quinta-feira, março 26, 2020

Fachinação 24 - Eu gosto é do Verão



É mesmo ele. É Yasser Arafat- Não ressuscitado, entenda-se, nem mumificado. Múmias em Pequim, só Mao (tão poderosas no imaginários que passando defronte do seu mausoléu, vi algumas pessoas em vénias dedicadas). Está num retrato na parede de um corredor que conduz à saída do Quanjude, um dos mais antigos restaurantes de Pequim. Assume-se como o local onde foi criado o famoso Pato à Pequim, mas sendo eu da zona onde dois concelhos lutam até à morte pela autoria da chanfana, não levo demasiado a sério. Ao lado de Yasser Arafat, estão, entre outros, George Bush pai, Pélé e Fidel Castro. Um conjunto ecléctico de personagens. Fundado em 1864, o Quanjude tem uma certa reputação de classe entre os Chineses. O nome aliás demonstra isso, pois significa perfeição, união e benevolência. Beneficiou da protecção do primeiro líder do governo da China comunista, Zhou Enlai, que o frequentava amiúde e aí organizava banquetes para membros do Partido e para os dignatários estrangeiros que visitavam o país. Quando o Quanjude começou, em 1864, foi um ardil. O seu dono pagou principescamente a um dos cozinheiros do Palácio Imperial pela receita de um pato assado que era muito do agrado da Corte. Foi o primeiro restaurante a servir esta iguaria às massas e é hoje um dos franchises de comida mais conhecidos na nação. Apesar dos problemas que teve durante a Revolução Cultural, pela sua ligação a um período de História chinesa que estava fora da esfera comunista, é um local muito frequentado pelas elites políticas, como provam estas fotos de tanta gente famosa. Vim a saber mais tarde que existe um Quanjude em Portugal, caso queiram experimentar. Este tem todo o ar de espaço muito frequentado. Quando entrámos, estava praticamente cheio e tinha dois andares, várias salas de azafama gastronómica, o pato como vedeta central desta hora. Eu nem gosto de pato, mas comi carne de porco. Também estava boa. Os apreciadores da aves confirmaram, pelo menos que estava bem boa; e olhando aquela parece, vimos logo que estávamos em boa companhia. Da mesma maneira que aqui em Portugal aproveitamos todas as partes de um porco, desde as orelhas até aos cascos - porque poucas coisas revelam a penúria crónica de um povo como a sua habilidade criativa de recorrer como alimento ao que ninguém deseja levar à boca - nenhum pedacinho do pato é desperdiçado. Os seus pés tratados como iguarias de entradas, as entranhas propostas como deliciosos pratos no menu, a sua carne em mil e trezentas formas de preparar dentro de um forno a lenha. Como entrada, uma das especialidade são pezinhos de pato com mostarda. Pela cara dos meus colegas, não era de deitar fora. Fígados e corações també estavam disponíveis para aventureiros do palato. Pele tostada, sopa de língua de pato... O bicho morre, mas não é desaproveitado. Quando voltamos à rua, alguns sentem que caíram que nem uns patinhos neste almoço. Faz sentido. O meu espanto maior é que ninguém saio do restaurante a grasnar.


