segunda-feira, março 09, 2020

Fachinação 22: Chegada a Pequim



Não quero acreditar e no entanto ali está. Um dos logotipos mais reconhecíveis em todo o mundo, resistindo a desaparecer no barulho e bulício da estação de comboio de Lanzhou. Passei a viagem quase toda, esta semana em meia em território chinês, fazendo piadas com aquilo e nesta cidade que marca praticamente a fronteira entre as duas Chinas - uma a Oeste, desertificada, onde temos passado os nossos dias; outra a Leste, urbana, dinâmica, onde a ponta final da travessia se desenrolará - surge por fim um McDonalds. Depois de jornadas a contornar os perigosos rochedos da comida chinesa, do orientalismo gastronómico que tem sido uma experiência e desnivelada para o meu estômago, a promessa de familiaridade. Há tempo para almoçar. Apesar de alguns atrasos com a camioneta, que encontrou alguns problemas mecânicos à saída de Xiahe, a viagem correu tranquila. Pelo meio, as temperaturas frias do Tibete, com o céu carregado e de fronha zangada, deram lugar a um calor abafado, a um sol que nos recebeu no terminal de camionagem de Lanzhou. Onde, diga-se, ainda nos perdemos um bocadinho com o sistema chinês de conduzir os passageiros até à saída. Chinesices. Mas precisando todos de almoço, o movimento comum é rumo aqueles dois arcos dourados armados em estrada de tijolos amarelos rumo a Oz. Sim, nós sabemos que as corporações são más. Sim, a McDonalds tem um historial muito questionável no tratamento de animais. Sim, estamos num páis cuja reputação de higiene na zona de restauração é ruinosa. Mas depois de chop suey, zhajiang mian, pidan dofu ou gao dian, entre outras dezenas de pratos igualmente impronunciáveis, sinto-me pronto para não ser surpreendido. A não ser que os Big Mac aqui na China sejam estufados e com carne de cabra. É possível. Afinal, outra especialidade do país é pegar numa patente industrial, retransformá-la com ligeiras alterações e apresentá-la como um produto novo. Isto até pode nem ser um McDonalds, de facto, mas um MingDonalds, uma versão chinesa da franchise estaduninense. De malas a reboque, entramos no restaurante como turistas. Está cheio e vamos esperando para que lugares vaguem de maneira a podermos sentar-nos. Alguns vão já pedindo. Os funcionários percebem zero de inglês e encaminham-nos para um menu geral com imagens, embora todas as legendes se apresentem em mandarim. Quando me toca a vez, tenho de recorrer à memória visual. As minhas idas a esta cadeia de fast food são raras e inserem-se sempre numa lógica prática de comer algo para enganar a fome quando estou em território desconhecido ou pior, num centro comercial. Invariavelmente, opto pelo pelo Big Mac, porque assim como assim aquilo sabe (ou não sabe de todo) ao mesmo. Espera-ns uma viagem de oito horas até Pequim e não quero ri de estômago vazio. Acho que encontro a imagem do que procuro. Peço. Só há Coca-Cola, bebida que não aprecio, e como tal, requisito água. Indicam-me que vai demorar, o não percebo de imediato. Alguns minutos depois, chamam-me. Testo pelo olfacto: o hamburguer chinês tem um cheio muito parecido com que posso encontrar em Portugal. Abro a caixa . o mesmo design, apenas muda a linguagem - e ali está ele, uma cópia de uma cópia. Ao lado, batatas fritas. É a minha primeira tentação e pecado a que cedo. Já não comia isto há algum tempo. Abençoados belgas. O meu estômago deve ter entrado em choque, traumático provavelmente, mas não vacila. Desaparece em poucos minutos e por momentos, saí da China e sinto-me algo revigorado, pronto para aguentar os últimos três dias na capital chinesa, imerso na comida local, disposto a aguentar as últimas refeições agridoces e de molhos fortes, com proteínas que não reconheço e apenas lido com instinto. Senti-me libertado.

