terça-feira, setembro 08, 2015

O vosso refúgio



Quem me segue desde o início deve ter notado algo de bastante flagrante no conteúdo deste blog. Não têm aparecido por aqui, vai para alguns  anos, qualquer tipo de artigo de opinião sobre problemas reais. Escrevo sobre mim, directo ao coração ou enviesado em metáforas, e isso são sarilhos pessoais empolados. Não valem de grande coisa nas voltas do mundo, nem comparados com assuntos sérios ou crises bem reais, e isto vem de quem deu a mão a alguém que foi morrendo e sabe, por isso, o que um impedimento ao normal funcionamento dos sentidos. Devem ter estranhado que uma pessoa com a minha reputação, de opinativo truculento, se tenha abstido de falar sobre tanta coisinha que por aí andou a moer a população. Ora, tal não foi esquecimento: deixei-me apenas de incendiar um território chamado Internet onde raras vezes um debate sólido é impossível, e de certa forma, adoptei uma atitude a que a minha mãe me chama tantas ocasiões à pedra, para não dizer o que penso só porque sim e porque me apetece. Acredito em opiniões diversas, e em certos casos, elas são obrigatórias: uma discussão sobre o valor de um filme, de um livro ou de um álbum pode fazer correr muita palavra, mas será sempre isso, uma discussão, onde ambos saem com razão e ninguém se melindra a sério por isso.

Outras situações, no entanto, pedem que se deixe o politicamente correcto de lado e, à vergasta, se comece a chamar as coisas pelos nomes e a colocar as situações como elas são. Há campos onde a subjectividade não entra, e se todos têm direito a ter uma opinião, aqueles cuja visão de mundo está eivada de estupidez rija têm de assumir as consequências da maneira como vêem o mundo e as pessoas. Os "Podem chamar-me o que quiserem" ou "Não sou má pessoa, longe disso" ou "Estou apenas a dar a minha opinião" são bordões de perdões que não mitigam o facto de se estar a dizer uma barbaridade e, de caminho, se revelar que no fundo, há ali qualquer coisa que não bate certo. A situação dos refugiados, que tem incendiado murais de Facebook, chats vários e foruns afins forçou-me a voltar a chatear-me com pessoas e a dar opiniões que ninguém pediu e quase ninguém gosta. Aguentei até onde pude, mas o facto é que já vi tantas situações destas ao longo da História, estudando-as e analisando-as, que o "deja vu" dá cabo de mim: percorrer o nosso caminho como Humanidade e concluir que os mesmos instintos de há milhares de anos se mantêm hoje, sob uma capa de civilização e elevação moral, é algo que me dói no profundo de mim, me baralha o pensamento e me impede de ter qualquer tipo de esperança nos seres humanos como colectivo.

Podia aqui traçar um grande retrato histórico acerca de migrações e deslocações em massa de culturas. De como, até no século XX e por razões semelhantes a estas de hoje, milhares de pessoas de uma mesma cultura entraram na Europa sem que isso significasse a perda daquilo que alguns palhaços chamam de "nossos valores"; podia até dizer que entre a emigração de um português que se vê no limiar da pobreza e a de um sírio que simplesmente quer evitar que lhe caia uma bomba em cima está exactamente o mesmo princípio de sobrevivência e direito de esperança; que a livre circulação de pessoas não é apenas uma comodidade para usarmos quando vamos de férias para a pândega nas Baleares e visitar Londres e Paris que são tão lindas; que o que obriga esta gente toda a fugir são os mesmos movimentos sociais e económicos que permitem que todos os fins de semana nos desloquemos ao centro comercial para umas compras, e mantermos o nosso modo de vida assente num capitalismo que sacrifica a estabilidade de outros países, inclusive estes; que foram os Governos ocidentais quem criaram indirectamente este polvo chamado ISIS de que temos medo; que a maior parte destes refugiados são pessoas normais, sem ligações terroristas; que há décadas vivem pessoas de outras culturas em Portugal e não foi por isso que o país implodiu; que "os nossos valores" são tão lindos que há coisa de um mês ninguém se preocupava com eles, e no fundo significam que quem tem cu tem medo, e ai deles que vêm roubar-me aquilo e aqueloutro; que "Muçulmanos" designa um universo de milhões de pessoas que englobam regimes ditatoriais brutais como a Arábia Saudita (de quem ninguém se importa de receber combustível para meter no carro), mas também países como o Irão que por detrás de um retrato de maldade e infâmia escondem um estado a meio caminho entre o Oriente e o Ocidente; que em muitos países muçulmanos, Síria inclusivé, a liberdade religiosa é real; que estes emigrantes e refugiados são sim pessoas com aspirações e não coisas ou bactérias que vêm contaminar tudo. Que tudo isto não é idealismo ou "paleio do CES", como um idiota chapado já me disse: quando é que o sofrimento humano virou uma questão de opinião ou de escolha? Se qualquer uma destas pessoas estivesse na posição de cônsul em Bordéus, no ano de 1942, tinha sido lindo.

Estas alarvidades que leio todos os dias não são novas, e portanto, se as dizem, incorrem numa tradição milenar que vem desde as antigas civilizações e atingiu o seu apogeu durante a Segunda Guerra Mundial, com a Solução Final. Se a Alemanha a planeou, outros países colaboraram não permitindo que os Judeus se refugiassem no seu território, usando argumentos muito semelhantes aos que vocês usam. A sério, sem tirar nem pôr: eles vêm destruir a nossa cultura, temos de tratar da nossa casa, vamos ficar orgulhosamente sós; e lembram-se quem queria ficar orgulhosamente só? Sim, aquele senhor que deu nome a uma ponte em Lisboa. Pertencem todos à sua escola, dentro do vosso discurso a favor de democracia e contra a opressão, de celebração de uma cultura global, de heróis multi-culturais que aplaudem e de uma soberba moral que arrepia, de se colocarem como guardiões de um castelo feita de merda e que esboroa ao mínimo abano. São herdeiros da normalização cultural do Klu Klux Klan, afirmando que os negros eram todos maus por igual, sob o disfarce de que uns são piores do que outros, e claro que não estamos a falar de toda a gente. São herdeiros de todos aqueles que, durante a guerra dos Balcãs, ficaram de braços cruzados enquanto ocorria uma chacina étnica, falando "Não queremos agravar o conflito", mas com subtexto declarado de "São outros, não nos interessam. Podem matar-se", e estranham depois porque é que o mundo está em dormência permanente e já tão pouca gente se dispõe a ajudar o outro dando-lhe a mão, seja dos "nossos" ou não. Tudo está ligado, não somos ilhas isoladas e quanto mais depressa se perceber isso melhor. Querem resolver estes problemas ou os do país? Nada mais fácil: comecem por votar, ou melhor, comecem por exigir pessoas cuja visão das coisas não se limita a uma semana de avanço, que percebam como o mundo funciona e evitem que conflitos em terras alheias se agravem só porque não são cá, não tendo a clarividência de entender que cá é todo o lado onde os pés podem calcar terra. Tentem-se informar, perceber o mundo, descobrir o que há para lá da vossa casca e perceber que os "maus" não têm raça ou cultura: os incendiários que colocaram o país a arder são portugueses. Os que matam polícias, esbofeteiam as mulheres, agridem os filhos são também portugueses. Têm desculpa por isso?

Assumam de uma vez por todas que são intolerantes e não se escondam. Ao menos isso. Todos nós que temos empatia com aqueles que querem simplesmente sobreviver não somos profetas ou amantes de mártires: somos gente com coração e que quando olha, vêm alguém como nós, e não um "outro" indefinível. Isso de dizeres que gostas mais do teu cão do que destas pessoas não é só trollar: é ser de uma estupidez sociopata a toda a prova. A partir de hoje, qualquer um seja idiota o suficiente para escrever este género de coisas desaparecerá do meu feed. O mundo é um lugar vasto, com muitas ideias e muitas batalhas ideológicas a travar, mas a estupidez é a maior dessas guerras e não terá fim. A prova é esta: quando a dor das massas desesperadas gera um encolher de ombros, isso é normal; mas se provoca raiva, asco e ódio, revela que há ainda entre nós gente pequena, pessoas que valem zero e que pode detrás da afabilidade de um aperto de mão, de clichés em murais próprios e de um copo no bar e "pago eu!", são o que de mais rasteiro existe entre nós. Ninguém é má pessoa por se preocupar com o futuro; mas quando tal implica acabar com o mesmo futuro de tantos milhares apenas porque se tem medo e se desconhece o que existe para lá do nosso ecrã de computador (que poderia servir como canal de informação, mas é bem mais lindo para ver fotos de gatos), isso é uma prova de desumanidade. É isto. Livres de exprimir uma opinião, mas assumindo as consequências da mesma.