O plano para a tarde é visitar o Palácio de Verão, que fica fora da cidade. Uma hora, mais ou menos. A maneira mais rápida de lá chegar é através do Metro. Entramos na estação de Jiangdoman e já no subsolo, a primeira preocupação é a compra dos bilhetes. Não há bilheteiras, só máquinas. Que, claro, não têm instruções em inglês claro. Nem maneira de explicar como funciona o sistema de redes do metropolitano de Pequim. É enorme. Conseguimos ver que existem vinte e três linhas e com a maior parte dos nomes em Mandarim, sem qualquer pista que dê a entender a proximidade de algum local conhecido. Em redor, ninguém para ajudar. Um senhor idoso que carre o chão notou a nossa perplexidade e confusão, um grupo de ocidentais a carregar de várias intensidades e maneiras num ecrã. Inglês simples não resulta, gestos também: não consegue entender-nos. Alguns transeuntes, simpáticos, juntam-se, até um jovem que fala a língua de Shakespeare finalmente nos orienta. A compra exige uma série de escolhas que vão bem para lá da quantidade e do destino. Com paciência, talvez oriental, educa-nos nos modos chineses e lá seguimos. À nossa espera, um detector de metais e uma máquina raio X. É um procedimento comum. Ah, como tinha saudades... Depois de olharmos para um mapa, conseguimos entender mais ou menos o caminho a fazer. Por cinco vezes mudaremos de linha, até chegarmos à vermelha - aquela que passa perto do Palácio. Através de um sistema de cores semelhante, mas mais complexo porque mais numeroso, aos dos metropolitanos portugueses, encontramos a nossa plataforma. Estendendo-se por setecentos quilómetros - sendo por isso o mais longo do mundo - , o Metro de Pequim inclui duas ligações directas ao aeroporto, um maglev e uma ligação de comboio urbano, precisamente aquela que apanharemos para chegar por fim ao nosso destino. Estende-se por 405 estações e detém o recorde do maior número de passageiros transportados num único dia, uns esquálidos treze milhões e meio de pessoas. Liga o centro da cidade aos seus subúrbios, alguns deles quase a cem quilómetros de distância, e faz funcionar a grande metrópole. O que mais me espanta enquanto percorro esta estação é que está absolutamente limpa, sem qualquer vestígio de lixo. Apesar da quantidade de gente que aqui deve passar todos os dias e da evolução brutal que este sistema passou desde 1969, quando tinha apenas duas linhas, até hoje. Como se fosse o reflexo concreto do crescimento e estado da sociedade chinesa. Cada plataforma é estreita e encontra-se entre duas linhas. Conforme a direcção que se deseje, tomamos uma ou outra. Para protecção dos passageiros, a passagem para o comboio só ocorre quando se abre uma porta de vidro que é controlado pelos sensores da plataforma e da carruagem. Inteligentes. À hora marcada, chega o transporte. Uma eficácia incrível que se repetirá nas estações seguintes. Esqueçam a pontualidade britânica. Não há lugares sentados para todos, muita gente decidiu apanhar esta linha, uma das mais movimentadas da cidade, à hora depois de almoço. O interior é dominado por pessoas e cartazes de recrutamento para a Polícia que pelo ar intimidador dos modelos escolhidos, devem querer captar gente pelo simples medo de serem presos caso não aceitem o apelo. A publicidade mais capitalista está guardada para certos espaços nos túneis onde ecrãs espalham a boa nova de restaurantes luxuosos, roupa desportiva da NBA, concertos espantosos de bandas chinesas, um sem fim de joalharia e mulheres jovens de olhos rasgados fazendo beicinho enquanto brilham com pedras nos dedos. É a primeira vez que vejo marketing feito desta maneira e tenho de admitir, é espantoso.


