segunda-feira, março 16, 2020

A quarentena, episódio 1 - "A ilha dos mortos de Veneza"




Veneza sempre foi uma cidade à espera de morrer. No momento em que foi tomada a decisão de construí-la sob palanques de madeira numa lagoa pantanosa, nas 117 ilhas que, como sardas, se espalham nos estuários dos rios Pó e Piave, um relógio começou a contar tempo. Cada segundo caindo, cada gota de água trepando as paredes dos seus canais, vigiando, ameaçando. Em dias de chuva e névoa, esse agouro pesa mais; e mesmo por entre a fumaça ténue da humidade, que brota do mar e não deixa ver mais do que a ponta dos dedos defronte da cara, alguns dos ilhéus pequenos da lagoa surgem. Nos que hoje contam com gente, as luzes asseguram que ainda não sumiram. Mas outros foram abandonados, deixados como náufragos que nunca chegam à cidade. Por entre essa névoa, se concentrarmos o foco e a vista, surgirá em ocasião uma torre alta, sineira, miragem. Mas existe. Encima a igreja de Santo Vitale e marca da presença amaldiçoada da ilha de Poveglia. Ou como é conhecida em Veneza, a Ilha dos Mortos.


Poveglia tornou-se sinónimo de muitas coisas. Quase todas, sussurradas com medo de que se tornem realidade na presença de quem as fala. Um último recurso desde a sua ocupação. Pairavam no ar quando em 421 um grupo de cidadãos romanos, na fase de caos completo que envolveu a queda do Império Romano do Ocidente, atravessou a lagoa veneziana para se refugiar na ilha. O seu isolamento tornava mais fácil a tarefa de fugir aos povos bárbaros que ajudaram a derrubar o Império. Sabiam que a ilha era usada pelas autoridades romanas como despejo de doentes, párias pelo simples facto de esgotarem a saúde própria e alheia. Dificuldades iniciais deram lugar ao desenvolvimento de um povoado que se aguentou até ao século XIV quando em 1379, o governo da cidade-estado de Veneza, à altura uma das grandes potências económicas e militares da Europa pelo seu papel no comércio mediterrânico, forçou os habitantes a sair da ilha. O objectivo era a construção de uma fortaleza octogonal que faria parte de uma rede de quatro, na ideia de proteger a cidade. No entanto, as mesmas ligações comerciais que tornaram a cidade opulenta e rica trouxeram também uma doença de propagação rápidas, contágio fulminante e sintomas bem visíveis no destaque de bubões negros que se espalhavam pelo corpo. Vinda da Ásia Central, a Peste Negra entra na Europa. Veneza é um dos seus primeiros portos; e o mesmo isolamento que atracou em Poveglia os seus primeiros habitantes dá-lhe um novo papel: o último refúgio dos enfermos. As autoridades venezianas designam-na como uma das ilhas para onde os pestilentos doentes devem ser evacuados, na tentativa de conter a epidemia. De início, na paciência das horas escorrendo até à morte, deixando que cada um tome o seu tempo; mas alguns meses depois, o processo passa a ser mais confuso. Aleatório. Se antes a certeza da doença era o critério de quem era desterrado, o pânico e a histeria, os festivais constantes de penitentes chicoteando-se na rua como punição e pedido de perdão a Deus, a fuga generalizada de pessoas que deixam a fervilhante Veneza, a cosmopolita Veneza, em algo saído de um filme apocalíptico, levam a uma escolha menos escolhida. Qualquer cidadão mostrando o mínimo sinal de doença, seja ela qual for, é enviado para a ilha. Muitos, saudáveis, morrerão lá contaminados pelos verdadeiros doentes. Alguns serão atirados para poços, cheios de cadáveres, e queimados vivos. Os gritos ouviam-se do outro lado do mar. As cinzas dos falecidos entraram no solo e misturaram-se com o terreno. 160 mil pessoas terão aqui gasto os seus últimos depósitos de vida. Depois, aqui ficaram depositados, mas em morte. Mas não todos: nas décadas seguintes, os venezianos que passeavam na costa deram muitas vezes com lixo que se depositava também nas praias. Eram ossos. Queimados.