Sois todos tacanhos. Todos. Isso, afinal, não é tão português assim: existe também na cultura muçulmana, por exemplo. E não é tão lindo como"nós" e "os outros" somos tão iguais, afinal?

terça-feira, setembro 01, 2015

O justo dos sonos



Há algum tempo que estou louco. Melhor, em intermitências de loucura. Não liguem ao velho adágio de que o louco é o o último a sabê-lo. Louco que se preze tem a inteira e perfeita noção de que a sua cabecinha se prepara para zarpar algures para lá do que controla, e nesse momento de lucidez improvável, o louco é quem reconhece humildemente que não se pertence por completo, e que nada do que decide é confiável ou sequer benéfico por definição. O reconhecimento do desvario é um golpe por estar confirmado que perdemos o nosso derradeiro amigo: nós mesmos, em imperfeições nas feições da cara e da alma, mas cujo instinto de auto-protecção é a defesa que temos contra tudo o mais.

O instante preciso tombou ontem em dominó, quando dentro desse mundo de espelhos que é a minha mente me apercebi que recuperara um velho hábito, matreiro, de montar uma megalomania para todo o restante corpo ver. mostra quem manda, dominar instintos, baralhar a natureza, e numa demonstração de soberba esmagadora, pelo momento em que a atenção se esvai, e a carne aceita o repouso do sono como mudança de turno dos desafios. Imaginem bem nisto, chegar a um ponto onde se quer quebrar o que se  estabeleceu desde o momento em que a espécie humana, ou qualquer outra, se animou de electricidade estática em movimento e recebeu em troca de todo esse arcaboiço de dias as horas em que, remetendo-se à quietude, por vezes inquieta na pele e até mais fundo do que esta, simplesmente prescinde do tempo e descobre ao desvelo os segredos que se escondem para lá da Morte. Acordar é nascer cada dia, e o sono a viagem mais próxima, de cabotagem, que podemos fazer em redor do fim que se crava algures numa curva sem espera. Eu, feito um despenteado mental, proponho ter um controlo tal da minha atenção que desespero por saber quando se dá esse clic, em que o interruptor descai e tudo o mais só regressa noutro momento de consciência que é como vir à tona depois de uma prova de apneia.

Não é a minha estreia neste absurdo. Noutras aventuras iguais me meti, em todas elas perdido de tudo o mais, descrente, até sem objectivo e agora, quando me deito, reconheço isso na minha vida. Decisões certas que são ao mesmo tempo erradas, permanências na casa de partida, a decisão como raiz mirrada e que nunca aparece, deixando ao mundo um silveiral indeciso a morder o interior, a rodear o que se construiu e incapaz de parar. É loucura, tudo, até mesmo aquilo que não decido. A demência é tamanha que até o inexistente se presta a colocar uma vida em balanço constante na ponta dos dedos que tremem. Quando já nem dormir é consolo ou bálsamo, mas sim um outro incêndio em permanente rescaldo, nunca se apagando. Sinto a falta de coisas, sinto muito a falta de pessoas, mas começo principalmente a ter saudades de mim mesmo, e nem sei bem onde ando, o que faço ou se, enlouquecendo, estou mais perto de me recuperar, ou pelo contrário, afundar no bolso da camisa de forças. Tremo de todas as vezes que me deito agora, porque não sei se, despertando, não estarei bem para lá do que posso recuperar, se na minha solidão permanente, tendo-me como companhia, não ganhei como melhor amigo a pior das pessoas.

Chama-se estado de vigília, mas como pode ser se deixou entrar com esta facilidade tamanho inimigo?

segunda-feira, agosto 24, 2015

Terra batida



Uma estrada existe, assim mesmo, está lá, e é serpente entre montes, passa junto de uma praia e termina num promontório que bate à porta do mar, entrando sem pedir licença. Só passa lá quem deseja, porque é impossível dar com esse caminho por acaso. Escolhe-se e pronto, a pé ou de carro, seja até em cima de um cavalo branco ou negro, cada um dá por si a fazer o caminho mesmo que nem sequer saiba qual o final. Em determinadas noites, o pavimento são luzes amarelas, reflexos da água que se espraia da chuva, ou mesmo do mar quando a maré engole todo o espaço até se chegar um pouco ao que deve ser a via de cada um. Nessas noites, o vento é mais forte, mas se o caminhante não estiver com pressa, ou outras ânsias, é possível que as suas faces se encham de salpicos de sal diluídos nas água que sopra do vasto oceano, quem nem sei qual é, ou sequer se está já mapeado. Cada salpico sabe a suspiros, e ninguém passa fome de desejos pequenos. Nenhum mapa mostra a estrada: ela apareceu com o prenúncio do mundo. É um agouro, é um adágio, é o que leva cada um a fazer dela casa temporária.

Não sei se alguém a terá percorrido de fio a pavio. Li uma vez sobre um celta chamado Dombrar que terá nascido na montanha onde a estrada deu por si já feita. Mesmo ele ouvia lendas sobre esse estrelado caminho como se fossem histórias mais antigas do que a própria rocha, anteriores a duas ou três glaciações, e cresceu com aquela ideia fixa de que não se questionada o rumo, nem sequer os pontos: aceitava-se, e por isso, quando cresceu e viu em si pernas capazes de suportá-lo para lá de tombos e trambolhões de atrapalhação, decidiu, e é sempre por aí que se começa o percurso na estrada, que iria fazer desta a sua tarefa diária: comer quilómetros, mas mastigando-os com prazer. Tolices da juventude são normalmente desvarios na velhice, Dombrar registou a sua aventura, mas algumas folhas perderam-se, a maior parte até, quando os da sua tribo emigraram para outros picos. O que sobrou é confuso, Dombrar repete a certa altura várias porções, escreve as mesmas descrições, parece sair da estrada para nela reentrar sem sequer se ver fora dela, como se estivesse condenado a repetições e ensaios contínuos dos mesmos passos. Como se a serpente da estrada comesse a própria cauda, se engolisse e voltasse a surgir igual, com as mesmas curvas, mas sem alguns buracos. Paisagens repetem-se, eventos desmultiplicam-se, mas Dombrar nunca é o mesmo, e quando chega ao final do caminho, deixa apenas uma frase: "Não ser eu, tornar-me nas curvas do caminho", e a seguir algumas reticências, e Dombrar assinou deixou o que conseguiu ainda guardar na sua bolsa. A minha avó contou-me que Dombrar fez muito, e que o caminho era esse tanto, e se algum dia, no promontório, dessem com uma sepultura de pedra, com serpentes esculpidas, e também um urso enorme e ameaçador a saltar da rocha como se fôssemos um salmão, era certamente a sua sepultura, pois só no caminho encontrava paz, e quando se parte, é a paz que se procura. Em nenhum outro local poderia o caminhante dormir senão ali,

Nunca encontrei a estrada, embora me tenham já dito que a calquei várias vezes. Já senti mar e vento, e já andei perdido nos mesmos locais uma e outra vez, mas não creio que tenha sido a estrada. Do que me contam, sempre me pareceu maior do que os passos, e as estradas por onde me estendi eram banais e quotidianas e passavam muito bem sem mim. Penso isso, mas sem certezas do caminho. Se a estrada existe, também é assim, incerta, e talvez então já a tenha visto, sentido o seu alcatrão luzente, visto o promontório que abre o meu mundo ao mar. Talvez em sonhos. Ou então, a estrada é mesmo um talvez bem esticado, com tanto de aleatório como de possível.

