terça-feira, março 17, 2020

A quarentena, episódio 2: O mecanismo de Antikythera



No Verão de 1901, ao largo da ilha grega de Symis, o capitão Dimitrios Kontos, da Marinha Real Grega, liderava um grupo de mergulhadores não profissionais numa expedição arqueológica. Eram apanhadores de esponja normalmente, mas durante aquele Verão haviam sido contratados para retirarem artefactos antigos do fundo do mar. Fora descoberta uma antiga galé romana e no esforço de expandir o conhecimento sobre aquela civilização e o espaço grego na Antiguidade, o Governo patrocinou uma investigação. Já se retirara variados objectos, desde ânforas a estátuas, jóias, moedas, ourivesaria, pedaços belíssimos de um passado que no futuro estaria exposto no Museu Nacional de Atenas. Nesse dia, um dos mergulhadores subiu ao barco tremendo. Tendo já perdido dois homens para um estranho mal desconhecido que afectava regularmente todos os mergulhadores de profundidade – e que hoje sabemos ser a descompressão, quando demasiado nitrogénio se acumula no sangue – o capitão acorreu para ajudá-lo, temendo novo problema. Mas era apenas fraqueza. Vindo das águas cristalinas do Egeu, o homem trazia aquilo que à primeira vista parecia uma pedra com alguns pedaços de ferro encrustados. Cobertos de verdete, destacavam-se apenas por terem uma clara autoria humana. Sem prestar muita atenção, Kontos juntou-o ao espólio que acumulara. Durante um ano, essa pedra permaneceria esquecida na capital grega, sendo a atenção toda devotada aos belos objectos artísticos encontrados nas profundezas dessa caixa de tesouros helénica que é o oceano. Mas em Maio de 1902, o arqueólogo Valerios Stais parou alguns segundos, mais do que qualquer outro antes de si, diante daquele bloco calcário. Para lá dos potes e do bronze, arrancou-o do monte de achados retirados do barco romano, no sótão do museu, e depois de algum tempo a analisá-lo, a excitação tremeu-lhe o corpo. Aquelas peças de metal não eram aleatórias. Entrincheiradas na rocha estavam peças de engrenagem. Aquilo era… uma máquina. Quando comentou a sua descoberta com colegas, foi ridicularizado. Era impossível. Segundo cálculos, aquele navio era algures do primeiro século anterior a Cristo. Nem os Gregos, nem qualquer outra civilização era sofisticada o suficiente para construir algo do género. Stais estava louco para lá de Plutão.

Derek de Solla Price era, em 1951, professor de Matemática Aplicada em Cambridge. Decidira por esta altura tirar um segundo doutoramento em História da Ciência e numa viagem de pesquisa, visitou o Museu de Atenas, procurando informações sobre a civilização grega, que ele considerava como fundamental no desenvolvimento do pensamento científico. Como britânico, pôde manusear o património que não estava em exibição. A sua atenção prendeu-se no mesmo bloco de rocha que espicaçara a centelha de Stais décadas antes. Como Stais, reconheceu de imediato a bizarria do que tinha em mãos; mas ao contrário do grego, Price tinha nome e crédito. Nos anos seguintes, dedicou parte do seu esforço a tentar descobrir o que raio era aquilo. Análises de raios X e raios gamma, efectuadas com um colega físico nuclear, Charalampos Karakalos, deram ao mundo o inacreditável: dentro da matéria densa estavam espalhados vários fragmentos metálicos, 82 ao todo, entre eles rodas dentadas que Price e Karakalos não conseguiram contabilizar. Mas era um aparelho mecânico, não havia dúvida. Na sua pesquisa, o britânico não conseguiu, no entanto, divisar a sua função ou propósito. Percebeu que havia instruções inscritas nalgumas peças e chegou a construir um modelo daquilo que seria aquela estranha máquina antes de desaparecer no oceano. Mas morreu sem descobrir afinal o mais importante. Apenas em 2008, uma equipa da Universidade de Cardiff, usando tecnologia ainda mais avançada, pôde por fim reconstituir digitalmente aquela contrapção.  Por esta altura, era já conhecida pelo nome da ilha grega mais próximas dos destroços do navio romano onde se encontrara aquela anomalia: o Mecanismo de Antikythera. Apenas então o verdadeiro assombro do mistério se tornou real: estávamos perante o primeiro computador jamais construído, uma complexa máquina analógica que através de variáveis inseridas, realizava cálculos. Para isso, era apenas necessário girar uma alavanca lateral e a volta das engrenagens… adivinhava o futuro.
O Mecanismo de Antikythera seria uma espécie de relógio de metal guardado numa caixa de madeira de 34 centímetros por 18, com pelo menos 37 rodas dentadas que combinavam para fazer funcionar um complicado sistema de cálculos astronómicos. A maior tem 14 centímetros e atrás desta, estava montada outra mais pequena. Na maior engrenagem, a principal, diferentes ponteiros indicavam informações respectivas. Para que servia todo este aparato? Ora, o Mecanismo permitia descobrir onde se localizaria a posição do Sol e da Lua vários dias e semanas e meses e anos no futuro, e também dos cinco planetas conhecidos pelos gregos – Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno. O seu movimento acompanhava e projectava as fases da lua durante o mês escolhido, através de uma bola prateada no topo de um ponteiro, que girava acompanhando esse movimento lunar. Havia também um calendário solar, já numa escala de 365 dias por ano, seguindo o Sol através das sua posição nas constelações do Zodíaco, o que mostra alguns conhecimentos de um fenómeno conhecido como Precessão, que faz com que a nossa Estrela atravesse toda a nossa cúpula terrestre num ciclo de dezenas de milhares de anos. As inscrições, aliás, revelam algumas instruções para utilização da máquina, nomeadamente contagens de tempo, escalas astronómicas e operações matemáticas. Numa delas, encontramos o nome dos doze meses como fases do Zodíaco como os conhecemos hoje – mas usando as designações egípcias. Outro ponteiro previa eclipses solares e lunares, incluindo as possíveis cores e densidades. Era algo a que os Gregos prestavam atenção por serem brutalmente supersticiosos. A máquina dava também informações ao utilizador acerca dos futuros solstícios e equinócios, dado em torno da qual girava a grande visão do Universo de praticamente todas as culturas antigas, até mesmo as do Neolítico. Dado curioso e bem divertido: este Mecanismo trazia embutidas também as datas de 42 grandes festivais religiosos gregos, incluindo os Jogos Olímpicos. O utilizador da máquina, girando a alavanca principal, conseguia saber quantos dias faltavam para a realização de cada um. Era um calendário solar e astronómico; uma agenda,um contador astrológico, um observatório dos astros e dentro do conhecimento limitado da época, conseguia ter em conta os movimentos irregulares da nossa Lua através de pequenas variações nas engrenagens que lhe estavam atribuídas dentro da máquina.

