quinta-feira, abril 09, 2020

Fachinação 25 - A Grande Muralha da China




Escrevo isto uns bons meses depois de visitar a Muralha da China, mas enquanto procurava as palavras do começo de texto, só me conseguia lembrar da manhã em que me sentei em pedras andinas para ver nascer o Sol sobre Macchu Pichu. Não sei se por gostar mesmo de História, mas para mim as pedras não são pedras. Vejo-as sempre como feltro do tempo. As coisas acontecem ali em redor, muitas vezes contra elas, sangue e pele, espadas e alfaias agrícolas, toda a curva de uma alegria ou recta infinita da decadência. Às vezes penso que abrindo uma, de uma maneira específica, num encantamento particular, tudo isso fica a descoberto e descobrimos que as pedras gravam tudo. Que a História se pode ver como um filme. Existem parapsicólogos teorizando sobre essa possibilidade para fantasmas, que não são mais do que uma mera repetição de eventos, momentos e comportamentos de séculos anteriores. Enquanto a luz solar desvendava as frinchas rochosas daquelas casas antigas, da montanha que protagoniza postais e fotos de epifanias bacocas de influencers, a minha mente tentou imaginar como seria tudo aquilo com Incas; e não me acontece em todos os locais antigos que visito. Há alguns que puxam essa fuga ao presente e à realidade que se aceita, como se a sua simples construção evocasse qualquer ponto indefinível a partir do qual nascem realidades. Sim, soa a delírio, mas só entende quem se abre aos lugares e aos espaços que não morrem, só se renovam. Pensei muito em Macchu Pichu dentro da camioneta que nos levou para fora de Pequim naquele dia em que pude riscar mais um cliché turístico do meu caderninho: a Grande Muralha. Habitualmente, quando na China e entregando-se nas mãos de companhias turísticas o turista é levado a Badaling, o pedacinho da Muralha mais próximo da capital chinesa. Torna-se mais barato e prático, mas estraga fotografias: a imagem de um longo rebanho humano calcando pedras desse caminho empedrado e muralhado é o ideal para quem quer dar por mal empregue o tempo e dinheiro gasto a vir à China para ganhar o direito a poder dizer depois aos amigos que a Muralha é espectacular/nada de especial/ya, é fixe. Apesar de ter aprendido, com os anos, a apreciar um pouco do contacto com pessoas em países que visito, ainda mantenho a ideia de que o mundo é uma coisa bem gira e o que o estraga são as multidões. A experiência humana é gira, mas às gotas. Trazemos histórias bem engraçadas, mas demasiada perde a piada. Felizmente que o guia da viagem, o Zé Luís, mesmo gostando bem mais de gente do que eu, também é um purista da bela imagem solitária de um local icónico. Como tal, vamos em rota para Jinshanling, duas horas a Norte. Tem tudo o que a Muralha pode oferecer, desde muros, muralhas e muralhitas, ameias e torreões, postos de vigia e degraus. Ficando mais distante de Pequim, a esperança é que seja lembrada e visitada por muito menos povo. Daquele de turistas chatos. Pude fotografar uma Macchu Pichu deserta, sem ninguém. Espero a mesma oportunidade no outro lado do mundo, numa imagem que tem muito mítico, de maneira literal.