Oito horas até Pequim. Parte do meu cérebro acaba de ler o "Easy riders, raging bulls", a outra vai percorrendo a investigação que fiz acerca daquela que é, segundo algumas estatísticas, a cidade mais habitada no planeta: vinte e um milhões e meio de habitantes (vinte e quatro, se contarmos a zona metropolitana). O aumento da influência chinesa no mundo pode verificar-se até pela maneira como o nome da cidade mudou nas referências ocidentais. Os aeroportos costumavam, por exemplo, anunciar a cidade como Peking, que foi uma anglicização do nome em mandarim. A versão portuguesa é aquela que usarei nesta e nas próximas crónicas. No entanto, os Chineses nunca ficaram muito satisfeitos com isso. Mais um sinal de prepotência ocidental. Quando o rumo da economia planetária começou a virar a Oriente, os países ocidentais mudaram o ritmo e seguiram outra pauta. Porque actualmente esta não é apenas uma cidade chinesa, mas planetária. Xangai continua a ser o centro económico da China, mas os turistas estrangeiros dirigem-se a Pequim, procurando a tradição chinesa como ela é filtrada para o exterior. É o ponto fulcral da cultura, da sociedade, da arte, da educação, da ciência. É a única cidade em todo o país que é governada directamente pelo próprio Comité Central. Mas para além de todas estas modernices, e o que é mais importante, Pequim apresenta-se como uma das cidades mais antigas do mundo. nem sempre como capital dos reinos e impérios que antecederam a actual nação comunista. O seu nome significa aliás "capital do Norte" e é um de entre vários pelos quais a conheceram: Jixian, Yanjing, Najing, Zhongdu, Shuntian... Apenas em 1949, numa reunião do Partido Comunista Chinês, a versão actual se tornou orbigatória no uso público dentro do país. É também o ano onde é escolhida como capital única da nação chinesa. A cidade é uma colecção de máscaras, uma projecção de séculos e dos homens que os habitaram; e de todas as Quatro Grande Capitais da China, o quarteto de urbes maiores que a certo foram o foco de toda a vida política da nação nas suas várias versões, é a única que ainda conserva o seus estatuto. As restantes (Xi'an, Luoyang e Nanjing) assumem hoje o seu papel mais secundário na vida do país.A China é Pequim, de certa maneira e o futuro passa por lá. Não é à toa que existem no seu espaço noventa e uma universidades. Tenho-me tentado preparar mentalmente para esta enormidade. A maior cidade onde passei até hoje deve ter sido Lima, cuja população não é metade da de Pequim. Questiono a sua organização - ou falta dela - a circulação, a enxurrada assustadora de pessoas, que é afinal aquilo de que fujo. No entanto, ninguém me obrigou a viajar para a China. Sou aquele paradoxo semi-giro. 


A minha primeira impressão de Pequim, quando saio do comboio de alta velocidade após a chegada, é de um calor opressor. Estava avisado que esta zona é árida, rodeada de montanhas, mas também com um clima desértico. Tenho ideia de suar um lago interior enquanto me encaminho para a praça de táxis, que está à pinha. "À pinha" é, acredito , o lema não oficial da cidade. O comboio estava à pinha, a estação também, os corredores e passagens e cantos igualmente. Estou crente de que se abrisse agora uma tampa de esgoto, brotaria do interior uma multidão de olhos em ecrãs de telemóveis, escolhendo direcções várias, ignorando dificuldades ou sociedades. Pequim é gente, gente que quer entrar em táxis, gente que procura rumo, gente que na sua vidinha quer apenas chegar ao fim do dia. É nesta Pequim que nos enfiamos. O nosso condutor é já idoso e não sabemos bem sequer se entendeu as direcções que lhe demos para o hotel. Assentiu que sim, mas com aquele ar inexpressivo e olhos vítreos que já encontrei com alunos a quem faço perguntas que começam com o verbo "explicar". Mais certo fico desta suposição quando reparo que segue com fidelidade canina um colega que levando outros do nosso grupo lusitano, mostrou lidar muito melhor com o idioma de Shakespeare e principalmente com a aplicação do Google Tradutor. São dez e meia da noite, a humidade faz-se sentir nos corpos pingados e o trânsito é o de uma hora de ponta em Lisboa multiplicada por dez. A Pequim que percorremos é de longas avenidas que não aparentam ter um ponto final, nem de fuga. As luzes dos semáforos perdem-se na neblina do fumo industrial e do rádio brota a suavidade dos estilo pop arcaico chinês, instrumentos de sopro histéricos e voes que parecem lamentar perdas de vida durante os tempos em que o Exército de Terracota era apenas lama no chão. O nosso homem ao volante perdeu um pouco a noção e os nossos olhares cruzam-se na conclusão de que perdeu o colega de mira. Há um momento de reorientação do GPS cerebral, umas palavras ditas em chinês num tom que adivinha asneiredo mandarim e de súbito, uma guinada e aceleração por entre o trânsito. Entre perguntar-nos novamente o destino e uma busca desesperada pelo colega, a segunda opção protege o orgulho de qualquer beliscão. Entre tantos faróis e barulhos e movimento, interiorizo essa lição que aprendi neste gigante país: deixar-me ir porque controlo zero e uma vez chegado onde quer que esta onda me transporta, preocupar-me com as coisas por lá. Não adianta muito stressar. Já basta o que existe palpável de cada vez que abrimos a janela. O silêncio no carro existe porque sinceramente, estamos todos cansados deste esticão de oito mil quilómetros a que nos sujeitámos. Um mundo, quase. Dez Portugais de norte a sul; e nós fizemo-lo semana e meia apenas para deambularmos no trânsito pequinês sem grande noção se vamos parar à Coreia do Norte ou à Talândia quando o táxi parar e a porta abrir.