O Palácio de Verão revela outro tipo de espanto. Ocupando três quilómetros quadrados, é um complexo vastíssimo de lagos, palácios, jardins e bosques. Três quartos da sua área é água, o que lhe confere a função de reflectir aqui na terra a beleza da esfera celeste. No entanto, praticamente nada é natural dele. O lago Kunming domina a sua paisagem, dois quilómetros de margem a margem e descansa em plácida horizontalidade entre duas colinas. Uma nomeada de Longevidade. Nenhuma das estruturas é natural. Aliás, a colina foi construída a partir da terra removida para a criação do lago; e ambos estão desde então associados e ligados na maneira como desenham a paisagem. A verdade é que só nos apercebemos disto muito depois de entrar no Palácio. Porque a percorrê-lo, existem vários caminhos cuja quantidade quase nos confunde. O dia está limpíssimo, tépido, o sol explora os nossos sentidos, a brisa sopra na direcção perfeita, na velocidade ideal. É uma mão dada de momentos que são impossíveis de estragar e não sei se por essa ilusão sensorial, se pelo meu corpo se sentir menos corpo e mais transcendência, é a primeira vez que tenho a sensação de estar a ver algo verdadeiramente chinês. Sem artifícios, sem armadilhas, sem qualquer tipo de reescrita histórica e recauchutagem épica. A essência dessa sabedoria oriental que verte das palavras de Confúcio quando as lemos. Surge-me uma vontade indefinível na força que em senta e me segreda que o importante é estar e não correr. Seguro a máquina fotográfica, claro, mas depois desta viagem longuíssima de duas semanas, de ter corrido milhares de quilómetros e encaixado o corpo numa rotina maquinal bruta, os meus músculos, em reunião com o esqueleto que me move, decidem que a hora não é do sobressalto, mas da pacificação. Depois de uma pequena caminhada por entre árvores, o enorme lago Kunming asurge por entre as folhagens e sou puxado, por uma corda que sinto à cintura mas não vejo nem palpo, para a sua margem. É um dos pontos de vista mais emblemáticos destes espaço, o espelho aquático sem fim à vista, confrontado por uma colina bem inclinado, muito verde, de onde brotam pavilhões e pagodes coloridos , um quadro pintado pela mão do homem, mas cujo impacto no meu olhar está bem para lá disso. É-me sempre estanho explicar as viagens que faço. Porque não posso, porque as frases saem-me sempre como papel esmagado que não se aguenta ao mínimo escrutínio. Porque este momento que descrevo, por exemplo, é tão mais do que paisagem ou de que é água e árvores e pedra. É mais complexo do que estar sentado parando o tempo na mão, mais do que a foto que tiro ou a piada que atiro a quem está ao meu lado, mais do que aquele silêncio que reclina as costas e descansa o cabelo desgrenhado. Não se explica porque é um daqueles momentos em que me sinto vivo, mesmo, sinto aquela pulsação carnuda e carnal que me ressuscita da morte a que me entrego na rotina, no quotidiano. As sensações pelas quais viajo são estas. Encontro-as em montanhas, em vales longos ou em espaços onde tudo se conjuga, o que se vê e aperta mas também o que se sente e levita, onde um Palácio cria Verão e Primavera e um Outono suave nos meus sentidos. Quase consigo perceber o encanto enlevado que os Chineses têm por si mesmo, o país, a cultura, a visão de um mundo cheio de energias que se cruzam, ordens que devem ser respeitadas. Aqui não penso na opressão ou na vigilância, no roubo da identidade cultural, não tenho discursos políticos. Estou apenas, e não é nada pouco. É muito. Estar é o mais difícil no mundo, simplesmente ser e permanecer durante uns segundos sem pesos do passado ou ânsias do futuro. É o que sinto aqui sentado. A leveza da vida. São segundos. Mas a intensidade é eterna, é pulsante.