Talvez a explicação científica não ajude a entender o quão fora da norma é este objecto. Mas vou tentar fazer perceber. As primeiras calculadoras com alguma sofisticação surgidas na Europa aparecem apenas no século XVI; derivam de outras mais arcaicas do século XIV. Ora, estas têm raízes nalgumas maquinetas utilizadas por matemáticos e astrónomos muçulmanos, que provavelmente as foram buscar a Bizâncio, actual Istambul. Na melhor das hipóteses, há entre mil e mil e quinhentos anos de tempo perdido entre o Mecanismo de Antikythera e algo que lhe seja semelhante em complexidade, sem que o ultrapasse na variedade de funções ou precisão de engenharia. Um imenso vazio de conhecimento que ninguém consegue muito bem explica. Para lá das duas perguntas imediatas: quem o fez? Como foi feito? A primeira não tem resposta. Foram sugeridos vários conhecidos sábios da Antiguidade como autores, desde Arquimedes (o Da Vinci do mundo clássico) a Hiparco, astrónomo que para além da descoberta do cálculo trigonométrico, foi também quem notou pela primeira vez, pelo menos reconhecidamente, o fenómeno da precessão dos planetas no Zodíaco – embora se desconfie que os Egípcios, por exemplo, também estavam ao corrente desse estranho evento. Qualquer um deles é válido. A astronomia de Hiparco misturava a geometria grega com cálculos astronómicos babilónicos, que parecem ter um papel importante no Mecanismo; e Arquimedes é o autor de uma das grandes obras científicas da História, um livro chamado “Do fabrico das esferas”, que segundo o escritor romano Cícero conteria os planos para um engenho muito semelhante ao encontrado em Antikythera. Mas o facto de terem sido identificadas duas caligrafias diferentes nas peças encontradas indica vários construtores materiais, ainda que o sábio a ser consultado possa ter sido apenas um. Seja quem for que tenha tido a arte e habilidade para construir algo tão íncompreensível na sua execução. Os arqueólogos acham estranho que algo tão importante, e de evidente origem grega, tenha sido encontrado num barco romano. Mas talvez isso se justifique pelo saque que várias cidades-estado do mundo helénico foram sujeitas durante o período de expansão do Império Romano, que se efectuou mais ou menos no período em que se aceita que esta intrincada maquineta foi construída.

A complexidade do Mecanismo de Antikythera supõe objectos antepassados que não se encontram. As suas previsões do céu não são completamente precisas: diferem, por exemplo no casos dos planetas, em um grau em relação ao que sabemos hoje ser a sua posição real. Ainda assim, para o conhecimento do período, é extraordinário. Reconhecidos cientistas como Richard Feynman e Jacques Costeau viveram fascinados com a máquina – o francês chegou até a mergulhar em busca de outras peças que pudessem ajudá-lo a esclarecer o mistério. No entanto, a mera existência deste artefacto é em si um tremendo enigma que nos faz repensar a maneira como avaliamos a sapiência
e Ciência daquele que nos precederam. É provável que este fosse um conhecimento muito restrito e secreto, um aparelho a ser usado em aulas e para quem quisesse tornar-se astrónomo. Na sua intrincada engenharia, reflecte também a maneira como os Gregos viam o Cosmos. Não como uma imensa algazarra sem sentido ou lógica, mas como fruto de cálculos e ciclos, de ordem matemática. Como se fosse uma máquina complexa, cujas engrenagens, beleza e segredos só vemos se prestarmos realmente atenção. Se nos entregarmos ao tempo de contemplar, se aceitarmos o mistério como parte do ciclo maior da vida. Como parte do seu próprio mecanismo.

2 comentários:

Gil disse...

Muito bom Bruno. Podes continuar

luminary disse...

Obrigado, caríssimo! :) Faz parte de um projecto para me entreter durante esta quarentena. Os textos estão aqui, mas também os gravo em pequenos podcast :)