quinta-feira, dezembro 19, 2019

Fachinação 14: O vento que leva, o vento que passa


É o ponto sem regresso. Pelo menos, assim surgiu o seu nome: o enorme deserto de Taklamakan envolve este ponto da província de Xinjiang e espalha-se para Sul praticamente até ao Paquistão. O seu tamanho corresponde ao da Alemanha, portanto imaginem só tal imensidão de areia mesmo no coração da Europa. Não conseguimos. Não existem desertos na Europa continental; e o mais curioso é que o seu aspecto não é fixo. Muda sempre. As suas dunas erguem-se e desfazem-se com a passagem do tempo e dos elementos. Ou seja, se voltasse cá no próximo ano, provavelmente veria uma paisagem completamente diferente. Penso nas minhas aulas de Teoria da História e na obsessão que o professor Fernando Catroga tinha pela forma do tempo, pelos seus ciclos, a circularidade de Santo Agostinho e a música das esferas de Herder. Talvez seja de ser muito cerebral em pontos. Não sendo um deserto de emoções, embora por vezes gostasse de secar ao ponto de tudo ser areia que escoa, de fazer desaparecer tudo no ritmo da ruína. Este ponto sem regresso foi na Antiguidade estrada de comerciantes, cujas probabilidades de ultrapassar Taklamakan eram tão boas que o baptizaram desta maneira: um local onde uma vez entrado, a saída não é certa. Animador. A única salvação possível nestas viagens pela desolação eram os vários oásis espalhados pelas areias, ponto de refúgio e acima de tudo, água. Muita água. Com o tempo e a afluência de pessoas, esses oásis deram lugares a cidades que funcionavam em seu torno, pontos de fixação de gente, de vida, de negócio, de cultura. Quase todas as grandes cidades da Ásia Central começaram assim e aqui na China, já visitei Kashgar e Turpan, dois exemplos. Água é vida. Se isto hoje é um chavão, imaginem em territórios onde esta só se encontra em recantos desérticos conhecidos de alguns. Depois da visita aos Budas cavernosos, a estrada leva-nos a uma dessas cidades oásis, que a certa altura foi uma das grandes metrópoles dos antigos reinos chineses: Gaochang.


Surgida como entreposto de comerciantes, Gaochang sempre foi uma cidade cobiçada pela sua função e posição a norte de Taklamakan. Hoje, só existem algumas ruínas, incluídas num museu. Gaochang é património mundial e considerada uma da cidades mais bem conservadas da China Antiga, dizem. Quando chegamos ao edifício da recepção, chove. Chuva numa das zonas mais secas da Ásia. É quase um sinal colonialista, ocidentais aparecem e vida surge. Enquanto esperamos pelos bilhetes, reparamos num velhote que toca cítara com vontade e galhardia, acompanhado por outro que dá uns batuques. Estão quase a terminar um mini concerto. Unplugged in Gaochang. Atrás de si, duas mesas preenchem-se de pratos cheios de uvas. Têm um ar apetitoso, com a sua cor verde amarelada evidente, sumarentas no aspecto, convidativas na fome que tenho. Um funcionário deve ter reparado no meu ar esfaimado e com um sorriso, empunhando o inglês macarrónico que aprendi a amar na função pública chinesa, explica-me que elas estão ali para serem comidas por quem queira.
Por esta altura, Turpan vive a Festa da Uva, essa fruta que tem um papel tão central nesta região como já expliquei. É tradição por esta altura oferecer a estranhos, estrangeiros e conhecidos doses generosas deste fruto como sinal de agradecimento aos deuses pelas colheitas e também porque, segundo ele, a prosperidade deve unir as pessoas e não separá-las. Todas as casas de Turpan, conta, participam e as pessoas gostam de dar a conhecer algo que as orgulha tanto. Calculo que vivendo num deserto esquecido pelo governo central, não haja muitos motivos de orgulho a que se agarrem. Uma uva é algo tão válido como qualquer outra coisa. E são muito boa: trinco uma e logo a casca estala entre os meus dentes, uma das minhas sensações preferidas quando como fruta. O sumo é doce e arranjo logo o descaramento de tirar dois cachos e entregar-me assim à gula. Enquanto nos dirigimos ao espaço de visita, como-as e passo por um conjunto de estátuas que representam figuras importantes da História da cidade. Nem todas são homens, há mulheres, o que costuma ser uma raridade nas representações do passado.

