quinta-feira, dezembro 12, 2019

Fachinação 13: O Buda que os pariu


Abro os olhos e vejo vermelho. Perdes-se na distância, na minha vista. A extensão é longa e a certa altura, é tão compacto que se torna impossível de escapar. Mas se o vento sopra com mais força, desfaz-se em pó fino e maleável. Areia. Um deserto encarnado com planícies e dunas altas. Não desperto de um sono, apenas me fui afastando de quem viaja comigo na carrinha, perdido entre as notas musicais que nos meus headphones se tornam escapatória da China. É-me complicado tantas vezes estar num sítio por inteiro. Ou estar com pessoas a toda a hora. Preciso de mim e ouvir música é talvez a maneira mais educada de mandar pessoas à merda. Quero que saibam que não é nada de pessoal. Se não forem estas pessoas, são outras. Porque preciso mesmo de fugir de quando em vez. De pensar, de reflectir, de recordar. A memória faz muito parte de nós e acho que tem sido um dos temas principais das crónicas que fui escrevendo ao longo dos anos, viajasse eu à América do Sul ou ao Círculo Polar Árctico: interessa-me muito o que nos constrói como pessoas e como grupos, grandes ou pequenos. Acho que também por isso que acabei em Historia, que lá jazi durante quatro anos e ainda hoje ando em exumações.

Na China, a memória é entendida como reinterpretação. A tarde do dia anterior foi preenchida pela visita a uma espécie de parque de diversões do vinho, um museu que supostamente nos apresentaria uma resenha histórica da produção vinícola por Turpan e quando damos por nós, parece que Joe Berardo abriu aqui um Buddha Park ainda mais parolo. Localizado no vale que produz as mais conhecidas bebidas alcoólicas da região, é um daqueles museus onde não se aprende nada daquilo que se quer ensinar, porque o professor não só não preparou a aula, como dispensa qualquer tipo de matéria a leccionar. Faz uns números de malabarismo, engole umas espadas e conta assim que saiamos mais enriquecidos. Aqui, é a mesma coisa: do edifício da recepção, somos transportados por um comboinho que faz uns três quilómetros até à atracção principal, recriações de algumas casas dos tempos em que se fazia vinho a sério por aqui. Cores berrantes, estuque barato, imitações de objectos, murais sem qualquer gosto. A China reescreve-se e entrega essa visão à população que a consome. Quando organizei mentalmente estes textos de viagem, poderei seriamente se valeria a pena dedicar tempo a esse local. Talvez tivesse um interesse kitsch, mas no geral o que sobra é esse elemento de feira popular bacoca que agrada tanto aos chineses. Vê-se pouco e o que se vê assombra pelo desfasamento da realidade. É o que há e não é muito; e o que há é o aproveitamento de uma cultura que se quer exterminar, o que dá um toque muito sui generis a tudo isso.


Mas hoje, pelo menos em teoria, visitarei locais de real interesse histórico. O guia chama-se Han e no início da viagem automóvel, foi debitando alguns factos interessantes: falou da geografia de Turpan, de como fica numa depressão e de como tal originou uma das lendas mais fortes de Xinjiang, a de que o Apocalipse final do mundo se dará nesta cidade perdida no deserto. Olhando pela janela, vendo desolação e areia, quase consigo acreditar, embora tenha para mim de que a Besta apreciaria mais areia junto ao mar. Contou-nos também o mistério de alguns painéis electrónicos que já viramos em Kashgar, com uma contagem decrescente. Trata-se um projecto governamental de erradicação de pobreza. Os números nos painéis são a quantidade de dias que faltam para que desapareça a indigência no país. Diz isto com um ar sério e sorridente em simultâneo. O Han não é historiador, mas sim engenheiro; no entanto, está desempregado e faz estes biscates porque se interessa muito por livros e por saber coisas. Deve ter uns 45 anos, é baixote e largo e fala num inglês bastante bom. Foi de ler muitos textos em estrangeiro quando tirou um curso, o que mostra ou uma estranha abertura do aparelho chinês ao Ocidente ou o funcionamento pleno da espionagem industrial do país. Mostra-se também muito preocupado com o aquecimento global e os motivos não são apenas superficiais.