quinta-feira, agosto 13, 2015

Mero ar



Um sopro de palavras, porque ele não falava: lançava para o mundos letras de mãos dadas, e quem ouvisse que tomasse conta. Sentia-se assim e na propriedade de quem determina o que diz, era a pessoa menos responsável. Perde-se o controlo do pensamento, das ideias e da sua expressão, e perde-se tudo, de facto. É-se um mono simples, hirto como uma estátua, menos expressiva, mas suja do que lhe cai em cima, não de aves, mas sim da própria rotina de cada dia, do despertar/adormecer que abre e encerra as aventuras de 24 horas em tédio. Se saber o que diz, sem saber o que exprime, desconhecendo tantas vezes o que é. Num momento, senta-se e quer dividir toda esta dor em partes, mas quando dá pela sua tribuna, é um buraco voraz dentro de si, que lhe puxa tudo e lhe devolve ainda mais o que já estava acamado no leito subterrâneo de um oceano em forma de planície rochosa. As ondas não batem nas rochas: as ondas são rochas ainda maiores do que as pedras, e cada uma devolve-lhe o que recusa. Como se te dessem o par de meias mais foleiro de todos os Natais passados e futuros, mas em oferta diária. Por isso sopra palavras, por medo. Se as disser com intenção podem quebrar-se na sua língua, estalar e rebentar-lhe a boca em aftas. Proíbe-se de dizer o que quer, abestém-se de eleger o que deseja, e abdica de uma ditadura do seu próprio querer, da vontade, do fogo que lhe estoura todos os tecidos do corpo cosidos em pauta musical.

É ténue, a palavra, e mais ténue ainda cada olhar vazio na parede. Mas pelo menos, ainda está de pé, pelo menos por fora. Porque quando sopra palavras, é estendido na horizontal, sem ar que o eleve, sem levitação ou planador: assim mesmo, horizontal como uma frase, mas sem nunca amontoar a um texto.

segunda-feira, agosto 03, 2015

Palavras num tempo sem tempos verbais (que se arrastam e tentam ser algo)



As gotas de chuva são ponteiros do meu tempo. Cada uma delas um segundo mais que penso em ti, do lado de fora da janela. Na distância atrás da linha das casas, há muito espaço, mas sei que, na tua cadeira, és coberta por um véu de morrinha quando as nuvens te negam um sorriso. Imagino cada gotacomo um pouco de ti, e que esta pequenina morte que me enterra às vezes pode ser evitada por um analgésico visual, ou simplesmente fantasminhas brincalhões da minha cabeça, formados pela gotas de chuva que te trazem. Tic tac, splish, splosh, e a tua face reflectida na penumbra dos dias, contornando tudo o mais que torna as sextas em longas segundas. A chuva hoje é o meu caminho até ti: por entre a água que cai, a minha mão passa seca e encontra a tua, sem hora marcada, mas com tempo infinito. Não é feliz, não é triste, mas é o que mereces e o que quero dar. Oferecer-te, em cinco dedos, muitos mais do que números e dígitos digitais. Quero oferecer o meu coração para que haja espaço suficiente para esse negrume se espalhar e poder assim diluir-se e desaparecer mais rápido. Quero ser um segundo tu, quero ser mais espaço para que te sintas bem, te sintas em casa, para que atravesses esta chuvada impermeável e entres no sábado como quem chega e se senta a uma lareira, aconchegada, quente, protegida. Num sofá que é o teu mundo, numa manta que são os teus livros, a música e tudo o mais que te habita.


E depois, a minha mão pode voltar a mim e nada importa mais, desde que te saiba bem. A tua felicidade é um farol para o mundo em redor, e não quero que se apague. Tudo o mais é água que escorre, na verdade, e que a terra faz sua. Tu acima de tudo, e o céu é apenas uma comichão de miragem. 

sexta-feira, julho 24, 2015

Urbi et orbi



Arde-lhe a cidade na mente quando pensa no quanto ali ardeu com aquela cujo nome, não pronunciado, ainda assim parece um loop entre as fendas que na sua cabeça o rodeiam, o prendem e, chegado aquele momento em que se respira por fim de peito solto, o libertam. Prédios, vielas e pontes à vista são a desolação à margem da memória, e onde um dia dois sorrisos fizeram um céu, aparece um mal-estar de enxofre sulfuroso, que torna cada recanto numa suspeita e os passos na fuga que se arquitecta. Ser feliz tem momentos, poucos deles com futuro. Prometera nunca mais regressar, mas as promessas são como as coberturas de tartes: foram feitas para se partir e esmigalhar, alimentando ilusões e voraz sofreguidão na barriga, mas não no estômago, apenas naquele trilho algures entre o umbigo e as costelas onde parece desenrolar-se um tubo de corda para cima e para baixo, de cada vez que se lembra delas, de primeiros beijos, de últimos abraços, de lágrimas em forma de lápides. Ali, onde se enterraram, foi também onde uma vez nasceram um para o outro, como se nunca tivessem existido de outra maneira e como se jamais lhes passasse pela cabeça respirar sem que o outro pudesse partilhar os mesmos átomos de oxigénio. "A melhor coisa que nunca pensei acontecer-me", e ele sentira-se ganho na sua própria perda de independência. "És quem nunca julguei existir", e como é que dois nunca se tornam possíveis nenhum deles sabia, e jamais pensara sequer possível conhecer, com tanto pormenor, a pele do rosto de alguém, como a sola gasta traça um mapa das calçadas que toma para si como o único mundo que conhece, fora da vista, perto do sentimento, e totalmente colada a um coração multiplicado dentro de bocas, em toques de dedos e no resfolegar das roupas que procuram pretextos para serem segunda pele.

A cidade, no olhar, não fora fogo de vista. A cidade é um segredo que ela lhe murmurou várias vezes, um casaco que ela, simplesmente, lhe despiu para pendurar num cabide algures na alma. Pelas suas mãos, a cidade tornara-se morada gigante, onde se vive e se constrói aquilo que ergue a vida verdadeira. Sem isso, sem a sua presença e sem o seu dedo indicando e desenhando, a cidade era apenas um rasto de poeira acre na boca, uma sombra que paira e se esvai, um simples pretexto para alimentar um ganido que geme baixinho debaixo da língua. Simplesmente, era um autocarro que, sem paragens, vai do princípio ao fim sem recolher ninguém, sem se deter na estação terminal e destrambelhado, continua só, não se sabe bem para onde, nem com que objectivo. Segue apenas sem propósito. Ele senta-se, de vez em quando, e a cidade parece-lhe um vulcão, mas adormecido, e sente nas tábuas do banco todos os motivos para ser mais uma pedra da calçada, ou mais um tijolo simples  no que não vive. Depois levanta-se, tenta voltar, mas fica lá sempre. Não na cidade, mas no segredo murmurado. Recolhe-se então esticado e sonha com uma torre de rumores, muito ao longe, de princípios. Por fim, adormece.

terça-feira, julho 14, 2015

Pai II



Não sei se um ano cabe numa frase, ou sequer em várias num ocaso. Passou, e apercebo-me que não consigo capturar com palavras aquilo que foge delas, e que custa a articular, nem que seja para puxar o outro de locais onde só ele mesmo se pode arrancar. às vezes, ajuda a mão no ombro, o abraço fugidio, mas sentido, e até uma meia dúzia de palavras atabalhoadas, com a muleta dos clichés. No entanto, e no fim fim que gera este princípio da certeza de que nada voltará a ser como dantes, estamos apenas connosco, e assim vivemos. É das primeiras coisas que se aprende quando perdemos alguém sem retorno, e descobri isso dois dias depois de o meu pai ter morrido, quando articulei um texto em que tentei expressar o que não conseguia ter expressão. Várias pessoas chegaram a mim: comoveram-se, reviram-se, choraram, e naquela altura percebi que por muitos que todos passássemos pelo mesmo, eu estava ali, entregue a mim, e chegando aos outros, mas parado no meu próprio luto. Torna-se cada vez mais suportável, mas nunca passa totalmente, a não ser que fujamos do mundo, e essa é uma viagem que não quero fazer, mesmo que esse mundo seja dor a cada golfada de ar. Sentir é o contrário da morte, e se não o fizesse, seria ainda menos o homem que era o meu pai.

