, tendo matado, no dia em que escrevo, mais de cento e cinquenta mil pessoas. Numa reacção previsível, a China perseguiu os médicos que alertaram com tempo, depois agiu. De forma célere e brutal. Fechou todos os cidadãos em casa e colocou penas de prisão pesadas sob a cabeça dos prevaricadores. A economia contraiu e o dragão chinês, que dias antes rugia de poderoso com as patas dominando o mundo, via a sua economia contrair ao tamanho de uma gruta de Bezem Klik. Por várias vezes tentou afrouxar as medidas de confinamento, apenas para ver o bicho ressurgir em grande força, em grande estilo. A máquina repressora via-se ultrapassada por um inimigo indomável, como uma praga vinda dos confins da raiva dos uigures, conjurada algures numa banda do mercado de Kashgar e lançada à China Oriental da etnia Han dominante, a mesma China que os persegue e às restantes minorias, com uma arma que não distingue ninguém. Actualmente, decorre uma tentativa de reabrir o país. Toda a gente caminha de máscara, controlado pelo telemóvel - com de costume, o instrumento de submissão preferido dos chineses - constantemente abordados pela Polícia e pelo Exército. Quando cheguei em Agosto, pude assistir à maneira como uma pequena parte do país suportava esta ignomínia todos os dias, perante uma cegueira geral e falta de queixa. Hoje, todos os chineses sabem o que é viver, de facto, apertados contra uma parede e tratados como criminosos apenas por presunção. Como algo tão minúsculo se tratou se colocar um país no lugar.


Estes epílogos costumam ser textos mais curtos onde reflicto sobre o que vi e o que aprendi. Sobre pessoas e lugares, sobre mundos tão fora do meu e que mesmo apanhando-me na curva da melancolia ou pior ainda, me impelem sempre a voltar, ano após ano, à arena da viagem. Em 2020, é pouco provável que consiga sair daqui, com tudo adiado para 2021, na melhor das hipóteses. Mas não há grande lições a tirar deste périplo pela China a não ser as que já registei. A experiência da opressão vista de fora, a multidão de línguas e rituais diferentes, sítios que só se explicam na luz do olhar que brilha quando os contempla, a força de sentar e assistir, pensar, guardar. Começo a pensar que viajar não é muito mais do que isso, uma tradução mal feita da linguagem do espanto. Que nem as fotografias, tenho pensado nisso, conseguem contornar. Tenho pena dos anos em que fugi do mundo, percebo agora bem que não se vive em páginas ou em ecrãs. Pelo menos, não se vive o que não podemos ser durante os dias. Numa confabulação tão fora daquelas que concebo na minha cabeça, estas Chinas que vi guardam-se numa caixa de memória, que desperta sempre que ouço o nome ou vejo os protestos em Hong-Kong, filas de doentes em Wuhan, a silhueta de Tony Leung e Maggie Cheung em "In the mood for love". Percebo o que as notícias não dizem e mostram. Não é ser especialista é intuir na experiência o que ficou por falar. A viagem tem-me ensinado coisas que nem pensei aprender e só vos posso transmitir nestas crónicas, por vezes escondido, por vezes ao arrasto daquilo que me atormenta e acaba por passar. Obrigado a quem as acompanhou todas as semanas, escrevo isto para mim, mas são vocês quem acaba por usufruir e no fundo arrebanhar a sua propriedade. No momento em que as publico, são vossas. Como todas as minhas viagens acabam por ser, e como a próxima também a será. Porque decerto, para lá de toda esta prisão, iremos fazê-la juntos. Eu, vocês... e os meus demónios também.

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