segunda-feira, setembro 29, 2014

A deriva do universo



Quando uma pessoa decide voltar a ser duas, o mais difícil não é deixar o outro: é voltar a estar connosco. Nem se consegue ficar sozinho, porque parece que não está ninguém onde ficámos; procuramos sempre regressar a outrem quando, de facto, nem sequer existimos. Há um corpo, há uma ideia qualquer de nós, mas não acontecemos. Recuperar isso é a parte mais difícil de partir.Queremos ser adjectivos, mas eles são grandiloquentes e não nos servem de nada, porque as palavras só amam quando do outro lado as abraçam. Palavras que encontram ausência são vazias e não desejadas. Por isso, surge a necessidade de sentar, chorar e durante uns bons tempos, exprimir tudo o que queremos, tudo o que sentimos através de verbos. Na inacção, a acção é uma boa maneira de mostrar que algo mexe, e não estamos bem mortos; e se de facto não estamos mortos, existimos, e podemos partir à nossa procura.

Sinto-me assim. Não sei bem que sou, nem sequer em que ponto estou. Gostava de poder deixar palavras bonitas sobre reconstrução, sobre progresso, mas quanto mais escrevo e quanto mais sinto, mais encontro o meu coração em todos os lugares menos o esquerdo do peito, e a maior prova de demência é usar precisamente o coração como símbolo de tudo o que me levaram, quando devia estar a colocar-me nisso. Não me levaram tudo, mas o que me deixaram foi a incerteza de estar completo.Há dias que se passam melhores do que outros, e se não sentimos que arrancaram algo à mãozada, é porque não demos sequer o que devíamos. É o meu único consolo: queria provar que era capaz de amar alguém, e consegui fazê-lo. O problema é que só eu é que reparei: do outro lado, silêncio, e partida; e fiquei eu, com tudo metido numa mochila e com guia de marcha depois ser atingido por um míssil teleguiado e os estilhaços sumirem na sua pequenez anã de lágrima vazia. Recolhê-los demora tempo, porque muitos não estão mais. Amar outra pessoa é basicamente uma desconstrução, e cada lego desmontado é uma certeza que não se voltará a colocar na ordem certa. Volta-se de uma relação com outra estrutura, e muito diferente de quando entrámos. Isto se alguma vez voltarmos de todo. Muitos permanecem numa nuvem qualquer, porque querem ficar o mais parto do céu que conhecem. Quem aí mora não sabe que se atravessar a nuvem encontra as estrelas, e nessa espera, torna-se num buraco negro que acaba até por sugar o céu estrelado, fazendo-o desaparecer.

Nesta nave espacial que é o blog, sinto-me em órbita de mim mesmo. Cada frase é uma tentativa de me alcançar e descobrir. Cada ponto final encerra uma ideia que abre três, e sinto como se estivesse a fazer a minha própria psicanálise através dos olhos de alguém doente. O diagnóstico ainda não é definitivo e só é reservado a mim mesmo. O que me mói, o que me farinha é qualquer coisa que ela me tirou, e também qualquer coisa que ela me deixou. Não estar, ainda assim ocupa um espaço que ressoa nos cantos côncavos da circunferência universal. Ela como uma gigante vermelha, eu como uma anã branca. Do Big Bang, sobrou a nossa poeira, reorganizando-se numa supernova. Duas supernovas, ainda nebulosas. Sentado aqui, da torra de vigia universal, ainda não consigo ver o que cria a minha. Continuarei sentado, e o meu público, vocês, em gravitação permanente. Ela virou meteoro, em rota de colisão com o planeta de "nem quero saber".


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