Não que a história deste Palácio seja desinteressante, muito pelo contrário. A sua origem coincide com a primeira mudança da capital chinesa para a actual Pequim - na altura chamada Yanjing - em 1161. Wanyan Liang ordenou a construção de um palácio para as suas férias nesta zona, à altura chamada de Colinas Fragrantes, pela quantidade de árvores e flores que aqui existiam. A expansão e construção do palácio demorou mais de sete séculos, com cada dinastia acrescentando o seu pedaço. Alguns edifícios, como um templo enorme do século XV, desapareceram; mas ainda se preservam as memórias dos passeios sobre o lago que levavam os membros da Corte ao mesmo, em fins de tarde como este em que passeio agora. Com o século XVIII e a dinastia Qing vieram a maior parte dos jradins e bosques que hoje podemos percorrer. Em consequência, o consumo de água aumentou drasticamente, o que obrigou ao aumento do lago Kunming e a criação de outros mais pequenos. No entanto, isto afectou o abastecimento de água da própria Pequim, visto que tanto o Palácio como a cidade eram alimentados pela mesma fonte, localizada a poucos quilómetros daqui. Então, o imperador Qianlong, por sugestão da esposa, criou dois novos lagos alimentados pelo Kunming, que se destinavam ao consumo dos pequineses. O desenho final deste complexo bebe de várias lendas da mitologia chinesa e dos seus locais: cada um dos lagos representa uma montanha mágica presente nas lendas da China Oriental. Este encanto desaba, no entanto, em 1860, quando o exército britânico, na altura envolvido nas Guerras do Ópio contra a China, invade o Palácio e queima uma boa parte do seu conjunto. Um evento que ainda hoje é traumático para os Chineses. O que sobrou inteiro foi pilhado pelos Ingleses e pelos Franceses e as décadas seguintes trouxeram várias reconstruções por causa de conflitos locais e recuperação do que foi destruído pelos Ocidentais. Quando o último imperador chinês abdica em 1912, pondo assim fim à era imperial chinesa, o Palácio foi aberto ao público e entregue à municipalidade de Pequim, que o transformou num parque aberto a todos. Desde 1998 que é Património da Humanidade e isso deve-se não só à sua História e importância no imaginário chinês, como à quantidade absurdas de ponto de interesse que podemos encontrar e que não posso explicar minimamente nesta crónica. Acho que precisaria de umas três e só aqui passei uma tarde e vi tudo muito a correr, porque preferi estar em vez de andar. Mas destaco a Torre do Incenso Budista sobranceira ao lago; o Barco de Mármore, uma escultura naval em pedra com vitrais que jogam connosco no fim de tarde; a ponte dos Arcos que une dois pavilhões; o Jardim dos Prazeres Harmoniosos; e ao longe, vista a partir desta margem, a Torre de Jade, como um farol sem luz cravada numa ilha.


Mas o que posso partilhar convosco é o momento pelo qual todos os visitantes esperam. O Sol vai descendo gradualmente do lado esquerdo do horizonte e nessa viagem de eterno retorno, com lentidão diminui a força da sua luz. As sombras no solo tornam-se cada vez mais inclinadas, esticadas até um ponto de quebra. As árvores escurecem, os objectos transformam-se, mudam a sua forma por momentos como se fosse o Sol a sustê-los. Uma longa promenade contorna uma das margens do lado, estende-se num pequeno deleite acompanhando essa saída sorrateira que o soalheiro astro faz. A ladeá-la, muros com formas esculpidas, onde casais e pessoas sós namoram em simultâneo com o ocaso e o fim de tarde. Alguns pagodes mais pequenos estendem-se por este passeio. Olhando, há quem se estenda em encosto apreciando as águas do lago fundindo com este espectáculo. Nas suas caras, a reflexão, e fico com a ideia de que este é um hábito muito comum, de perguntar às águas sobre as cascatas da vida. Um Património Mundial onde se pode passar o tempo sem contar minutos e regressar num outro dia. Vou documentando a progressão do Sol com fotos, cada uma tirada em luminosidade diferente, oferecendo claro-escuros mais evidentes. Cada vez mais perto, junto a um templo, junta-se gente num varandim com vista privilegiada. Quando lá chego, consigo contemplar tudo, desde as várias colinas até à Torre de Jade, o Barco de Mármore, a Torre do Incenso. Por trás, o Sol em descanso e em contra-luz. Num golpe de óptica, arranja maneira de ir sumindo mesmo ao lado da Torre do Incenso, acentuando-lhe os contornos, esmagado a minha vista, escapando cada vez mais da minha lente. A água do lago torna-se negra, depois prata, depois ouro e não regressa aos tons de tarde. Talvez amanhã. Em meu redor, dezenas de pessoas e de câmaras, alguns totalmente preparados com tripés super cósmicos e máquinas super galácticas, preparas com minúcia e minutos para este preciso momento. Então termina e a noite cai. Ou então ainda existe, prolongando-se durante meses, aparecendo na minha memória, terminando esta crónica


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