Perdi muito neste ano que passou. Perdi uma pessoa que conheço desde que me soube eu, e perdi-a na roleta das células. Com ele, perdi o pouco de esperança que tinha no sentido do mundo, aquele faz de conta que nos anima os olhos quando ainda não descobrimos que não há grande sentido, nem qualquer tipo de organização. A poesia existe, mas na caneta do acaso, e nunca se escreve a tinta permanente. Percebe-se que em tudo o que se quer ganhar com os outros, aposta-se o que se vai perder, e quando mais se aposta mais se perde, e quando se joga, é preciso saber se estamos dispostos a perder-nos para nos ganhar. Quando via o meu pai a definhar aos poucos, a deixar de ser Vitinho para se tornar só num -inho, pensava nisso, de como, se é para ir assim, se é para explodir num estertor silencioso, numa jaula chamada corpo onde o cativeiro nunca chega aos olhos que estão de atalaia para dizer aos outros que se vive, sim, mas vive-se mal, e que nós ali somos ao mesmo tempo a vergonha da morte, e o consolo do tempo que se arrepia de frio quando a carne arrefece, se é para ir assim, mais vale a pena torcer a pele e arrepiar tudo o que nos pode arrasar, de colocar o pé na porta do metro que se fecha para reabri-la e entrar na viagem, mesmo que o túnel seja escuro, se é isso que nos deixa mais próximos do resto. Um ano depois, perdi muita coisa, no meio dessa perda maior que uma pedra e um monte de conchas guardam; mas ganhei algo que foi um casulo de arroz doce quente. Não foi ele que mo deu, mas a dor de alguém só serve quando aduba e fertiliza árvores nos outros, e nesse sentido, um ano depois, o meu pai conseguiu criar em mim um pequenino pomar apenas e só por ter sido, uma vez na vida, fraco perante um brutal verdugo contra o qual ninguém é forte o suficiente.

Sempre que visito o meu pai, pergunto-me perguntando-lhe: sou digno de carregar o teu nome? O teu espírito, aquilo que vêem em ti? Sou digno de seguir as tuas passadas e fazer uma vida? Sou digno de poder transmitir um dia a quem me vale mais do que eu a tua memória, o teu nome, a tua figura, a única coisa que afinal conhecerão de ti? Sou digno de estar aqui no que é teu, de proteger e guardar os teus, de ser eu, de me olharem como alguém que merece ser, pelo menos, respeitado, de alguém através do qual te poderão ver, mesmo nas tuas imperfeições maiores e pequeno coração de actos gigantes?  Nunca obtive resposta, e a culpa não é tua, mas sempre minha. Um ano passou, mas eu não cheguei a lado algum, transito nem sei bem de onde para onde, nem de que maneira. Estar em frente a esse rectângulo onde agora te tratam como hóspede perpétuo é um pouco como trocar de estação no metro, procurando nova linha e nova cor para o rumo que se quer. Passou um ano e não sei para onde vou. Mas por dentro, descubro que continuo a pensar-te, de quando em vez, e a desejar que me aprovasses, e que me visses como um homem que na sua estranheza, apenas queria que lhe desses o mundo em meia dúzia de palavras e um sorriso retorcido. Que não há semana em que não gostasse de chegar a casa de cabeça erguida por estar num emprego onde constrói algo com os dons esquisitos que nunca lhe suprimiste. Gostava que pudesses ver esse homem que é uma criança ainda, por ser teu filho.

Passou um ano, e uma vida consegue lá caber dentro. Várias até, e sobra espaço para aquelas que podias ter vivido. Imagino-as, escrevo-as e nessas nunca morreste sequer. Apenas continuaste por aqui, e ser imortal é isso, mesmo que toque a finados e alguém chore quando o tempo passa. Estás, bem presente, e há quem viva sem sentir isso uma única vez.

segunda-feira, julho 06, 2015

Tens piada privada



Posso existir em muitos lados, mas vivo em poucos, rarefeitos, esparsos. Todos somos em corpo no mundo, abanando e tremendo no gozo e sacrifício do que é. Mas viver mesmo, ser mais do que os contornos da carne e explodir faíscante na vida, isso já acontece pouco, em em esporádicos lugares. Aqui, a escrever, existo de sobremaneira e naqueles momentos em que as palavras desenham a fina linha com que quero traçar o que penso, talvez me aproxime de viver. No entanto, a plenitude do mundo está no espaço entre os nossos olhos, horizontal ou vertical, seja quando nos deitamos em paralelo da nossa respiração, e no como torres que se defendem de uma guerra invisível, ou quando numa perpendicular entre o meu tronco sentado e o teu deitado, tomamos a amnésia do mundo com voracidade, e entregamo-nos a nós, aos segredos que podem acontecer entre um par que dança no mundo sem mexer os pés, e faz de todos os seus sons e cheiros papel de parede, só na atenção dos pormenores que são as pupilas e que se tornam, assim sem querermos, a respiração numa oração permanente, numa dádiva para ser gozada porque a cada viagem de ida e volta do ar, posso mirar-te e até mesmo tomar os teus cabelos como um lençol de seda nos meus dedos adormecidos, calmos, porque descansam num leito regalado de comedimento, de simplesmente ceder-me um pouco do que pode ser, do que não se tem, e afinal até se possui. O mundo que existe quando te olho, e tu tens o amável reflexo de me devolver o olhar, e de segurar a minha mão não agarrando, mas com mais cinco dedos invisíveis que me prendem em liberdade.

Viver quando nos encontramos é imediato: sem demoras, sem tempo, só com as medidas de lábios e pontas da língua a pedir meças um ao outro. És-me auto-suficiente.

terça-feira, junho 30, 2015

Luz vasta



Deitou-se num rumor, e quando acordou, certas neblinas projectaram nos seus olhos uma impressão de alvorada. Longe de ser vaporosas, eram escuras, e claras ou qualquer coisa de permeio, uma fronteira que se ultrapassa no gotejar de minutos, quando a noite pica o ponto de saída e decide que por agora chegou, que até mesmo a Natureza não aguenta o breu por tempo demasiado, que de vez em quando, contra tudo o que a vida ensina, a luz tem um lugar cativo, sem regras, sem condições, apenas esperando que numa curvatura rotativa, a Terra dê licença a si mesma para voltar à visibilidade. O vento não se compadece com o Tempo, e soprava-o para o dia que ainda só agora gatinhava. No cimo do rochedo, no topo de todo e apenas com o céu como barrete, o vento é a companhia que lhe dizia estar num outro mundo, e que embora com o corpo bem assente no chão, estendido, na verdade voava bem agarrado, uma fuga que não o era, e daí talvez fosse, porque na altitude, o mundo parece distante, e é como se estivessemos cada vez mais longe dos dias e mais perto das noites, mesmo que desaparecessem também. À noite, chega o sono, e vão-se os problemas. No cimo do rochedo, o mesmo era válido. Tudo se vai, fica o que vale a pena.

Não lhe custou desembaraçar-se do saco-cama. Não lhe custou vestir-se de rajadas, e até por dentro as tempestades amainavam. Não lhe custou ver outros deitados ainda enquanto o céu já se em guaches espirrados talvez de um canto escondido das montanhas que se alinham como um exército cuja única função é proteger a sanidade daqueles que, acossados pelas bestas do quotidiano, percebem que só o topo de tudo é solução e escapatória. Não lhe custou perceber que a hora ainda não se apresentara em conformidade, e que a excitação não tem etiqueta e pode até surgir em gestos simples, como andar descalço no granito, esquecer sapatilhas e não pular, até mesmo contar o que não se vê no horizonte e imaginar se não haverá mesmo uma grande máquina de engrenagens oleadas que esconde os espectáculos. Não lhe custou a pedra fira, nem o blusão dois tamanhos abaixo, nem o conforto e certeza de estar vivo do frio, nem lhe custou companhia de estranhos, nem o mundo a dois terços ou mais, nem sequer o silêncio turbulento de surpresa, nem lhe custou faltar a mão dela agarrada à sua, dois sorrisos que compreendem o universo, um outro tipo de mundo fora deste, um planeta lá longe com pés fincados neste, e nem lhe custou perceber que o topo do rochedo estavam bem fora de ambos os mundos.