Uma boa parte da água que tornam Turpan num literal oásis no deserto vem do degelo de glaciares e cumes nevados das montanhas próximas da cordilheira do Tian Shan. A população tem beneficiado da gradual renovação desta fonte de água desde a sua origem. No entanto, o mesmo aumento de temperatura planetário que tem dizimado as calotes polares e virado do avesso o clima em muitos países acelerou este processo, levando a que as reservas de água gelada tenham diminuído assustadoramente. O Governo Chinês mostra-se, por uma vez, verdadeiramente preocupado com uma parte de Xinjiang por outros motivos que não sejam sinistros. Por ser o maior fornecedor de vinho do país, e falo de produção real e não folclórica - também existe - é de todo o interesse que continue aqui a florescer agricultura. É um pouco complicado fazer crescer vinhas sem rega. A China sabe perfeitamente que controlar este fenómeno está longe do seu controlo. Também sabe que é um dos grandes responsáveis pelo mesmo, pela sua irresponsável política industrial de há trinta anos para cá. Mas a população não necessita saber. Para a imagem pública, fica o papel que têm desenvolvido ultimamente como grande paladino do carbono zero e da tecnologia ao serviço da ecologia e de soluções para resolver o problema. Também para deixar os EUA mal visto, mas tal é apenas um bónus. Pergunto ao Han se ele acha que é possível, se tem esperança. Uma pausa. Diz que sim, Que o Governo tem sido bom e que a China tem pessoas muito inteligente. Que também é do interesse dos políticos tratar da questão. Que todos devem ajudar, naquele espírito comunitário que não é fantochada e existe mesmo nos chineses. Sinto na voz dele que não diz por dizer, que acredita mesmo. Que mesmo no meu de manobras canalhas, podem surgir emoções e sentimentos positivos. Uma crença no futuro, mesmo quando o presente é envenenado.


Saímos da estrada principal e metemos por outra secundária, mas de bom alcatrão. É de turista de certeza. A vermelhidão da paisagem mantém-se. São mais uns cinco quilómetros até pararmos. Saio do autocarro, procurando ligar-me novamente ao mundo real. Torna-se difícil quando a paisagem saiu de um filme de Jodorowski. Montanhas Flamejantes é o nome que deram a este local, elevações de areia e rocha sangue, nalgumas zonas como vítimas da paisagem desenfreada de uma manada de elementos. Uma enorme garganta à minha frente conduz a um parque de estacionamento, onde deverá encontrar-se também, calculo, a nossa primeira paragem do dia. Mas a garganta não é árida: uma mancha verde forte, de árvores e vinhedos, repousa no seu fundo, indicando que algures há um curso de água a passar. Na encosta, observo o que sobra de um sistema de elevadores que ajudava as pessoas a subir a inclinada vertente. Mas nesta manhã, estão parados. É provável que nem funcionem. Serviam principalmente um conjunto de pequenos edifícios de barro castanho triste, paredes arejados com vários espaços quadrados. Servem ainda para deixar as uvas a secar, no seu processo de transformação em passas. O ar quente desta zona tórrida, juntando à secura da areia, tornam este vale no local ideal para que tudo isto seja natural e que a única intervenção humana seja a de trazer as uvas e levá-las posteriormente. Tiramos fotos num miradouro que dá para a garganta e descomprimimos. Há uma beleza própria nesta monocromia, que talvez fosse até mais bonita num dia de luz. Com o céu cinzento, torna-se apenas triste; mas as rugas da passagem do tempo, do vento e da água são ainda mais insolentes. Atrás de mim, um monte de areia mais ou menos da minha altura cria um milagre e dá à luz ovos. São dezenas, cabecinha de fora, metade enfiados na areia. Dois marmanjos guardam-nos. Um segura uma placa indicando um preço de 5 yuans. Do que entendo, a ideia é que os ovos estão a cozer na areia quente, de forma lenta. Um método bem natural e ecológico de cozinhar. Claro que, dizem-me depois, a coisa é um bocado treta. Na maior parte dos casos, trazem-se cozidos em casa e ali colocados, com casca e tudo, para o logro ser ainda mais verdadeiro. Uma ilusão. Ah, China...