A tour pela ruínas da cidade é simples, até porque não sobra grande coisa da mesma. Foi destruída no século XIV em definitivo e abandonada desde então. Boa parte dos edifícios que restaram foram destruídos ao longo do tempo por gente que necessitava de material de construção. Vamos dar uma voltinha num veículo descapotável com 30 lugares, onde os melhores são aqueles que ficam atrás, porque permitem uma visão quase a 360 º. É num deles que me sento. Logo percebo que Gaochang era enorme no seu auge, a julgar pela longa muralha que rodeia o espaço onde antes se localizavam as casas. Há espaços claramente divididos: a moradia real; a zona religiosa; o centro da cidade; e uma periferia onde, somos informados, moravam por norma os seguidores das religiões minoritárias, normalmente variando entre os Islamismo e o Budismo. É muito complicado explicar a História de Gaochang sem que exista um conhecimento mínimo da própria História da China ou mesmo da Ásia. A nossa obsessão ocidental de criar uma narrativa histórica eurocêntrica fecha o conhecimento que temos - bem, aqueles que o têm - à complexa evolução dos reinos chineses e asiáticos.

 Não vou tentar entrar aqui em pormenores, mas fica uma versão para idiotas como eu: houve quatro dinastias antes de Cristo e um período de Guerra Civil. A mais duradoura foi a primeira, que se estendeu por quase um milénio; no entanto, pequenos reinos ocuparam partes do espaço chinês actual, que só começa a ter esta dimensão com as campanhas militares e expansão da dinastia Han, a primeira depois que JC quina. Depois de, em 220, o reino Han se ter dividido em três, há um período em que o país se divide, algo que só temrina em 581, no início da curta dinastia Sui. No entretanto, o verdadeiro ponto unificador do país era o comércio da Rota da Seda, em cujas estradas os reinos chineses foram sucedendo e caindo, mas mantendo uma unidade fictícia no meio de religiões e culturas muito diferentes entre si. Depois de um novo período de divisão, devido às disputas decorridas após a morte de Genghis Khan - que conquistara todo o território chinês - há nova união no início da dinastia Yuan, em 1271. Nos sete séculos seguintes, o reino atravessa momentos de apogeu e declínio, principalmente devido à intervenção das potências ocidentais, durante os períodos Ming e Qing, dinastia que encerra o período monárquico na China com a deposição do último imperador, Pu Yi, em 1911. Desde então, o período da República tem permanecido, com a maior alteração a surgir em 1949, quando após um período de revolução, o Governo Chinês democrático se exila em Taiwan, ainda hoje reclamada pela China como território, e Mao Tse-Tung inicia a era da China comunista.


Claro que mesmo com isto percebo zerinho do que vejo. Para mim, é uma imensa planície de areia encarnada, com reconhecíveis escombros e destacado, lá ao fundo e aproximando-se com o movimento do veículo, um único edifício de pé. Do que me apercebo, Gaichang era um quadrado, a julgar pelas muralhas que ainda se mantêm de pé e pela linha evidente daquelas que foram sumindo vítimas dos vários conflitos tribais que se desenrolaram nesta área mesmo depois do desaparecimento da cidade. Existem ainda as nove entradas originais da cidade, embora aquela voltada a Oeste seja a melhor preservada e a única onde a porta é, de facto, evidente. A construção isolada que mencionei ergue-se a sudoeste e sem que esteja perto, pela forma cónica e vertical, arriscaria que é um templo de uma qualquer religião - o meu conhecimento de arquitectura não cristã é reduzido, infelizmente. Han, o guia de que vos falei na crónica anterior, é uma cátedra de passado chinês e também sabe muito sobre tudo isto. Explica os ires e vires de Gaochang e alerta que vamos fazer duas paragens: uma no tempo budista - o meu palpite revela-se correcto - e outra no palácio imperial, que não consigo ver a partir de onde me encontro. Bem, lá chegaremos. O templo, que é um de dois (informam-nos que o outro não pode ser visitado, mas mistura religião e justiça), é circular e tem apenas uma entrada. Não sobra inteiro, mas consigo ter uma ideia do que seria no seu tempo áureo. O Han refere que antigamente, era completamente pintado em redor, de azul e dourado. Hoje, sobra a cor dos tijolos. Parece que um conhecido monge budista chamado Xuanzhuang. que soa à onomatopeia de um beijo de velha parou aqui, a caminho da Índia e proclamou uns sermões que devem ter sido tão bons que ainda hoje se lembram dos mesmos.
Rodeio o templo e subo umas escadas que conduzem à entrada. A porta está fechada, mas permite uma espreitadela. Vejo uns murais e pouco mais. Talvez tenhamos mais sorte no Palácio. Cinco minutos depois, chegamos a esse espaço. Mais ruínas, a palidez do céu cinzento não ajuda a criar na minha cabeça essa imagem de esplendor que nos querem fazer crer quando falam de Gaochang de maneira tão elogiosa. Há uma estrutura cúbica a meio e paredes que se desfazem, sem personalidade, rodeando. Consigo perceber, pelo menos, o tamanho desta moradia real, era enorme. Não há dúvida que de essa ideia de gigantismo de antigos reinos chineses, de riqueza, de importância histórica é um bálsamo para o ego deste povo. Uma placa de madeira, colocada estrategicamente, lança um lema que pode muito bem ser desígnio nacional: "Sorrir é a nossa linguagem; a civilização a nossa crença". Tudo bem, camarada Xi, mas todo este aparato por umas ruínas, mesmo que imensas, que quase nem ruínas são é demasiado. Conimbriga fica-me mais perto de casa e os Romanos tiveram classe o suficiente para criar uma técnica de mosaico que dura mais de dois mil anos depois.