O fim da vaga de Peste Negra retorna a função militar a Poveglia. Mas não se livra do antanho de morte e perdição que ganhou no entretanto. Tanto mais que a Peste, na  verdade, nunca sumiu completamente. A seguir à Negra, veio a lepra e Poveglia virou também lazaretto daqueles que chegando nos barcos estivessem doentes. Por decreto do doge de Veneza, governador máximo da cidade, os que mostrassem sintomas deveriam permanecer quarenta dias em Poveglia e duas ilhas próximas. Caso não mostrassem evolução da doença, entrariam em Veneza. Quarenta dias. Ou como conhecemos hoje, uma Quarentena. Mais vidas perdidas em batalhas, mais vidas perdidas nos marinheiros que acabam por morrer em Poveglia. A reputação do ilhéu cresceu com os séculos, mas não demoveu o governo italiano de aproveitar a calma e serenidade do espaço para instalar, em 1922, uma casa de retiro. Pelo menos, era essa a versão oficial. O complexo aí construído recebeu pessoas com distúrbios mentais numa altura em que esse conceito era pouco definido. Em Poveglia, estiveram internados doentes de facto e doentes de invenção, pessoas cujo comportamento estranho lhes colava rótulos de imediato. Em primeiro com a Peste, depois com a incapacidade de entender os labirintos torcidos da mente humana: Poveglia é um monumento erguido à capacidade de o medo ser uma doença que tudo amplifica, que tudo confunde, separa e isola. O medo é o mar que nos rodeia como ilhas e que nunca atravessamos. O medo dobra a realidade e cria histórias, como aquela de que um médico desta casa de retiro fazia horríveis experiência com os pacientes. Guardava as piores, desde electrochoques até lobotomias sem anestesia, para uma sala que mandara construir na torre de Santo Vitale. Numa noite de tempestade, caiu da torre e morreu. Ninguém sabe bem como, mas uma enfermeira conta em linhas de medo que o médico terá sido atirado por espectrais figuras, caras contorcidas de dor, exigindo que a ilha deixasse de ser um espaço de dor. Na queda, o homem sobrevive, mas rapidamente o envolve uma névoa branca que o arrasta para ninguém sabe onde, nem a enfermeira, nem os rumores nos seus lábios. É uma história de pânico, outra mais. É um boato que cria forma de bola maciça.


Em 1968, o espaço encerra e Poveglia fica deserta. Até hoje. O Governo italiano proíbe visitas, me tem tentado vender aquele rochedo, sem sucesso. Várias interessados fazem ofertas, mas uma noite passada ali rapidamente lhes muda a ideia. Realidade ou não, a Ilha dos Mortos vive da sua reputação. Em redor, outros ilhéus albergam hotéis de luxo, resorts com vista privilegiada para a cidade dos Doges. Poveglia não. Hoje, apenas alguns agricultores a usam, com autorização da cidade. Aproveitam o solo verdejante da ilha para cultivarem aí as suas vinhas. As cinzas das vítimas de peste tornaram-se integrais à terra, adubaram-na, fertilizaram-na. Quando se remexe, ocasionalmente surgem ossos que o fogo não consumiu. Mas eles não se importam. O que conta é que produz. Os vinhos feitos com a morte de Poveglia bebem-se com a mesma alegria dos outros se não soubermos o segredo. Não consta que tenham havido histórias de copos assombrados. Hoje, se quiserem visitar à revelia, é pagarem a um pescador e ele leva-vos a Poveglia. Todos os anos, um auto de danados procura a reputação amaldiçoada daquele lugar. Recentemente, em 2016, cinco estudantes norte-americanos foram ali presos pela Polícia Italiana, depois de ligarem aos bombeiros por necessidade de evacuação. Falaram em vozes e gritos, em sombras nas ruínas. O medo é contagioso. Passa tempo e espaço, fica nas paredes e nas árvores. À espera de fazer efeito. De empestar. De nos tornar em ilhas.

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