O ponto a visitar são as cavernas budistas de Bezeklik. Cavernas é uma palavra muito liberal. Podem classificar-se perfeitamente de buracos na rocha. Desde o século V ao século XIV depois de Cristo, seguidores de Buda, homens sérios comprometidos com os ideais de solidão e ascetismo do senhor Gautama, o Buda original, isolaram-se neste vale arenoso para se purificarem, buscar o sentido da vida e evitar andar sem roupa interior de maneira a proteger as virilhas. Este último aspecto é apenas especulação minha. A maior parte datam dos três últimos séculos de permanência. Ora, porque é que a coisa acabou no século XIV? Por intervenção desse grande motor da História humana que são as guerras religiosas. Estes monges foram enviados a partir do Tibete para evangelizar a população de Turpan e arredores. Durante um tempo, foram bem sucedidos. O Budismo chegou a ser, aliás, a principal religião de Xinjiang, com Turpan no seu centro servindo de ponto de peregrinação para todos os seguidores de Buda que calcorreavam a Rota da Seda. Findo esse tempo, e perante o crescimento da comunidade muçulmana, zelotas e fanáticos fizeram aquilo que melhor sabem: perseguir pessoas diferentes só pela diferença e só para não deixar a coisa a meio, matá-las. Como se tal fosse considerado negligência, avançaram um pouco mais e destruíram todas as grutas que encontraram. O que sobra hoje dá apenas uma pálida ideia do que seriam estas grutas no seu tempo maior de glória. A aversão islâmica à representação religiosa não foi o único motivo pela destruição. Superstições na comunidade muçulmana local sopravam que aquelas figuras pintadas apareceriam à noite nos sonhos dos incautos habitantes para lhes roubar a alma.


O interesse maior está num conjunto de pinturas murais que cruza iconografia budista, de cores garridas e dourados feitos com outro real, e a história da região. Nalgumas figuras que ainda sobram, é possível reconhecer alguns reis e governadores de Turpan que se fizeram representar neste local sagrado. Fazem-se acompanhar por Buda e por monges importantes, numa representação do Paraíso e Inferno budista, uma religião que ainda que sem divindades, tem a sua escatologia de Bem e de Mal, por muito que o seu principal atractivo seja precisamente a representação por um conjunto de ideias filosóficas que aparentam não ter irrealidade. Mas tem. No Budismo, reencarna-se e essa reencarnação obedece a uma lógica de bons comportamentos e outros reprováveis. Portas-te bem, reencarnas depressa e no Brad Pitt; armas-te em parvo, podes muito bem reviver no corpo de um besouro dourado. Claro que, como de costume, os Europeus também estão metidos ao barulho quando o assunto é o desaparecimento de arte de outros continentes colonizáveis. Os murais mais bem preservados que escaparam à destruição foram removidos por um arquitecto alemão de nome curioso- Albert von Le Coq - e transportados para o seu país natal, onde ainda hoje permanecem num museu. Pode questionar-se, claro, se a permanência no museu não foi o factor chave para que ainda hoje pudessem ser admirados. Ainda assim, se quiserem viajar até Berlim para admirá-las, é melhor meterem travão nas intenções. Foram obliteradas durante a Segunda Guerra Mundial, quando so Aliados bombardearam a capital alemã. Mas esse é outro assunto. No entanto, foi um toca a todos: japoneses e britânicos vieram atrás e não se limitaram às pinturas. Tudo o que fosse artefacto ou livro desapareceu dali e um local cujo nome significa literalmente "Gruta pintada"deve ter parecido uma surpresa chocante para quem esperava ali desenhos coloridos.

Quando exploramos as grutas, lamentamos ainda mais que a selvajaria religiosa tenha vencido. Os traços que sobram, as pinturas murais são, mesmo danificadas, de grande beleza e significado, de muita ostentação até para monges que queriam viver despojados de bens materiais. No entanto, como templo real, calculo que quisessem transformar este complexo dos mil Budas pintados num exemplo para todos os locais religiosos do reino. Existem ao todo setenta e sete grutas, mas visitamos talvez um quarto delas. São aquelas que se conservaram melhor. Em quase todas vemos ainda figuras humanas, de olhos riscados, cara apagada. O preceito muçulmano contra a representação de figuras divinas aplicado na realidade, os perigos de uma colagem demasiado próxima e literal a leis que são inventadas por homens, mas justificadas por entidades invisíveis nas quais projectamos o melhor e o pior do que somos. Como em quase tudo, quando ambas entram em conflito, o pior vence. Mas as representações apelam exactamente ao contrário. Representam pessoas de raças diferentes, etnias Han e Uigur convivendo pacificamente ao redor de mesas com boa comida e música sendo tocada. Nalguns, temos até europeus, o que é uma aparição relativamente bizarra. Alguns dos murais representam gigantes Budas rodeados de figuras importantes naquele tempo; outros são representações mais abstractas dos mundos fora deste que definem a religião budista, embora se notem, nos cenários e representações, influências persas e um pouco de arte indiana.