Claro que, viajando pela China, percebemos que as suas visões do passado apenas aguentam pela força simples da vontade e do dinheiro. Tuyok é o exemplo disso. Enquanto por um lado envereda por esforços para acabar com a cultura uigur, o governo chinês anda a recuperar esta pequena aldeia típica desse povo ancestral simplesmente por propósitos turísticos. Fá-lo de forma atroz, violando a beleza simples da arquitectura deste povo e apenas mantendo aqui aqueles que ainda vivem de acordo com tradições milenares pagando-lhes, não dando qualquer outra visão esperançosa do futuro. É triste, muito triste. Almoçamos aqui, cortesia de uma família local. Recembem-nos debaixo de um vinhedo, num caminho a partir do qual acedemos às casas. Aqui, o mundo está longe, algures. A simpatia das pessoas, a disponibilidade da partilha e aquela sensação, mesmo ligeiramente falsificada, de comunhão, existe enquanto comemos do seu pão e da sua fruta, das suas compotas, da sua carne. Tento ao máximos quebrar a ideia de que eles estão ali para me servir, mas percebo, ao logno da refeição, de que tal é impossível. Estão formatados a isso, a verem-me, um estrangeiro, como alguém que paga e espera algo, não como um curioso que chega e quer conhecer, comunicar, ver, trocar experiências. O mundo é cada vez mais a barriga exposta do capitalismo de versão egoísta. Há poucos países como a China para saber estragar uma coisa boa.


Ainda assim, pelo espaço, pela observação desta gente, é um momento de descompressão e de algum prazer que nem a escumalhice consegue estragar. Logo de seguida, damos uma volta breve pela aldeia. Enfiada num vale vinhateiro das Montanhas Flamejantes, é um conjunto de casebres de adobe pequenos. A maior parte tem dois andares, um rés-do-chão e um piso superior habitualmente com varanda, presumo que para colocar as uvas a secar. Por vezes, passamos por gente na rua, mas aparte de dizerem olá, ignoram-nos. É como se nem estivéssemos ali. Existe ainda uma mesquita azul que está fechada. Na curta volta que dou, reparo numa placa que celebra Albert von Coq, arqueólogo alemão que referi na grutas do Buda que os pariu por ter gamado pinturas murais e artefactos. Aparentemente, morou aqui uns tempos e merece ser celebrado por isso. Parece pouco chinês, isto de elogiar alguém que tão claramente explorou o país e é estrangeiro. Ainda nos cruzamos com um velhote que à sombra de um toldo, guarda uma arca frigorífica e quer falar connosco no seu próprio idioma. Percebemos zero, mas o seu entusiasmo e alegria são tesouros à parte, das poucas coisas genuínas que guardo desta visita. Mas é hora de partir. Junto ao autocarro, um de nós tenta comprar uma garrafa de água, mas desiste. O ponto de venda está incluído na esquadra de policia de Tuyoq e querem cobrar 12 yuans por um produto que habitualmente custa dois. Gatunos. A China é comunista, mas quando convém. Como sempre, adapta-se às realidades, explora necessidades e projecta a imagem que conta e favorece. Imagem. Aspecto. São palavras que guardo destes primeiros cinco dias no país.