O que restou foi o Sol. Pinchou como se projectado por uma mão invisível, no regresso em que após todas as rotações abençoa tudo o que se vê, e até o que se desconhece. A diferença foi que desta vez lhe persignara a cara de luz, e tudo o que não lhe custava e custava deixaram de importar. Apenas aquela imagem de que tudo era possível, até mesmo o desaparecimento das trevas, só porque uma grande bola de pedra faz o favor de girar sobre si mesma, e tudo muda, tudo é diferente, todos se sentem mágicos e especiais. Apenas e só; e teve ali a certeza de que o apenas e só é a vida mesmo, sem as distracções das grandes coisas. Apenas e só. Tal como apenas e só, e quanto tempo decorrera desde a última vez, o sorriso apareceu de guerrilha na sua boca, por segundos, aparição mitológica e certeza folcórica. Um ponto pequeno, uma grande vitória. A Terra não parou, o Sol não se apagou, mas lá dentro de si, o Universo expandira.

quarta-feira, junho 24, 2015

Presente envenenado



Sou  especialista em proclamar votos que nunca cumprirei. É isso que me torna num dos mais paradoxais críticos do político português. Quem me segue deve lembrar-se, ou então nem isso que não foi nada de assim tão importante, que há uns meses prometi a mim próprio, e aos próprios que a mim me lêem, que escreveria um livro no prazo de dois anos. Depois de algum tempo a marinar todo aquele caldinho de troviscal interior que gera os dramas que nos predispõem a carpir perante um vasto auditório de egocentrismo, gostava de anunciar que o processo começou e que por ora, a promessa será cumprida. A história está urdida, começa o processo de escrita. Gostava assim de partilhar convosco um pequeno excerto do que já está produzido. Mesmo que não comentem, mesmo que as vossas palavras não me cheguem, saber-vos aí foi uma das cordas que me levou a tratar a escrita como um amigo pessoal, um motivo para viver e uma maneira de me aperfeiçoar, desse por onde desse. Todos os dias em que escrevo são de desilusão pela imperfeição das imagens, o aquém das frases; mas são também um momento onde comungo do vosso apoio, do vosso gosto, do vosso entusiasmo. Considerem isto uma tentativa ténue de agradecer.

Lembrou-se de uma história que o pai lhe contara havia anos, era ele uma criança de olhos abertos, com uma lista de perguntas do tamanho do fémur de um mamute na ponta da língua. Não lhe era difícil recordá-la, pois fora um evento único este, não porque o pai fosse avesso a contar histórias, pois era alguém de quem as tretas brotavam da boca como o suor assoma à pele, mas sim porque fora uma das poucas que lhe contara, e afinal é difícil trocar palavras com o filho quando de repente se some e este, com oito anos e agora de olhos bem fechados, com forte possibilidade de aguaceiros, lança ciclones de dúvidas a uma mãe  presa para sempre numa frente fria. De qualquer forma, e onde ia, ia na história, era sobre Mitologia Grega, algo que Paulo aprendeu a adorar, e depois desaprendeu de todo: a mitologia organiza a vida numa estrutura bela e clara e linear, e Paulo chegara aos 30 anos com uma certeza assinada por baixo a sangue de que a caminhada respiratória do ponto A do paro ao ponto B do cadáver era tudo menos isso. O Pai contou-lhe que Cronos, deus do Tempo, era um filho da mãe paranóico, mesmo sendo o mais poderoso dos Titãs, cheio de força e poder. Mas Urano e Gaia, deuses do Céu e da Terra, revelaram-lhe que estava destinado a ser substituído pelos seus filhos. Cronos decidiu então enveredar pelo negócio do homicídio canibalista. De cada vez que sua mulher Rhea dava à luz um filho, Cronos devorava-o sem se deter: o tipo de divindade clássica a quem o clássico Hannibal Lecter dedicaria um altar feito de dedos. Todavia, Rhea fartou-se, e ao sexto filho, sabendo do apetite e loucura do marido, embrulhou uma pedra num cobertor e enganou-o, tendo o titã engolido a rochosa oferenda, e daí talvez fosse forte mas pouco inteligente, porque qual paladar confunde o sabor da carne com a rocha? Bem, mas este sexto filho seria Zeus, futuro deus dos deuses, que cresceu e passou anos a planear uma vingança daquelas contra o pai. Na altura certa, já adulto, Zeus tomou o assunto nas mãos, sob a forma de uma foice e abriu a barriga de Cronos como quem escancara as portas da prisão, fazendo sair de lá Demeter, Hestia, Hera, Poseidon e Hades, seus irmãos e futuros compinchas de Selecção Olímpica. Ficara sempre em Paulo a imagem irreal de homens e mulheres feitos saídos de um abdómen como árvores que rompem por necessidade tão essencial de viver que tudo o mais é paisagem. A vingativa prole armou então uma guerra contra o pai e seus companheiros, e acabou por matá-los ou bani-los ou prendê-los, e Cronos acabou os seus dias acorrentado numa gruta profunda, longe da luz do mundo e de tudo o mais. Com o tempo, percebeu que os Gregos davam voltas às rotundas da linguagem e da narrativa para dar lições de moral e descrever o mundo, e o que aquela historieta contava era que o Tempo, ou seja Cronos, é a força criadora e destruidora, que sem obstáculo devorará tudo aquilo que insufla de vida, Senhor Supremo, põe e dispõe e pega na nossas vidas num baralho para voltar a dar sem ordem, e só divindades conseguem domá-lo. Compreendeu que os Antigos veneravam os deuses gregos não por serem mais inteligentes, mais fortes, mais belos ou mais artilhados, mas porque num assomo tão humano como é a retribuição, conseguiram descerrar o antro que tudo sorve num redemoinho indiscriminado. Várias vezes, em noites como aquela, Paulo se vira como o Zeus que chega sorrateiramente, empunhando uma lâmina de agoiro, e que o Pai deixara de ser tempo comum por ter medo de si, de ser substituído e ultrapassado, sufocado de morte pela sua presença. Na sua mente, era um inimigo, uma nódoa, e por isso ele se fora embora da sua vida. Várias noites podem ser vários, e tudo isto uma vida inteira de uma terceira mão a misturar o caldeirão que dentro de nós remexe cordas para cima e para baixo no estômago.

sexta-feira, junho 19, 2015

Lírica



Se calhar fora tudo o produto de um livro de rimas do qual se tentam retirar poemas perfeitos à pressão. Sentado no banco de madeira, a noite a puxá-lo para espaços ainda mais desconfortáveis e a ideia de que, se virasse a esquina, encontraria apenas outra curvatura, ele acumulava estrofes sem destino e também um soneto que nunca sequer obedeceria a uma outra métrica que não a do caos e de uma ausência de tudo, simbolizada por uma pequena partícula com a forma dupla de alguém que não tem nome, mas na sua presença, concentra todas as razões pelas quais os pés se colocam à frente um do outro sem tossir ou arrastar.

Se calhar, nada rimava, e o que existia era simplesmente um jogo de engano, doce e divertido, onde todos contávamos a história de que éramos felizes, só porque o seu contrário significava o fim do mundo, ou pelo menos um mundo sem fins comuns. Escutava a noite, mas nem o dia lhe poderia sequer decifrar um código que todos viram, mas ninguém decifrara uma vez que fosse. Todas as desencriptações caíam pela base por se sentarem simplesmente num banco, e nem poesia ou filosofia traziam ordem a uma inquietação em moto perpétuo que pintava o seu sono de espertina e os acordares em tons de pontilhistas, pois cada dia era uma reticência.

Se calhar, respirar é uma figura de estilo: hipérbole de expectativas, pleonasmo de dores, a personificação do objecto que somos quando aceitamos as regras do jogo e na ausência de sentido, um oxímoro onde carpe diem e tempus fugit se abraçam, para se extinguirem em contradições.

