terça-feira, setembro 30, 2014

Setembro



O meu pai faria hoje 58 anos. Melhor, faz hoje. Coloco o meu pai no passado, mas apesar da marcha irrevogável do tempo, está em meu poder deixá-lo no presente. Muitas vezes esquecemos que não controlamos tudo, mas a nossa percepção é isso mesmo, nossa. Viver o ontem ainda hoje é uma escolha, e se bem que a prisão do passado é perpétua, não tem que se sempre má. Por isso, somo pequenos actos de rebelião. Quando visito o meu pai, falo com ele como se o encontrasse em casa, ou seja nada. Mas imagino-o a olhar de quando me vez, como se me visse saído de Marte, e a voltar a atenção novamente para algures que o confortasse mais com a realidade; e hoje mesmo, levei um pequeno bolo, com uma vela, e cantei-lhe os parabéns como se ainda estivesse ali para ouvi-los e começar a bater palmas desalmadamente a gozar, cantando fora de tom e de ritmo, só para desvalorizar uma data à qual, claramente, atribuo mais importância do que ele lha daria.

Eu sabia que Setembro seria o mês de todos os portentos. Para além de um aniversário eterno, os meus pais fazem anos de casados; o meu avô Carlos fez anos no primeiro dia do mês, e ainda em Agosto, mas celebrado invariavelmente no mês seguinte, a minha avô Lurdes também celebraria um aniversário. Começo a ter demasiada gente importante a concentrar-se em tão pouco tempo. Quem se ri é o Natal, que passa a ser, por comparação, muito menos deprimente. Quem vão não volta, mas o problema maior é que nunca sai, e não conseguimos esquecer quando queremos. São sombras, por vezes fugazes, e quanto mais o tempo passa, mais desaparecem os contornos e bem podemos estar certos da sua realidade enquanto gente, mas a dúvida é se aquilo que fica é o que era, ou simplesmente o que acreditamos e fixámos com tudo o que dizem e contam e como queremos recordar. Quando o tempo se dilui, sobra a nossa versão do que é real, e uma ponta de insegurança invade sempre as nossas histórias e memórias. Eu creio que estou certo, que o Vítor, o Carlos e a Lurdes são quem eu me lembrava, e que todas as histórias aconteceram como as escrevo e conto, e que quem parte é uma certeza, e não um fantasma, que por muito que ainda lembre o meu pai, que ainda nem sequer soube morrer, os meus avós também lá estão onde quero guardá-los, quando me tento localizar a mim mesmo, nesta procura da minha individualidade, da qual eles fazem parte, desde as molas ao cimo da escada às sestas na sala e ao colo da Lurdes. Isso também faz parte.

A melancolia vai preencher o vazio do meu pai durante algum tempo. O universo tem um horror ao vazio, e sendo o nosso coração um cosmos, é natural que o abomine também. Já não choro, embora esteja tentado em ocasiões, não só quando Setembro acaba, mas bem para lá disso. Naquele rectângulo, cabem flores e pedras; mas também caibo eu, acima de tudo. Não é só a melancolia que preenche o vazio, são as pessoas também; e não tendo eu, mesmo com a altura, espaço para tapar o contorno do meu pai, consigo ao menos que uma campa não seja só frio e tristeza: é também espaço para cantar os parabéns a quem não pode sobrar as velas, mas incendeia o meu interior.

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