Depois da visita guiada, temos alguns minutos para admirar o resto do complexo, um conjunto de casas com cúpulas e escadas ligando os vários patamares desde o rio até à entrada, construções à base do barro castanho triste que domina esta zona. Enquanto fotografo estes locais para a posteridade, a minha lente apanha uma cara familiar. O amigo americano. Michael, a omnipresença não divina. Não é paranóia se andarem de facto atrás de ti. Mas como...? O que de início me pareceu uma teoria da conspiração absolutamente tresloucada vai-se transformando lentamente numa possibilidade real a qual não se pode fugir. Estou quase certo de que notou o meu espanto. Desconfio, porque me aborda com a frase "Sim, sou eu outra vez. O senhor CIA", ao que respondo "Diria mais senhor NSA. Eles têm o melhor equipamento."
"É o que nós queremos que eles pensem..." E como não consigo morder a língua quando devo e tenho a tendência de me desbocar como a Boca do Inferno, acrescento:
"Claro que estamos na China, não é? Já que me estás a vigiar..."
O Michael seria o perfeito candidato a encarnar o Gato Cheshire de Lewis Carroll, a julgar pelo sorriso.
"Se calhar é verdade. Se calhar estou a seguir-vos. Quem sabe..."
Eu não. Mas posso desconfiar. Acompanham-no um casal belga e um rapaz francês. Explica-nos que se cruzou com eles acidentalmente em Turpan e decidiram vir até cá. Que provavelmente ainda vai dar umas voltas com eles, que pode ser que nos vejamos novamente. Acredito em tudo. Acredito ainda mais na expressão esfíngica com que diz isto. Eu li umas coisas sobre a esfinge. Algures num passado remoto, a cara humana que hoje lhe conhecemos era de leão, a combinar com o resto do corpo. Não sei com o que é este moço combina. Mas tenho a ligeira impressão que a partir do momento em que deixarmos hoje esta província de Xinjiang, não voltaremos a vê-lo.

Quando saímos do parque dos Budas, este não do Berardo, uma colina que leva a um plano mais elevado mesmo à nossa frente convida-me. Temos meia hora, quarenta minutos a matar até que a carrinha saia. Decido fazer-me ao caminho. O Zé Luís partilha da ideia. Mais ninguém do grupo quer vir. Olhando para a inclinação, talvez já imaginem uma fogueira nos seus pulmões ou falta de tempo para ir e voltar. O que é um bocadinho exagerado, a distância não é assim tanta. Depois de várias demandas e discussões com um grupo de uigures que guardam camelos, e um portão que nos dá acesso à subida - queriam cobrar-nos dinheiro por algo que nem é bem seu, que apenas usam para levar visitantes nos seus bichos, para se sentirem beduínos durante uma hora - subimos. A areia dificulta a passada e opto por ir de lado, passo a passo, aproveitando os sulcos deixados pelos camelos. Ajuda um bocadinho, mas não muito. Tenho de meter um ritmo alto para dar a mim mesmo todo o tempo possível para fotografar alguns montes que vejo pouco acima de mim. Quando chego, recupero o fôlego durante alguns segundos. Estou rodeado de vermelho, sangue petrificado no tempo em todos os seus salpicos e tonalidades. Este planalto rodeado de elevações é tão fotogénico que me basta apontar a máquina e clicar. O costume em belas paisagens, qualquer um é fotógrafo. No tempo que tenho ainda antes de descer a correr, regresso à sensação de desligar do mundo. Não estou efectivamente sozinho, mas é como se estivesse. Cheguei a um ponto na minha sanidade mental onde eu e a máquina conseguimos criar uma bolha bem fechada que não permite distracções, pensamentos negros, pessoas, tudo o mais. É um outro tipo de gruta onde traço representações dentro de uma câmara. Só eu posso danificá-las com distracções e tento não fazê-lo. Quem pode vandalizá-las está aqui, e quem pode precipitar a vandalização está longe. Enquanto ambas não se juntarem, estou seguro. Estou, à falta de melhor palavra, zen.







Sem comentários: