quinta-feira, dezembro 05, 2019

Fachinação 12: Chá no deserto


Vira a pala do boné para o lado contrário e enquanto acelera numa enorme recta cujo fundo vislumbro em maneira de miragem, ri-se e acena-me positivamente com a cabeça. Não sei se me quer dizer algo ou se, à boa maneira de quem não conhece o interlocutor, é um daqueles tiques de familiaridade. Só sei que é taxista e tem idade suficiente para participar num picanço. Apanhou-me, ao Joaquim e à Isabel na estação de Turpan e tentámos explicar-lhe o hotel que nos serve de destino. Talvez tenha percebido, ainda não entendemos. O jovem está num passo à frente dos profissionais do volante de Kashgar. Não se atreve a usar gestos como lingua franca. Quando pretende comunicar, saca do telemóvel. Escreve algo e o Google translator transmite a sua ideia num inglês rude, mas compreensível. Nota-se logo o desenrascanço: pergunta-nos a origem, regozija-se com Cristiano Ronaldo, quer saber os nossos gostos musicais, embora me pareça que no seu auto rádio é o único ditador cuja vontade conta. O carro enche-se de uma versão oriental de "Shape of you", de Ed Sheeran. A letra é toda em chinês, excepto o refrão. Nhonhinhanhinhinhi shape of you. Não piora, mas também não melhora. Como nos rimos perante este clássico instantâneo, esta canção tão chinesa, o nosso condutor entende isto como uma aberta para arranjar uma oportunidade de negócio. Enquanto conduz, escreve ao telemóvel. Mostra-me "Need a driver? I'm available, cheap". Dou resposta negativa de maneira educada sem pronunciar uma palavra. Tentem fazer isto, é muito mais complicado do que parece. Ele está na boa, polegar esticado, siga para outra e regressa ao celular. "No speed limit, no tickets in Turpan. Will drive fast". Para ele, é espectacular. Para mim, que já estou vacinado contra os condutores da Ásia Central, uma sequela do livro do desassossego.

Turpan presta-se a velocidades. Um imenso deserto por largos quilómetros rodeia a cidade e as poucas elevações á vista são montes de areia. Tem a curiosidade geográfica de ser o local mais baixo de toda a China e o segundo em todo o mundo, apenas atrás do Mar Morto. São cento e cinquenta e quatro metros abaixo do nível do mar. É, portanto, possível subir a um dos montes que vejo e estar alinhado com o oceano. O nome da cidade alude a isto: significa "Grande depressão", o que me faz sentir uma ligação próxima a este sítio ainda antes de qualquer visita. Apesar da sua secura e de uma temperatura média anual que ronda os quarenta graus celsius, a principal actividade desenvolvida em Turpan é a agricultura. É a capital das uvas chinesas e há uma grande probabilidade de, tendo comprado um pacote de passas em qualquer ponto do país, ele ter saído daqui. A vindima e as vinhas definem a personalidade dos seus habitantes e o seu modo de vida. Parece um paradoxo que um local tão arenoso seja este portento do cultivo agrícola, mas a origem de Turpan provém de um oásis, como quase todas as cidades importantes de Xinjiang. Há acesso fácil água, mas com as alterações climáticas, resta saber até quando. Não é um problema que passe ao lado dos agricultores chineses, como verão na próxima crónica. No entanto, antes do fantasma da Greta futura ter surgido com preocupações ecológicas, muito antes disso, este era um importante entreposto da Rota da Seda. Por várias vezes mudou de mãos entre reinos que mas tarde seriam aglutinados no grande Império Chinês e por este passado de conflito, é possível visitar vestígios de culturas muito variadas na província de Turpan, passagens de religiões tão diferentes quando o Budismo e o Islamismo.