Se calhar é tudo isto. Se calhar vale, ou não. Se calhar aguarda-se pelo que vem depois, ou antecipa-se aquilo de que se tem a certeza. Quando em dúvida, beija. Mesmo que não escrevas um poema, pelo menos cantaste um verso.

terça-feira, junho 16, 2015

Descobrindo as diferenças


Nas mãos, uma pedra, imperfeita e áspera, centeninhas de recantos não burilados, inacabados. A pele preenchia-os com a energia própria do calor do corpo, e num momento ele conseguia sentir tudo, até a ventania lenta que, uma vez por festa, faz festinhas no topo das árvores. Sentiu-se em contacto com tudo o resto, e num olhar, pensou encontrar o sentido não da vida, mas pelo menos de como a vida se desmonta, e baralhando volta a dar-se em peças inteiras bem diferentes. Na plenitude, pensou: porque nos escolhem e porque escolhemos? Porque é aquela mais do que a outra, e qual a diferença entre as mesmas dez pessoas que gostam do mesmo, que fazem o mesmo? O que nos leva a, sentados na vida, nos agarrarmos a uma e deixarmos as outras nove? Se os átomos são os mesmos, se a carne é igual em todos, se os beijos que guardamos no intervalo entre cada poro recebem o mesmo calor, a mesma intensidade, o mesmo resguardo, que impulso diabólico leva o pulsar de gigante vermelha a fixar-se em órbita daquele buraco negro especial que nos suga tudo, e não nos deixa nada a não ser a impressão de que somos maiores do que o Universo na pequenez do mundo frágil e indefeso que recebemos de herança? Aquela pedra, ali à sua mercê, era ele, nas digitais posses dos caprichos incompreensíveis do corpo e da mente, de tudo o que de misterioso há entre ambos, e ainda de outros primos afastados consanguíneos.

Nem todos são iguais, e se não era esperto para entendê-lo, algures em si um posto de decisão, pouco fiável mas tirânico, escolhia e sabia bem dos motivos. Há peles mais confortáveis do que outras, e lábios que são berços que embalam e não camas de pedras. Olhos feitos aparições que ordenam tudo, perfilam o mundo e trazem a uma cama as dimensões do planeta, aos cabelos o aspecto de um avião que percorre infinitas viagens enquanto as pupilas se colam na retina, e para lá disso, e abandonam os corpos que afinal são posse e consentimento, e prendem de tal forma que se pode viajar não parado como constrangido, e ser livre ainda assim. Para lá do que é comum, e das mesmas proteínas e substâncias que nos tornam filtros de um deus menor, há uma centelha minúscula que ardendo, é mais do que fogaréu. Na pedra, viu tudo isso, tentou entender o que existe, e não foi bem sucedido, mas algures em si, sentiu que se procurasse, encontraria então quem fizesse do andar um lençol de algodão, e dobrá-lo-ia para não se amarrotar. Talvez, num dia qualquer, numa altura das outras, e como se, por outro lado, conhecendo a vida lhe tirara não só matrícula como as matizes da íris, lançou a pedra para longe e fez dela um estafeta mensageiro, com esperança de que voltasse não na volúpia da brisa, mas talvez na constância dos regatos, e quis ter vontade de se sentar junto ao rio lá em baixo, esperando por boas novas, por camas e olhos e pele, por um riso que lhe atravessasse os ouvidos com a missão de lhe bater palmas por ter nascido, e dar-lhe finalmente uma razão para se levantar de manhã e poder olhar o mundo com a altivez do que se sentem desejados e com um propósito,

Não o fez. Ganhou na mesma. Duas semanas depois, encontrou uma outra pedra, mas festa estátua, insuflada de vida, espantosa como lhe criava múltiplos atalhos para ser ele, e ainda assim se reinventar sói pelo prazer de lhe dar 40 homens para amar encerrados num. Mas esse catavento é para ser virado numa outra nortada.

segunda-feira, maio 18, 2015

Inveja



Invejei o Tomás a minha vida inteira, e só o conheço há dois anos. Ele não é uma pessoa, mas uma aparição, pois não o conhecemos: ele surge, quase como se desse corpo aos nossos desejos e ânsias, e de súbito se tornasse indispensável apenas porque sentimos a sua falta desde o dia em que se toma a consciência de que a vida não é só acordar e dormir. Fui visitado pelo Tomás há três anos, pela primeira vez. Encontrei-o no topo do monte, a olhar para o topo de outro monte, ajoelhado e vergado. Sangue na pele, a roupa suja, estava ali há uns dias, de certeza. Quase que o mundo não era nada com ele, e mesmo assim, desde aquela primeira vez, que não consigo imaginar um planeta a rodar sem que o Tomás possa estar presente. Uns minutos depois, deu um salto e veio-me dar umas palmadinhas nas costas. "És tu", e pôs-se logo a falar de coisas quem nem percebi, de telurismo e da terra, de como as árvores são quem mais debita, e nem sequer cobram imposto. Falou-me de onde vinha, onde estava, e apenas não sabia para onde vai, porque "ninguém sabe, e quem diz o contrário anda a sonhar, e não o melhor tipo de sonho, aquele que nos puxa pelos cabelos num beijo", talvez, pensei eu, aquele que faz do monte o nosso quarto, e de cujo sono despertamos porque sim, porque apetece e nos pomos a desenrolar a nossa vida na cara de um estranho. O Tomás tinha esperado que surgisse um amigo, e depois de vários dias de desespero e pouca espera, uma voz tinha-lhe dito "Este, vai", e o Tomás estava decidido a fazer isso, porque não era de planos mas sim de repentes e vontades, usando mapas apenas para não se perder nas altitudes. Comecei a invejá-lo aí, quando pensei no quão livre era, e talvez triste, mas a boa tristeza que se melancolia em todo o corpo sem que deixe marca, apenas uma alucinação perfeita que faz adormecer sem medo. A minha tristeza carrancuda e lenta como uma corda de pedal guarda o sono numa caverna, e não me relaxa o corpo, contrai-me como um acordeon e nunca me solta. Ele deixara o peso muito para trás, e só subia montes porque por dentro, era penas, nas as que se carregam, mas as que permitem a levitação. Juro que, quando me apertou a mão, os seus pés ganharam algumas asas, asinhas, mas que carregam tudo consigo.

Desde então que invejo o Tomás. Eu vivo num mundo, ele já visitou uns sete, e não fica por aqui. Quero ir com ele, mas peso demasiado. Gostava de me sentar no topo de um monte, qualquer um, mas de preferência com o vento a servir-me de casaco, e ser apenas isso, moléculas que vibram com a passagem de outras moléculas, esquecer tudo, ser apenas eu, deixar-me de outros que invariavelmente aprendi a ser e voltar a mim, ao que sou ao que quero, ao que o Tomás me disse um dia "o olhar onde tudo faz sentido, e quando não te encontras em ti, mas sim num espaço sem palavras". Esse, onde te sentas e te transformas numa anomalia geológica: uma massa não inerte. Invejo o Tomás, mas não significa que não lhe possa gamar uma coisa ou outra.

quarta-feira, abril 15, 2015

Abraço de breu



Há quem não perceba a diferença entre estar triste e estar deprimido. É muito óbvia para quem sofre, mas pouco evidente para os que estando de fora, assistem a alguém que parece estar apenas ligeiramente indisposto. Não se está. Pesa por dentro, como a mó de um moinho, colada ao estômago. O esforço de quem se encontra mergulhado nessa dor de nada dar prazer, de tudo ter um sabor desfeito a cinzas, é precisamente não se tornar num vírus que contamina os outros que ainda se preocupam o suficiente para estender a mão e tentar ajudar, quando não o conseguem. Não porque não gostem ou porque não queiram: simplesmente porque não compreendem.

Tenho vivido em períodos de depressão desde os meus 15, 16 anos talvez. Na altura, começou por me parecer uma tendência para a tristeza ou um estado de menor alegria, mas à medida que esse estado se prolonga durante dias que são uma longa colecção de instantâneos perpétuos de se achar que não se tem nada, começa a surgir uma certeza meio vaga de que não é tristeza. Quando desaparece, a depressão é apenas a recordação de uma fase menos boa (outro nome que também lhe dão, quando querem fazer crer que é tudo parte da vida normal), mas o seu regresso, com uma força dupla e ainda maior, deixa a certeza de que não é normal, não é passageiro, não é leve: é a lei da gravidade da alma, fazendo-a cair em impacto no chão da nossa mente. É nesta porta giratória que tem circulado a minha vida. Quando digo às pessoas que já experimentei de tudo, e todas as sugestões que me deram, não minto. Estar com a mente ocupada, sair de casa, procurar estar com pessoas, tentar ser positivo, arriscar, fazer as coisas ao contrário do que faria normalmente... Tudo. Nada resolve. Os períodos podem durar semanas ou, como já me aconteceu, meses seguidos. Acontece aí que queres fugir da realidade, principalmente; e não é da realidade da dor, é da realidade total: não contactar ninguém, não ver mais nada do que as quatro paredes de uma divisão fechada. Aconteceu-me já simplesmente deitar-me na cama e passar o dia todo, porque o simples som de alguém a falar me faz chorar. Ser frágil assim, quase de forma irracional e inacreditável; ou simplesmente, não conseguir suportar a presença de alguém no trabalho. Dares por ti com dificuldade em respirar, sem qualquer motivo físico. Ou deixares-te só estar, desistir de quase tudo o que podes fazer, e sentires perder, no processo rápido, o gosto por tudo o que antes te fazia começar o dia. É pouco isto. A espaços, foi metade da minha vida.

Porque não procuro ajuda? Já o fiz. Não resultou. Podia tentar algo mais forte? Sim. Mas na mente de quem está deprimido, a pergunta é óbvia: porquê? E essa pergunta faz a diferença. Porque estar assim é confortável, de certa forma, mas também a garantia de que não piora. Não nos faz sentido erguer com a certeza de se cair, e saber que se cai ainda mais profundamente. Novamente, quando se explica isto, ninguém percebe; e não é mania de nos sentirmos especiais enquanto habitantes do negrume (eu não me sinto, pelo menos): é mesmo o que se explica e se tenta. De todas as vezes que voltou, foi mais longo, mais forte, mais intenso e mais desesperante. Não quero descrever aqui o tipo de ideias que já me passaram pela cabeça, ou até o que habita dentro de mim. Sinto, de certa forma, que ando a viver um período desolador há quase ano e meio, com pequenos espaços para respirar pelo meio, um período que me fez perguntar, várias vezes: de que vale a pena? Eu juro que tentei responder à pergunta de várias maneiras. Mas em todas as respostas, não consegui encontrar na vida um motivo sequer de prazer permanente que me faça querer estar vivo. De certa forma, mantenho-me por uma sensação de dever, um martírio não religioso de quem suporta dor mental impossível porque sabe que ceder ao que é fácil é destruidor para alguém específico e uma falta de respeito para com quem não está, e de bom grado eu daria neste momento os anos de vida que me sobram para ter essa pessoa de volta, porque não sei que mais farei com o tempo que tenho de percorrer de arrasto.

A diferença entre estar triste e deprimido é um pouco esta: quem está triste faz contas de somar com o amanhã; quem está deprimido quer simplesmente dividir subtracções de tempo, e arranjar um atalho para não estar consciente, ou sequer sensível.  Sentir é o que sabemos mais, e por mais alto ou largo que se seja, nunca se é suficiente para aguentar a dor. Vivo na vontade de rebentar e no esforço de não fazê-lo, de fazer dos meus dedos ganchos, quando aqui e ali me oferecem um ponto onde me agarre.

Mas já faltou mais para desaparecer no vácuo do espaço.

quinta-feira, abril 02, 2015

Mentiras



Abri a caixa de correio e no fundo, dois envelopes inclinavam-se. Num deles, a escrita apressada e empilhada de uma caneta azul atirara-me aos olhos o nome do meu pai. Não é uma novidade que ele espreite ocasionalmente para fora daquela caixa. Nos serviços públicos e privados, nomes são números, e como a Matemática do luto, os números são imortais: existem sempre, porque prestam um dever. Mas ver assim na caligrafia personalizada de alguém que, pegando num envelope, tomou o meu pai como vivo e se demorou a enviar uma mensagem, abanou-me um pouco. Por alguns segundos, deixei-me levar pela ilusão e tentei-me a regressar para o interior de casa, chamando o meu pai do seu silêncio habitual para lhe entregar a carta. Durante esse pequenino espaço de tempo, onde couberam vários desejos, ele estava vivo. Menti a mim mesmo no 1 de Abril, e foi a única mentira que poderia tolerar: a de que o mundo não é mundo, mas sim uma construção, e que de quando em vez, os blocos tombam para se reorganizarem e termos a ilusão de que o tecido da realidade se vira do avesso, e que Julho foi apenas uma saída que não se tomou, e afinal o caminho correcto é mais à frente.

Contei então outras mentiras que queria ouvir. A dor que se vem acumulando no último ano não é afinal dor, mas sucesso;  o afogamento de um adeus é afinal esbracejar livre em águas cristalinas; todos os choros de revolta são sorrisos de satisfação; a raiva permanente é comichão passageira; a derrota está rota e deixa passar todas as vitórias que mereço; cada dia ímpar encontra-se quando somos par um do outro; a minha boca na tua é a verdade que procuro, e tudo o resto leves rumores que me levantam a pele para soprarem tudo o que partilhamos num olhar. Deixo que a carta me minta, e crio também uma ilusão da realidade, porque sem ilusão e sem as mentiras que podemos contar, não existe sequer a esperança de que tudo não passou de uma possibilidade, e existem múltiplas possibilidades. Até conseguir sorrir é uma mentira, mas escolho, nesses segundos, não falar com a realidade, sermos mudos, cada um no seu canto.

Vítor Manuel Paiva Cristóvão Simões. Assim mesmo, no azul de uma BIC, cravado na carta entre o recorte do papel. Ali, na mão de alguém, o meu pai voltou a estar comigo, vivo; e por momentos, também eu voltei à vida, aquela que queria e não a que tenho. Uma mentira. No sopro dos teus lábios, mesmo que na minha mente, também não me importo de ser enganado; e voltar a abraçar o meu pai é real, e isso basta-me.

segunda-feira, março 30, 2015

Ramos



Abre os olhos e sente-se uma bola de canhão, lenta, os minutos são atrito e cada um deles pesa no peito. É virar as noites do avesso quando acordar se sente como um choque frontal. Há um disparo algures na barriga que coloca o corpo em prisão, sem grades, suspenso na pena que tem de si mesmo. Já lhe chamaram dor de pensar, mas aparecia-lhe sempre na ponta da língua a anestesia de viver. Ou de ir fazendo de conta que a vida existe para lá de um rectângulo. Silêncio sepulcral no quarto, batalha campal para ficar com os pés para fora da cova, e morre-se quando não se vê para lá do dia em que se existe. Dormir é sempre mais apetecível quando os momentos magoam os dentes: Regressar para um útero com duas pernas, mas sem nascer: apenas sentir calor, por uma vez que seja. O frio dos lençóis convida à ilusão e a simplesmente desligar, não aparecer, poupar o corpo a mais uma jornada; e aninhado, encolhido, ele sabia-o e queria evitar o inevitável.

O inevitável é a vida, que demora a adormecer e a dar-se por vencida, não a pulsação ou a faísca, mas sim a luz que desperta e lança para o mundo olhares cobiçosos, mesmo que a fuga seja a razão pela qual se respiram bofes, se rouba o fôlego que se deita fora e se constroem cabanas sobre areia, ainda que nos convidemos ao estertor e e seja o desejo mais vivaz aquele de sumir no colchão, de render a guarda e guardar a renda que pagamos por cada salto sem rede e cada arremesso de nós sobre alguém que rebate para bem longe, mesmo com lágrimas nos olhos, porque nos fôlegos só conta o cansaço e nunca o exercício. Era isso. Se assim não fosse, o pé não seria periscópio de carne fora da manta, e não se daria ao risco de calcar os destroços de suspiros anteriores, espalhados por todo o quarto como um nevoeiro tóxico de respirar, mas doce embalo da noite. Quando afastou a campa e se viu de pé num calvário, atirou-se mais fundo do que os seus pensamentos: agarrou em mais um dia e deixou que se acomodasse no seu bolso, junto aos outros.