O mito maior é a de ser visível a partir da Lua. Já o ouvi tantas vezes que quase parece facto científico. O curioso é que a sua origem vem do século XVIII; quando William Stukeley, um antiquário britânico, que ao comparar a Muralha de Adriano à sua bem mais imponente congénere chinesa, comentou que a do Oriente era superior e tal era atestada pelo facto de poder ser vista a partir do nosso satélite natural. Calculo que seja fácil concluir o ridículo da afirmação feita numa altura onde não só o Homem não tinha colocado os pés na Lua, como por alguém que não tinha feito nem sequer a muralha toda, nem se lhe conhece qualquer visita ao Extremo Oriente... A partir daí, surgiu a crença e foi repetida por todos o tipo de viajantes de cadeirão até à famosa colectânea de bizarrias "Ripley's Believe it or not". Já foi desmentida várias vezes pela NASA; mas aparece sempre, vinda dos confins da ilógica. Repare-se que apesar da sua extensão, a imponência da Grande Muralha é igualada por várias construções no planeta, como as Pirâmides por exemplo, ou o Taj Mahal. OU Chichen Itza. Ou Angkor Wat. Sobre nenhuma delas é alegada tal coisa. Mas nós somos a civilização científica que um dia acreditou que Marte tinha canais e isso era um sinal de vida inteligente no planeta vermelho, logo... Dito assim não parece estapafúrdio. No entanto, isto revela o quanto é insofismável a existência de uma construção tão gargantuana quanto esta. Repare-se que estamos perante algo que se estende por mais de vinte um mil quilómetros. Mas a Muralha, em sim, não existe. Porque aquilo que conhecemos por esse nome é um conjunto de várias fortificações diferentes, construídas em diferentes alturas da História chinesa, e que foram sendo somadas umas às outras. Foi a ameaça dos povos nómadas das estepes, o local de onde viria a ameaça dos Hunos e mais tarde os Mongóis, que levou a esta decisão. O século VII A.C viu a primeira fase de construção inicial e no terceiro século após o nascimento de Cristo, o primeiro imperador da  China, Qin Shin Huang, uniu os vários pedaços numa muralha única. Mas quase nada existe desta fase inicial. Os pedaços mais conhecidos e visitados actualmente são da dinastia Ming, entre os séculos XIV e XVI. Pelo meio, outras dinastias expandiram a Muralha até à dimensão que conhecemos hoje. Jinshanling é uma dessas porções. Data de 1368, erguida sob o comando de Qi Jiguang, um famoso general do tempo Ming. Existem aqui sessenta e sete torres de vigia, três torres farol, onde eram colocados grandes fogueiras para servirem de referência à distância - um pouco como os marcos geodésicos hoje funcionam para o mapeamento militar - e cinco entradas. Tudo isto em dez quilómetros e meio, a setecentos metros de altitude. E alguém teve de fazê-lo. Ao contrário de Macchu Pichu, onde o que confunde é a motivação de construir uma cidade num local tão deslocado e ermo - e só percebemos de facto o quanto isso perplexa quando percorremos a estrada que lhe dá acesso, uma linha elástica sussurrante ao contornar uma montanha que atinge praticamente os dois mil e quinhentos metros de altitude - o que me fascinava na Grande Muralha era a pura força bruta do tamanho e da extensão, da quantidade de homens que aqui deixaram o couro e a vida só para erguer defesas. É algo que só pode acontecer quando uma nação tem gente para queimar. Um pouco como a União Soviética e as suas grandes obras, também a China é um colosso suportado por esqueletos e morte. A população tem sempre um aspecto fundamental na história dos países. Portugal, por exemplo, nunca tece de facto um império colonial, ao contrário do que gostava de propagandear, simplesmente porque não possuía gente suficiente para controlá-lo. Daí ter construído apenas pequenas cidades ou fortalezas que serviam propósitos comerciais. Uma área ocupando quatro continentes, mas presa por arames. A China, na sua imensa extensão e população farta, é pelo contrário uma cornucópia de braços de trabalho e carne para canhão. Pessoas não só problema nem obstáculo para ideias. Não sei se haveria um método mais eficaz de evitar invasões. Repare-se que os Romanos, como disse em cima, experimentaram a mesma táctica nas Ilhas Britânicas com a Muralha de Adriano. Esta media, e mede ainda hoje, 120 quilómetros. Ora, isto é um vigésimo do que os Chineses fizeram, embora num período de tempo maior. Já expliquei que não sou muito de clichés turísticos, mas em dois anos seguidos, visito igual número; e este acaba por ser uma excepção porque o interesse é puramente egoísta: quero, de facto, perceber o quão esmagadora é esta construção.