A geografia da cidade de Turpan não é complicada. Uma vez no seu fraco bulício, trata-se de uma longa avenida com ruas perpendiculares, umas mais estreitas, outras com largura suficiente para, pelo menos um par de camiões desfilarem em casamento. Boa parte das casas parecem estar ainda em construção, numa arquitectura que simplesmente esqueceu telhados. Abunda o já familiar tijolo de burro e uma decoração que deve bastante aos arabescos. Ocasionalmente, ressaltam cores garridas, habitualmente azul, mas as paredes carregam-se das cores do deserto, um vermelho profundíssimo que recorda as montanhas flamejantes das areias encarnadas de Turpan; e um pálido castanho, reminiscente das planícies desérticas mais a Leste. Por entre duas casas, o táxi conduz-nos num beco estreito. Por momentos, pensamos que se enganou e afinal o tradutor é tão falível quanto a nossa própria ignorância do idioma chinês. Mas não. afastado de tudo, num pequeno largo, surge um hotel com inscrição: "Silk road lodges - the vines". Saio do táxi e enquanto tiro as malas, reparo que sim, do meu lado direito existe um espaço com aspecto agradável, coberto pelo verde das vinhas, mesmo a matar nos dias de calor. Que são estes, afinal, dez e tal da manhã e o ar abafado já me seca os pulmões e o corpo. Nem quero imaginar as tardes. Enquanto esperamos pelo resto do grupo, entretemo-nos com um par de cães que por ali circulam. Afáveis, dados à brincadeira, disponíveis: claramente, não foram treinados pela polícia chinesa. Sigo-os até ao interior do alojamento. Uma pequena praceta com bancos e mesas parece pedir noites de Verão a enganar a canícula com a brisa nocturna, conversa à volta de chá, noites em que não apetece ir para a cama. A praceta é rodeada dos quartos, em dois andares - alguns no piso térreo, outros no elevado e separada, uma zona de restauração, com mesas em interiores e exteriores, no num terraço. Afastada, nas traseiras do hotel, encontra-se uma pequena e tosca piscina, vazia, o que dá mesmo jeito em altura de Verão porque é disso que precisamos.

Estou desejoso de me meter no quarto. Uma noite num cabine de comboio e quase dois dias sem passar o meu corpo por água devem ter criado um segundo eu de sujidade na superfície da minha pele. Uma coisa que raramente abordo nas minhas crónicas de viagem é o espaço intermédio. O que acontece quando tenho de viver o quotidiano de andar de lado para o outro. Aquele ritual de criar casa onde esta não pode existir. Os quartos de hotel são locais muito estranhos, onde nos devemos sentir familiares, mas de familiaridade têm pouco. Somos convidados a habitar um espaço , com a certeza de que um dia ou dois depois deixará de ser nosso. Tento não criar uma relação com eles, mas sei perfeitamente que por entre as longas viagens e, por vezes, um cansaço que se acumula como um saco de pedras, a cama que neles repousa é aquela recompensa. Quando entro, deixo a mala e a mochila ao fundo da cama, sem querer saber muito como ficam ou onde estão. Apenas me quero livrar delas, de uma maneira que não posso usar com outras coisas da minha vida. Morro na cama, mas de olhos abertos. O corpo dormente, o sangue latente, tudo bem presente. Procuro Internet com o telemóvel, sei que, ainda por cima quando estou há mais de uma dia sem dar notícias, há quem possa pensar eventualmente que não morri numa cama simbolicamente: faleci mesmo. Claro que na China, enfrento esse inimigo que é o vigilante cibernético que controla os sites que posso visitar. Através de uma VPN, uma aplicação que permite contornar esse pequeno problemas mas que facilmente me pode valer uma rabecada de cacetete caso seja descoberto, evito essa questão. Mas demoro a ligar-me. Penso em como, na verdade, uma boa parte desta vigilância até é papelão, que algures, que controla este sistema poderia saber facilmente que está a intrometer-se no mesmo, quem transgride e simplesmente não se importa. Se sabiam a que horas chegava hoje, podem muito bem ter-me naquela lista de gente que, de certeza, está mortinha para ser ocidental numa terra onde isso apenas é permitido se aceitarmos o capitalismo brutal como a única definição do que é o Ocidente. Escrevo que sim, está tudo bem. Satisfaço algumas curiosidades. Falo com quem devo, falo até com quem não devo. Publico fotos, espero likes para depois. Sou tão vulgar quantos os mais vulgares deste mundo, tão humano e falível como qualquer um que procura aprovação e aclamação dos outros, mas quero sentir-me especial. Passo as viagens entre sentir-me patético e único, na variação de uma paisagem, de um momento mental. O Hélder usa a casa de banho em primeiro. Vou eu a seguir. O chuveiro é enorme, largo. A água tomba como dedos que me tentam apagar os tremores da consciência, mas só a amolentam pela força da água tépida. A minha cabeça encostada à parede não estaca nem tem pausa, o interior é Le Mans em dia de corrida, vinte e quatro horas de aceleração. Quando a vejo na água, sinto-me sujo e limpo em simultâneo. Como se entrevisse o arauto da minha própria destruição e a única ilha deserta onde me posso sentir em casa. Desligo a água e a toalha trata do resto.