No último ponto do dia, regressamos ao deserto. Embora, na verdade, nunca o tenhamos abandonado. Depois de uma longa recta que atravessa um campo de extracção petrolífera, aquelas garças mecânicas em constante movimento sugando o interior do planeta, entramos numa pequena aldeia de portões desenhados, todos. Depois disso, a carrinha estaciona num largo parque e à nossa frente, areias amarelas distinguem-se a algumas centenas de metros. Kumtag. A montanha de areia. Um planalto desértico que se prolonga até à Mongólia e é uma extensão de Taklamakhan. Que continua a expandir-se. Se observarmos um mapa de há dez anos, a área de Kumtag correspondia a dois mil e quinhentos quilómetros quadrados. Hoje, é quase o dobro. Como noutras alturas, os caprichos da Natureza ameaçam cidades e povoações e as primeiras vítimas, neste caso, podem ser precisamente ruínas antigas como as de Gaochang. Este é um problema que tem afectado o nordeste da China, com o avanço das areias a obrigar a leis anti-emigração e desperdício de água, pairando o medo de que nalgumas décadas, todos estes locais que visitei hoje possam estar completamente enterrados. Quando em Portugal falamos de desertificação e seca, nunca pensamos nestes efeitos. Mas aqui, a escala é diferente em tudo. Até na malapata. Somos transportados até um ponto a partir do qual começam as visitas. Porque temos horas contadas para apanhar um novo comboio nocturno, dispomos apenas de pouco mais de meia hora. Desperdício, claro, porque este parece um deserto como deve ser. Viajo para fotografar, não para correr atrás de transportes. Ponho por isso pés à areia rapidamente. À minha frente, uma encosta picada arenosa contempla-me zombateira. De cabeça, calculo que sejam pelo menos uns 400 metros. Talvez mais. Bem, de certeza mais. Não tirei as férias para fazer cardio, mas já que aqui estou...


Meto um ritmo regular e lento. A cada 50 passos, paro uns segundos. Respiro. Há muita gente aqui, este é um popular lugar de turismo. Ainda assim, não são muitos o que, como eu, se entregam às dores fisicas do prazer da visão. Há quem se deite aqui como quem está na praia, mas o mar existe milhares de quilómetros longe das sensações. Mulheres passeiam de sombrinha, adolescentes fazem selfies parolas, vejo até alguém que lê descontraidamente. Lembro-me que no ano passado, no Peru, havia quem surfasse as ondas de areia. Aqui, não existem esses corajosos Chego ao topo e tenho de me desligar durante uns segundos. Numa longa extensão, fico com a impressão de que um grupo de serpentes deslizou pelo solo e o que vejo são esses rastos fundos e bruxuleantes, que o sol se encarrega de transformar num espectáculo de marionetas das sombras. O relevo criado pelos fortes ventos que aqui circulam criou uma cordilheira de pó cristalino e mineral, amontoado numa amarelecida luz que o sol expande nos meus olhos. É imaginar os vossos pés na orla do mar, mas numa multiplicação por cem. Kumtag não é um deserto grande na métrica dos tamanhos desérticos, mas impressiona e captura o olhar, afunda-o como os meus dedos do pé se afundam no solo.

Quero sentar-me e ficar um pouco, fotografar como bem me apetece, mas não tenho mesmo tempo. Alertam-me que mais cinco minutos e temos de ir embora. No entanto, aqui consigo pensar de desligar-me, é a primeira vez que tenho espaço mental para isso desde que me envolvi com as montanhas da estrada de Karakoram. Daqui a três horas, abandono Xinjiang e começo a pesar bem tudo o vi aqui, no quão diferente é de mim e do que conheço. Mas nem consigo engrenar a reflexão como quero. Estamos à pressa, estamos a correr. No regresso, o que inclina de uma maneira agora vira ao contrário. Enquanto os meus colegas de viagem descem cuidadosamente para não cair, largo numa corrida desenfreada e sem qualquer pinga de comportamento civilizado. Não vejo câmaras ou polícias, nem ninguém a vigiar-me. Neste deserto, sou livre por momentos, na minha estupidez tão desmesurada quanto este campo de areias. Pode haver sinais de vida em desertos. Quero acreditar que neste segundo em que me torno idiota, sou um deles, e bem forte.


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