Uma vez chegados ao parque de estacionamento, a primeira surpresa é ver zero pessoas. Nenhuma fila de turistas, nenhum magote de fotógrafos de pacotilha irritantes. O centro de visitantes está também deserto e é aqui que esperamos pelos bilhetes. Subimos uma pequena estrada e perante a hora, meio dia e meia, decidimos que o melhor é almoçar qualquer coisa. Numa lanchonete à beira do caminho, pintada de cores garridas, como um dos piores hambúrguer da minha vida; acho que é a última vez que me queixo da comida chinesa. A carne é verdadeira comida de plástico, os molhos um cruzamento dentre uma facada no esterno e um armadilho imitando Maria Callas. Bebo água para empurrar, mas só piora. No entanto, e esta é a experiência de outros dias muito longos em viagem, o importante é ter energia no corpo. Não sei como será o terreno, nem a distância. Já tive o azar de levar a chamada martelada - quando o corpo desliga sem energia e só queremos, basicamente, que nos puxem com um guindaste - e não é algo que me apeteça repetir. Ainda para mais, numa Maravilha Moderna do Mundo (trademark). Portanto mordo a bala que é este hambúrguer, o que é uma comparação apropriada porque sinto que eventualmente me matará. Que estarei daqui a vinte anos numa condição física óptima, mas repente tenho um ataque súbito e é esta coisa que como a malhar com pouca misericórdia. Neste intervalinho sentado, noto duas coisas importantes. Em primeiro, uma magnífica dor de costas com quem me deitei ontem à noite assume contornos de esplendor. Talvez tenha sido do belo prato de camarões micro que comemos de entrada numa espécie de tasco oriental, existe dúvida; mas a certeza é de que me substituíram as vértebras por cutelos. A segunda é que uma infecção num dedo também promete brilhar a grande altura na sua vermelhidão. Nota-se mais quando pego na mochila. Torna-se óbvia quando seguro a máquina. Não é como se fosse passar as próximas quatro horas de mochila às costas a fotografar. O que quer dizer que não me deverá incomodar... Penso nisso enquanto um teleférico nos leva à entrada desta secção da muralha. A viagem ainda dura quase dez minutos, tempo suficiente para contemplar o longo planalto, as montanhas em redor, um tapete calafetado a verde lá no fundo. À medida que a altitude sobre, tornam-se evidentes os primeiros sinais de fortaleza. Pequenos torreões lá ao fundo, como se fossem topos de montanha, uma cintura castanha a uni-los por entre o verde. Vê-se ao longe, mas é claro. Quando chegamos ao ponto mais alto, surge à frente uma enorme torre de vigia. Ao sair, permito-me uma perspectiva em todo o redor e no raio de quilómetros para a minha esquerda e para a minha direita, a linha muralhada continua, intervalada por torres maiores e mais pequenas, postos de vigia. Desafia a mente descrever... o espanto da enormidade do que vejo. Quando olho para a esquerda, em direcção a Leste, consigo distinguir, baças, fortificações a uns cinquenta quilómetros de distância. Portanto, ela continua e segue por um longo, longo caminho. Subo a escadaria da torre, em três lances de degraus e não demoro a chegar ao caminho principal. Boné ajeitado, máquina pronta, dores que vêm comigo e a jornada pode começar. Num dos tijolos que fazem de chão, há caracteres desenhados, em chinês. Não sei se recentes, não sei se filhos da poeira de séculos. Mas quero imaginar que em noites frias, em tardes de tédio e de espera, um soldado se entreteve a rabiscar suspiros da demora na forma de traços.


A primeira noção a ter é a de que apesar dos restauros e da conservação, isto é uma construção que dura há mais de dois milénios. Tem personalidade. Não é como boa parte dos castelos portugueses, que tão recauchutados durante o Estado Novo que o Tempo não passou por eles, que as suas muralhas jamais presenciaram mortes ou batalhas. A Muralha está estragada. Faltam-lhe tijolos nas paredes, blocos no caminho. Existem muito mais buracos do que os que se vêem nas fotos; e embora todas as torres pareçam iguais, a passagem dos minutos e a experiência da visita ensinam as diferenças. As mais importantes e maiores são encimadas por pagodes. A maior tem dez metros de altura e é conhecida como a Torre do General. São três andares com funções diferentes. No topo, o dormitório de soldados. Enterrado nas entranhas da muralha, o depósito de armamento. Entre os dois, as janelas que oferecem a vigia. Quando tocava a rebate, daqui corriam os soldados. Um dos mistérios maiores, para mim que visito, rodeia os adversários. Porque uma mirada muito rápida pelas condições de terreno gera em mim a certeza de que só um bando de alucinados escolheria este ponto específico para atacar. As encostas montanhosas são escarpadas e praticamente impossíveis de trilhar. Não consigo entender como é que qualquer general optaria por uma estratégia quase suicida de para entrar em território chinês usando uma via intrasitável. Bem sei que Aníbal tentou conquistar Roma pelos Alpes, mas isso acaba por ser uma brincadeira de Sumérios em comparação. O nosso guia é um chinês que, maravilha, fala a nossa lusa língua. Na verdade, é um especialista no nosso país. A companhia para a qual trabalha organiza pacotes turísticos internacionais e a sua área é a Península Ibérica. Conhece Lisboa e o Alentejo, Coimbra e o Porto - algo pelo qual lhe quero dar os pêsames, mas travo-me a tempo - e por isso domina o idioma. Ouço as explicações iniciais mas rapidamente percebo que a acção e o interesse estão longe dali. Com o tempo, sinto boa parte do grupo a ficar para trás, em parte também pela destreza física diferente de cada um, e dou por mim acompanhado apenas de Mário, comendador máximo de Fronteira, e Tiago, conde maior da advocacia. Volta e meia trocamos umas piadas e uns comentários, mas na maior parte do tempo, cada um existe no seu mundo de contemplação. Cruzamo-nos com uma quantidade anormal de turistas italianos, mas falando com alguns pelo caminho, entendemos que são um grupo de meditação que procuram a auto-descoberta aqui longe. Depois de no ano anterior ter apreciado a mesma pandilha nas terras peruanas, apanho-a agora aqui, no lado oposto do planeta. Parece que a auto-descoberta está em todos os locais, excepto aqueles perto de onde vivemos. O que é espantoso. Caminhar na Muralha é uma mistura de aula de cardio e body pump, porque um outro mito que tenho de desmentir é da planura do caminho. Vai em altos e baixos, grandes declives a pique. A certo ponto questiono-me, e fico a olhar bem antes de me estragar numa ladeira sem degraus que com uns trezentos metros, como é que os soldados corriam de um lado para o outro nestas condições em casa de ataque. Eu levo apenas a mina mochila e uma máquina fotográfica. Eles carregavam dezenas de quilos de armadura e armamento. Hoje está sol temperatura amena, um dia espectacular; mas imagino nas estações frias, aqui em montanha, quando o metal se torna mais frio do que o próprio gelo. Ser enviado para tarefas na Muralha devia ser um castigo dentro do exército. Menor castigo é o momento em que, perante um lance de degraus mais íngreme, uma jovem italiana que caminha à minha frente aproveita uma escorregadela para assentar o seu fofo rabo em primeiro na minha cara, depois nas minhas mãos. Não planeava que alguma moça se atirasse a mim tão longe da minha terra, mas a vida é feita de surpresas.