No exterior, alguns dos meus camaradas já destilam. Um punhado, claro, vidra no telemóvel. Um ou outro estão apenas e só a suar. O Mário, meu colega de viagem no comboio, reclina-se na cadeira com liberdade. Trato-o por "Comendador", pois este advogado de Fronteira possui nos seus genes a memória nobre dos grandes lidadores que defenderam as planícies do Alentejo, lendários homens dos tempos da Reconquista. Reza uma lena alentejana que Gonçalo Mendes da Maia, um desses bravos cavaleiros, enfrentou os sarracenos em combate quando tinha 91 anos, não se vergando sem antes matar alguns. É, obviamente, implausível e provavelmente uma confusão histórica; mas o nosso Mário, de óculos escuros garboso, a verborreia erudita pronta a discorrer num torrente fluvial de discurso retórico, sente-se e senta-se numa casa que não é sua. Imperturbável e estóico. Até a verdade de hoje ser mentira hoje também e num deslizar das pernas da cadeira, quase tomba e beija o poeirento chão. No entanto, segura-se este formoso e agora mais seguro do que há uns segundos. Sem óculos, exclama "Ai a minha vida" e aguarda uns segundos por algo, um algo que a todos passa despercebido. Quando fecha a porta de um quarto, finalmente confessa que no seu sonho acordado, o Comendador de Fronteira deparou-se com a visão despudorada de uma jovem que enfrentava o seu distraído olhar despojada de qualquer peça de roupa, uma Vénus de Milo que reencontra os seus braços e decide assim agredir o mundo com a sua viçosa juventude. Comendador Mário, surpresa e surpreendido, sentiu-se agradecido pela nudez inesperada e a sua resposta corporal fora da queda, como alguém conspurcado pelo pecado original tomba do Paraíso rumo à Terra. Aguentou-se, no entanto, permaneceu nesse estado de graça que apenas os beatíficos de sangue nobre podem transportar e trazer. Comentou, ainda assim, que a jovem enchia-se de qualidade e que não dera o tempo por mal perdido. Queda por queda, que seja de joelhos para agradecer ao Céu estas delícias que o acaso oferece por caminhos que alguém maior desenha.

Já caminhando nas ruas de Turpan, algo fica óbvio: os habitantes são extremamente simpáticos e abertos. Querem ser fotografados connosco, querem fotografar-nos. Quando os abordamos, há sempre uma palavra, mesmo em chinês, e à falta de comunicação verbal, oferecem-nos algo. Fruta, principalmente, uvas. Muitas uvas. O que eles adoram comer e dar a comer uvas. Orgulham-se muito das suas, querem que também nos orgulhemos e aceitamos. De manhã, a ideia é visitar apenas um local que não fica muito longe do lodge - a mesquita da cidade. Na verdade, isto é um exagero de descrição. O que existe de importante do edifício é apenas o minarete; mas compensa isso sendo o maior da China. Já descrevi anteriormente a relação que o Estado chinês mantém com as minorias e particularmente com os seus muçulmanos, visto e tomados por atacado como terroristas sem excepções, que só podem ser salvos através de uma reeducação intensiva. Estava portanto muito curioso para saber como estava a ser tratado este local aparentemente relevante para a cultura islâmica. Encontramos, claro, polícias, passeando-se à entrava por entre bancas de vendilhões de quinquilharias. Aqueles que no grupo se dedicam a essa religião por ali ficaram; os restantes foram avançando. Encontrámos uma guia, que explicou a necessidade de pagar bilhete para entrar. Tudo bem. Pagou-se. O ritual de vigilância da mochila era familiar, mas aqui, pelo calor emergente do dia, o menosprezo de lassidão dos guardas era notório. Antes de chegarmos ao edifício, existe uma larga praça de meio quilómetro a percorrer. No meio, a estátua de Qianlong, o imperador que ordenou a construção do minarete no século XVIII.Logo atrás, uma grua. Ora, estarão os chineses a tornar mais bonito este espaço de culto? Claro que sim, mas à chinesa e já fomos concluindo que restauros à chinesa são normalmente péssimos e descaracterizadores. Este não é excepção. Qualquer decoração exterior desapareceu. Qualquer sinal de uma cultura que não a chinesa nem existe e só não mandam abaixo a torre porque parece mal. No tipo de gesto que habitualmente conduz a amizades fortes com algemas, o Zé Luís dá uma palavrinha à guia e exige a retirada à grua, visto que se pagou bilhete e isso deve incluir a panorâmica fotográfica imaculada. Incrivelmente, ela concorda. Pede apenas uns minutos para informar a empresa de construção e já teremos o que desejamos. A China vergando-se a portuguesas? Que inversão estranha de papéis!


Um corredor de vinhas leva-nos ao minarete. Feito de madeira e tijolos castanhos, é simples, muito despojado. O edifício em si tem características muito orientais, o que torna as raras mesquitas do país em híbridos arquitectónicos muito estranhos. Como é normal na arquitectura, os elementos de decoração que sobram, até no interior, são abstractos e não figurativos. Quando entro, um espaço circular antecede a sala de oração. Esta é escura, cortada apenas por uma navalhada de luz vinda do tecto, numa abertura. O chão cobre-se de alcatifa, de tons verdes, vermelho escuros. Vigas de madeira suportam o tecto e cravada numa delas, um olho branco que tudo vê Alá comunista vigiando os seus filhos: uma câmara que invade um espaço religioso sem qualquer respeito por crenças ou momentos pessoais. Isso são luxos individuais numa sociedade que se pretende colectiva, todos iguais, todos no mesmo modelo, aceitando um poder superior. Só que aqui, a divindade que controla é dupla. à hora a que visito, a luz incide precisamente na câmara, como se esta fosse escolhida pelo dedo divino. Começo a pensar se daqui a uns tempos, o interior das habitações destas pessoas não será o último reduto de privacidade teórica que tem e até quando isso poderá durar. Nas divisões laterais à sala, o óculo não chega. Mas ainda assim, a sua presença é esmagadora, total. Mesmo a mais de mil quilómetros de Kashgar, o dedo vigilante da segurança continua a empurrar-nos aqui.

Não penso demasiado nisso, aliás. Fotografo e venho-me embora, até porque a fome reza no meu estômago. Enquanto caminho no regresso ao hotel, noto que há hábitos que não mudam: aceleras são conduzidas por crianças, várias vezes mais do que duas; os adultos não são melhores, visto que em tantas alturas circulam de telemóvel à frente, fazendo live feed da sua viagem. Vou entendendo que esta vigilância permanente que tanto me incomoda parece não afectar ou preocupar uma grande parte da população chinesa. Afinal, eles gostam de se observar do outro lado da lente. Mais um olho a registar não lhes faz espécie. A presença constante dos ecrãs e do desejo de partilhar aquilo que lhes é mais íntimo, ou seja, o que de mais ridículo e vulgar se pode fazer, é apenas um prolongamento da sua existência como chineses. Seja com o seu próprio aparelho, seja através da boa vontade e preocupação paternal de quem os governa. A maior vitória de um estado autoritário é a normalização do poder descabido. Achar natural aquilo que é aberrante. Em certos aspectos e com certas franjas da população, a maior vitória é a aceitação. Duas moças passam a pé ao meu lado. Trazem t-shirts pitorescas. Uma exclama "Idiot world". A outra murmura "Self service girl". Assim como assim, percebo de imediato que a era digital é amada pelos chineses e pode chegar de diferentes maneiras, diferentes feitios.


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