Um dia pegaria neles todos, faria um calendário, paginado, que faria dos tempos de outros um adiantar da hora de Verão. Um dia, ou dois, ou três. Quando sair da cama é uma surpresa, o tempo torna-se presente de aniversário para o futuro.

sexta-feira, março 20, 2015

Um dia são dias



Para nós, os que perdemos um pai, o 19 de Março é um pouco como arrancar um dente: tem de se viver, sabemos que vai doer e já está. A questão é que nunca está, e que continua a doer mesmo depois de o sol se ter posto e reerguido no dia seguinte. É algo que continua, enquanto nos lembrarmos. Tem de ser assim, e se for de outra maneira, algo está errado. Só dói porque se sente a falta, e a ausência só marca quando a presença contou de alguma maneira. Vive-se assim: enquanto houver memória, não há corações adormecidos. É uma gradação, mas chega um ponto onde não baixa mais: estabiliza. Nunca me consigo habituar a ir ao cemitério, as poucas vezes que agora visito, e não sentir nada; e nem me custa o passado. Arrelia-me muito mais o futuro, e tudo o que o meu pai não pode viver, principalmente o que lhe podia proporcionar. Gostava que tivesse orgulho naquilo que faço, em ter um trabalho e em construir alguma coisa de base, de algures no mundo haver alguém que tem dias melhores só porque eu dediquei a isso o meu tempo. Gostava que pudesse um dia pegar num bébé a que chamasse de neto. Gostava de lhe dar a oportunidade de não adiar e viver o que um dia deu por garantido e que um atalho da vida lhe roubou. Tudo isso me dói, e se calhar é também egoísta porque o prazer que teria em vê-lo partilhar de tudo isso é mais meu que dele. Alguns meses depois, descubro que uma parte minha morreu com ele, e não teve enterro. Paira sobre mim.

Não vou falar mais desta dor. Não a vivo sempre, há dias em que consigo que me passe ao lado, principalmente dias em forma eLíptica e dias de amigos que estão quando até nem quero que pessoas invadam o meu espaço. Mas há quase sempre um momento em que não ignoro. Dias do Pai? São praticamente todos, devo-lhos e quero pagá-los. A minha prenda é cada momento em que respiro e sigo. Espero que seja o suficiente, pai.

segunda-feira, março 16, 2015

Um fragmento



O céu era o seu dono, mas o cardume de mar alugava-o em dias de tempestade: o farol, no topo da falésia, embalava o sono dos aldeões quando estavam acordados, e só os despertava no sono, quando se corre onde se quer porque se está seguro. Segundo se lê num livro quase carcomido na gaveta da casa paroquial, os Celtiberos mantinham uma fogueira naquele preciso local, quando se tornava obrigatório estender a mão a quem guardavam dentro dentro de si, mesmo que os braços fossem pequenos. A luz ajudava os barcos a contornar o perigoso promontório, e desde então que a falésia tomava para si os medos das pessoas, apenas para dissipá-los. O rei D. Sancho I ali mandara erguer uma pequenina torre, um ensaio do farol, e como os séculos nunca levam consigo os temores, deixando-os apenas mais reforçados para o tempo que se segue, cada pessoa que vivia na aldeia sentia o súbito apelo de ver a figura entrecortada de um pilar luminoso, quase em contacto com a esfera que servia de tecto às suas cabeças, como uma antena que reúne os desejos íntimos e os põe em contacto com o que de mais externo existe. O farol era uma necessidade, e de riste em riste, o século XIX cravou aquele empilhamento de tijolos ordenado que resistia a praticamente tudo, exceptuando uma tempestade em 1949, quando as lâmpadas estilhaçaram, vítimas da cirurgia brincalhona de um relâmpago. No entanto, a estrutura manteve-se com a seriedade devida aos garantes da estabilidade mental de toda uma aldeia, e se todos tremem, nunca o farol pode sequer abanar. Não abanou, não caiu e apenas se despenteou.

Tiago olhava-o todos os dias, antes de dar o mundo aos seus pés. O seu olhar, numa tentativa de fazer do mundo um esboço de casa, tentavam trazer a Tiago algum conforto que aquele assertivo pilar com alma parecia encerrar no seu silêncio. Há muito que na aldeia se perdera a mística dos tempos antigos, mas em Tiago, reverberava ainda um lampejo do que não se descreve porque não se sabe, mas que se sente, pois nunca se esquece. Já só aqueles que tratam o tempo como um expoente elevado ao cubo erguiam, pelo menos, um reflexo gesto de saudação a quem lhes protegera os sonhos de criança. Tiago imitava-os, já adulto, mas tudo tinha um sentido: afinal, ele guardava em si ainda o que sonhara em criança.




domingo, março 08, 2015

Bloco


Consegues senti-lo? O giroscópio da tempestade a abanar na tua barriga, chamando pelo movimento  penumbra de todas as cavernas que te deixam oco? O esmorecimento, o desânimo, o descalabro que martelam com mais fulgor do que qualquer outra música ou ruído? És capaz de inquietar a tua mão em ti, e perceber como um redemoinho te absorve afunilado para o teu interior, espirrando-te numa confusão de peças para que nem sequer tenhas veleidade de te reconstruir? Sentes, não sentes? Está lá, e depois de se dar aos ventos, é incapaz de parar. Roda sobre si mesmo, faz de ti rotação e às voltas tantas, percebes que nem sequer te mexes, e que nem pretendes fazê-lo. Por dentro, o bulício; por fora, a inércia. Colocar o teu peso sob as pernas custa quase tanto como dar pernas ao peso do tempo que te preenche. Sentes sim. Até demais. Quando estar junto a outros te transforma os olhos em lagos, quando simples palavras alheias são agressões ao teu bem-estar, quando cada palavra de incentivo é uma úlcera por dentro da carne. Tudo gira, nada te parece giro. Nada te parece sequer: apenas está ali, a boiar, a rotação desacelera a gravidade e flutuas sem atrito e realidade, todos os resultados possíveis e aleatórios te são indiferentes. Não alternativas, porque não as escolhes. Cada desvio e cada atalho têm o mesmo destino, e tu sabes qual é: o giroscópio é também bússola e o rumo encravou.

És curto demais, e encolhes-te na cama. Lençóis por cima, todo o mundo uma muralha que te recusas a ultrapassar, porque não há razões. É aí que finalmente sentes a falta de sentido.

terça-feira, março 03, 2015

MicroMacros



Sem ela, o tempo é uma colecção de estilhaços. Carlos, de pé no centro do seu próprio mundo, perguntava-se se um dia era dia sem que a voz dela fizesse nascer o sol, mas o mundo gira em redor dos astros mesmo que agora o tempo fosse menos particípio e mais passado. Carregava em si o peso das partículas, dos pós que se amontoam aos poucos nos tecidos e nas articulações e fazem os segundos em que que nos desintegramos, apodrecemos e, consequência final, carregamos o nosso próprio fim. Cada passo é mais um bocadinho de nada, e por isso estava parado. Se não se mexesse, talvez sossegasse, na ladina paz do respirar que parece prolongar a vida quando traz a pequena morte ao corpo, e um funeral florido ao espírito. Carlos carregava o seu próprio andor sob duas pernas, e no momento, a imobilidade pareceu mais amiga do que os gestos. Quando nos dói, a acção assume figura inimiga, e há sempre a ideia de que um passo equivale a peças partidas. A dor transforma a pele em porcelana, cada movimento uma fisga pronta a rachar o que aparenta estar inteiro, mas sabemos, numa pequena nuance do ar, que quebrámos sem apelo. Era isso, Carlos partiu-se, e o peso era tudo o que nele estava contido e agora perseguia o vazio com a mesma voracidade com que digeriu Carlos.

Como tudo o que se parte, Carlos foi ao chão. No pó acumulado, talvez um casulo, e mesmo na verdura que o tapa, uma caverna. Em tudo o mais, vassoura que acumula na caverna tudo o que escapou. Voltar a ser inteiro ou refazer-se com o que se tinha: tudo o que Carlos pode procurar é simplesmente saber se está a tempo de se desfazer do que não pode.