Demoro quatro horas e meia no passeio. Tiro uma enormidade de fotos, mas não conseguem substituir o que os olhos guardam. Aquilo em que ainda penso quando escrevo isto. A visão de uma longa sela sob montanhas que nada mais são do que dorsos de cavalos rochosos. A impressão esmagadora de me encontrar numa torre e conseguir mais dez, quinze, vinte estendendo-se para bem longe é algo que não pode abandonar a memória de quem quer viver os momentos onde está. Onde existe. Há locais onde é céu parece ser mais real e o mundo um bocadinho mais do que cores e formas a que o nosso cérebro dá ordem para não se perder. Quero se transcendente, mas a certa altura não dá mesmo. Perante o riso de duas mulheres, um riso histérico e exagerado, mui nobre comendador Mário lança para os seus amigos portugueses uma imortal frase: "Ri-te ri-te, menina, que quando souberes que a vaselina tem areia até choras". Segundos mais tarde, descobrimos que são brasileiras ao falarem connosco e Mário não consegue confrontar condignamente a sua falha. Sâo ambas do Rio Grande do Sul e também se espantam, como eu, que no meio de tantos milhões e de tantos quilómetros, se tenham cruzado com quem partilha o mesmo idioma. O Mário também, mas não exactamente pelos mesmos motivos. Contemplo também este acaso, no meio de tantos que encontrei na viagem. Em dois terços dela andei meio perdido em mim, duvidando da minha vida, questionando escolhas, carregando pessoas como se fossem sacos de cimento a esmagar-me, ameaçando apertar o meu corpo, e o meu espírito contra o chão. Eles ainda existem. Mas aqui, tiram férias. Há um poder natural dos locais que esmagam, porque não esmagam apenas a compreensão, mas tudo o mais que apanham. Sinto isso nas montanhas, sinto-o aqui. Há uma sensação presente, em ambas, de que sou tão pequeno e um pormenor tão pequeno na História. De que os meus problemas se agigantam em mim, mas continuam a ser minorcas em tudo o mais que se passa. Que transitam, como as pessoas, de que tudo flutua e está condenado a desaparecer. Que há quem goste de ti em marés e tu nenhuma outra hipótese tens se não sentir-me areia da praia. Que pode escolher mas só para ti. Que esta Muralha serve para proteger, mas também caminhar: portanto guarda e abre o horizonte, e preciso de ambas. Ma saberia que precisaria mesmo nos meses seguintes e que estes quadros que construo nesta tarde me seriam um refúgio de tudo. Uma viagem prolonga-se enquanto a recordamos, nos ossos principalmente. Quando chego ao final, à torre de Jingshan, não tenho água e estou cheio de calor. Uma velhinha espera-me para cobrar uma garrafinha desse lóquido precioso fresco, dez vezes mais do que o preço normal. Sou roubado, mas aceito ser vítima. Talvez seja um padrão. Tenta impingir-me umas camisolas, mas até os maiores otários têm um limite. Sentado na rocha, à sombra, vejo bem o que andei e o que não andei também. Atrás de mim, existe o que me faltaria andar, se continuasse. Sei que a Grande Muralha da China tem princípio e fim, mas enquanto aqui estou, fingirei que não, que nunca acaba. Que é um bocadinho como o que me assombra. O assombro aqui é outro, e como aquele que fantasmas passados presentes me atormenta, também se vai prolongar. Dos meus olhos para tudo o mais no meu corpo que um bisturi não corta. Que não existe, mas mas que sentimos lá. Que é tão livre que uma Muralha, aí, é sinónimo de liberdade.

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