quarta-feira, dezembro 03, 2008

Em terra de cegos


O que vou dizer pode soar polémico, e se calhar até é, tendo em conta o escritor envolvido na afirmação. Mas a conclusão parece-me ser tão lógica que não posso evitar escrevê-la: José Saramago é um escritor que pertence a Hollywood.
Pronto, já o disse. Saramago, cujo temperamento pessimista, atitude iconoclasta e afiliação esquerdista extrema, não é, à partida, homem que se preste a relações com a meretriz babilónica que é a meca do cinema. Mas o facto é que boa parte dos seus livros parte de gimmicks que se assemelham à noção de high-concept pitch surgida na década de 80, em que um filme pode ser resumido pelo seu ponto de partida. "Speed", por exemplo, é "Die Hard on a bus". Os livros de Saramago são assim, redutíveis numa frase que ecerra em si o conceito que o faz mover. O Homem duplicado. Jangada de pedra.
"Ensaio sobre a cegueira", com a sua piscadela de olho aos clássicos de ficção científica apocalíptica, estava a pedi-las. Nunca li o livro, confesso, e também não apreciador de Saramago. Mas ter como ponto de partida uma cegueira generalizada da Humanidade, vinda do nada, que destrói a sociedade como a conhecemos é uma ideia altamente cinematográfica. Por muito que a escrita de Saramago possa ser mais complexa e profunda que aquilo que um filme pode exprimir, o filme é uma tradução literal e fiel daquilo que me parec consistir o principal sumo de toda a alegoria: a cegueira. O mérito vai para Fernando Meirelles, um realizador que passou de muito interessante para extraordinário. Diz-me quem leu o livro que a obra não era filmável, mas Meirelles e o seu director de fotografia, Cesar Charlone, transportam para o filme a cegueira que contamina a maior parte dos personagens, através de planos de câmara bizarros, uma vasta paleta de brancos e um desfocar do mundo. Isto é uma tarnsferência da obra literal, do espírito das letras para aquilo que a imagem cinematográfica tem de melhor. Isto é uma das coisas que me agrada num realizador: quando as suas imagens e o seu estilo contam metade da história. Nós sentimos a cegueira, e talvez por isso a nossa empatia com os personagens que sofrem dessa condição é total.
Meirelles e Don Mckellar (um tipo que escreveu e realizou um filme de 1999 chamado "The last night", sobre as últimas horas do mundo, onde também entra Sandra Oh, participanete em Blidness", e até David Cronenberg faz uma perninha num memorável e estóico papel) mantêm as ideias principais do livro e do próprio escritor. Por isso o filme é duro, sujo e pessimista. Acho que pedir a Saramago que tenha uma visão luminosa do mundo é demais. A base do filme é que se o mundo mergulhar na selva, o homem é mau e nada se poderá resolver. Ou seja, o ser humano não é bom por natureza, naquilo que é um conceito típico de Direita usado por um escritor tão eminentemente esquerdista. Toda a estrutura do filme se baseia nessa ideia e é isto que a sustenta. É corajoso da parte de Meirelles que faça um filme assim, com poucas hipóteses de redenção e de colocar um sorriso de paz nas nossas caras. São duas horas de murro no estômago, de mergulho ao horror da Humanidade, com violações, homicídios, raiva e sacanice a rodos; e o mais curioso é que a reacção do espectador dá razão ao autor. Há alturas em que queremos ver a raiva a tomar o controlo. Somos cegos. Somos contaminados pela mesma cegueira que afecta os personagens do filme.
Destaque óbvio para Julianne Moore, uma das actrizes mais corajosas que conheço, e para Mark Ruffalo, num papel de contenção que balança toda a tragédia pela qual passa no filme. O grande protagonista do filme é realmente Fernando Meirelles, um homem que depois de "Cidade de deus" e "The constant gardener", parece-me incapaz de fazer realmente um mau filme. É agradável vê-lo abandonar a sua habitual estratégia de câmara que treme para encetar alguns planos belíssimos da cidade em ruínas e um cena cliché de qualquer filme apocalíptico (chove...) é transformada pela sua câmara em algo de belíssimo. O único grande defeito que se lhe pode apontar é que parece haver algum desnorte narrativo durante o quarto de horas seguinte a uma cena fulcral do filme que envolve um incêndio.

Um filme que não é certamente para todos. Haverá quem goste e quem odeie. Na verdade, é preciso ter estômago e olhos programados para o filme. É um pouco como sinto em relação à escrita de Saramago.

2 comentários:

Post-It disse...

Ah, já foste ver! Ainda não me apeteceu, e depois da tua descrição, ui, muito menos... Estou farta de "finais de mundos"! +_0
(desta vez não estavam esgotados os bilhetes, ahah!).

Anónimo disse...

Gostei muito mesmo.
Quem disse que era bom, quem foi?ehehehehe