domingo, julho 28, 2013

Um ano da graça por onde vagabundeiam desgraçados


A primeira vez que Bruno Fernandes leu Bolaño foi no Verão de 2013, em Coimbra, onde aguardava na sala de espera do S. Jerónimo tinha ele 30 anos. O livro em questão era "2666". O jovem Fernandes desconhecia no momento que aquele romance era na verdade cinco, e que o autor estava morto num só pedaço, e que este pedaço era na verdade cinco desejos de testamento que se tinham fundido num só por vontade dos editores. Fernandes não achou isto estranho, ou até aproveitador, o que pode ser atribuído a uma ingenuidade a galope, ou então à pura absorção que a escrita muitas vezes seca, mas a espaços límbica de Bolaño lhe provocou quando leu a frase "A primeira vez que Jean-Claude Pelletier leu Bolaño foi em 1980, em Paris...". Depois dessa frase, seguiram-se várias, num encadeamento de mão em mão como crianças que jogam ao "senhor barqueiro". É do carácter dos portugueses decretar o lirismo como o último dos seus bastiões, mas Fernandes sabia que em Bolaño o lirismo não era evidente. Estava enterrado no meio de cadáveres de mulheres, das areias do deserto, de pessoas que fodem porque precisam de descarregar o tédio de viver numa cama, como se fosse uma arena, e a vida uma tourada em permanência que arrasta a atenção para o centro das pulsões a que o sexo dá expressão, forma e até asas. A beleza da loucura pode estar simplesmente num livro deixado à conta dos elementos numa corda de roupa, mas era mais fácil procurá-lo no homem que conseguiu sair do fosso da vida através de receitas de costeletas.

Um chileno a estampar o México num livro, e as dezenas de cadáveres que apareem maquinalmente ano após ano desde 1993. A primeira, Esperanza Gomez, veio antes de Oscar Fate, cujo destino fora conhecer a filha de outro Oscar,um Amalfitano. Mas Rosa veio depois de Liz Norton, que tanto Pelletier como Espinoza sonharam possuir, como se fosse a argola onde se agarravam quando a figura de Benno von Archimboldi se tornou tão fantasmagórica que as suas mãos já só apanhavam pouco menos do que fiapos de solidez enganadora. Morini, mesmo paraplégico, ganhou a corrida, mas nada pôde fazer por Esperanza, nem dar esperança a um país tão imerso no horror costumeiro que uma pilha de mortas por toda a gente esquecidas não incomodava mais do que uma picada de mosquito. Archimboldi conseguia percebê-lo, se voltasse a ser Hans Reiter, mas preferia estar no fundo do mar a cultivar algas, longe dos estilhaços dos morteiros, das explosões da guerra e tendo na cabeça a noite em que contemplou a Baronesa von Zumpe a foder com o Coronel Entrescu, homem lendário do exército romeno pelo tamanho da sua descomunal verga. A vida e a morte estão separadas por anos, que são páginas, que são frases e que no final, nada mais amontoam do que os grãos de areia que preenchem o deserto do estado de Sonora, numa Santa Teresa que é ficção, mas ao mesmo tempo real em Ciudad Juarez.

Na última página de "2666", Bruno Fernandes encontrou isso, e estava rodeado por isso, mesmo que isso o fizesse fugir assim à certeza de saber superar as agruras da espera. São 1100 páginas que contêm tudo o que se quiser, e cuja violência que põe o mundo em chamas é tão natural como comer ovos rancheros no México. O Mundo esquece que há violência, porque se renova através dela, e engole o que resta da vida num golpe bárbaro que está no coração dos homens. Fechando o livro, Fernandes guardou para si não a violência, mas a imaginação que permite a um homem morto viver durante muito tempo na bílis segregada pelo seu cérebro, a que alguns chamam pensamento, mas só por desconhecimento de que a alma existe, ou não, e assim dar espaço aos racionalistas, como Leibniz ou Descartes, de assumirem que é o cérebro a razão última do mundo, mas claro que isto é falso, porque a razão única do mundo são as mulheres mortas de Sonora, que todos esquecem, mas que querem lembrar, e no entanto a morte existe para ser lembrada por quem não tem medo e esquecida por quem a teme, e por isso as mulheres mortas continuam esquecidas, juntamente com aqueles judeus enterrados na vala da cidade polaca. A vitória da Morte existe quando a imaginação é derrotada, e Fernandes lia em Bolaño um desespero cínico que queria acreditar realmente na imaginação, e em úlitma instância na loucura, como figuras crísticas de ressurreição. O escritor era Lázaro, regressando da morte para ser lembrado, mas o derradeiro insulto que podia receber era precisamente a glória do reconhecimento. 2666 é o ano onde o paradoxo se cruza, e se Archimboldi realmente ganhar o Nobel, Hans Reiter vai esquecê-lo, e lembrar-se apenas de que no apocalipse, os livros são combustível. Mas curiosamente, também o podem ser da salvação. Bruno Fernandes arrumou o livro na mochila, levantou-se e procurou a chave do carro. Uma vez encontrada, saiu do hospital e partiu para casa.

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