Mas a porta abre e o que nos espera é a rua. O nosso taxista vem ajudar-nos a tirar as malas, com rapidez e algum despacho; deve estar doidinho por voltar a aturar compatriotas, daqueles que se expressam em mandarim. Procuramos o Jiangshan Garden Hotel, um hotel que pelo mapa fica algures no meio dos labirintos de ruas estreitas que fazem parte da Pequim mais antiga, São os Hutong, os bairros históricos, decadentes, típicos, patuscos e cheios de personalidade de uma metrópole cada vez mais engolida por aquilo que se tem convencionado chamar de progresso. Estradas pouco mais largas do que um carro originam becos apertados onde passamos dois a dois, enfiando por habitações baixas e pequenas, portas que parecem de cofre e muitas vezes me põem a adivinhar acerca do que se esconde do outro lado. Quando abertas, contemplo jardins interiores ou uma divisão apenas de espaços amontoados e habitantes suados, com pouca roupa. A origem deste género de casas e ruas é medieval, do século XIII, dividindo os bairros da cidade de acordo com o estatuto social. Quanto mais perto vivia da cidade proibida, mais importante seria o cidadão; e os Hutong que vejo hoje, palavra mongol que significa "poço de água", começavam a alguns quilómetros da residência do imperador. São minúsculos e de materiais humildes e comuns, o contrário daqueles que pertenciam às altas castas imperiais, normalmente com grandes jardins, telhados coloridos, decoração com materiais caros e raros. A esmagadora maioria foi desenhada de Este para Oeste, pois as suas entradas procuravam a direcção da luz do sol para melhor iluminação. Quando terminou a era imperial, no início do século XX, este sistema social colapsou. A proliferação deste tipo de bairros perdeu personalidade e organização e eles foram aparecendo, sem regras por toda a periferia de Pequim, sem qualquer tipo de distinção entre si. Boa parte foi destruída durante os períodos de guerra civil consecutivos que resultaram na Revolução Comunista de Mao-Tse Tung em 1949. A modernização de Pequim, onde as largas avenidas e os edifícios residenciais com vista a acomodar uma população cada vez mais crescente, ajudaram a que a maior parte dos originais desaparecesse. Mas alguns continuam a existir. Como aqueles em que circulo nesta noite. Luzes tépidas, animais que cosem as sombras, o barulho muito difuso de televisores e transístores, com alguns berros entre cortados de famílias que discutem. Existem um pouco pelo encanto turístico da viagem no tempo. Como se até os próprios burocratas percebessem que no centro de poder, neste símbolo do país que é uma capital milenar, é mais difícil exterminar culturas antigas. Estamos a falar de locais com personalidade própria, cada bairro com uma história particular, figuras, mitos, folclore. Afastados da opulência da Cidade Proibida e do Palácio de Verão, a verdadeira Pequim viveu aqui à sombra de séculos. Onde a cultura é popular e a gastronomia próxima dos gostos mais comuns refinados pelo paladar do tempo.


O hotel localiza-se no hutong de Sanyanjing, perto do centro, mas quase um mundo à parte. Juro que já nem consigo ouvir o bulício do trânsito que me consumiu na viagem até aqui. É como se alguém desligasse o ruído com um simples aperto. O nome significa "Poço das três bocas" e forneceu durante água ao Palácio da Cidade Proibida durante vários séculos. Esta área ainda é nobre nos tempos actuais: de Deng Xiaoping, antigo Presidente chinês, até Rupert Murdoch, actual presidente das fake news, muitos famosos têm casa na zona exterior a Sanyanjing, um bairro conhecido por Jiangshan. É precisamente esse o nome do nosso hotel. Quando chegamos, eu sou o primeiro. Toco a uma campainha do meu lado direito e estaco olhando as portas de madeira que se abrem para dar a conhecer a sorridente cara de uma hora chinesa. Num inglês relativamente ágil, saúda-nos e convida à entrada ajudando com as malas. Uma outra jovem surge para acompanhá-la. O check-in demora alguns minutos. Despachamo-nos e outra porta leva-nos a um pátio interior com mesas, sombrinhas sofás, iluminado por trémula iluminação de velas, espantando para um longe próximo a noite que nos envolve. Sinto.me cansado de te estar sentado a maior parte do dia, da extensão das ligações de viagem, dos transportes. Do lado sujo de viajar, resumindo. Preciso de cama e quarto e do meu espaço interior. De descanso, basicamente. Minutos depois, as minhas coisas estão prostradas no chão e eu esticado na cama, ar condicionado ligado, um planeta a destruir pelos meus impulsos e caprichos egoístas de ocidental acomodado. Antes de tomar banho, informo a minha família de que estou bem e dou graças ao VPN. O Hélder mostra-me então uma nota escrita de forma macarrónica, desejando-nos uma boa estadia, agradecendo a nossa escolha, saudando a presença do Vítor Costa... o dono da empresa com a qual costumo viajar. Nesta noite em Pequim, somos todos Vítor Costa de uma maneira ou de outra, os donos da viagem. Devia ir jantar, mas não me apetece. Como qualquer coisa que tenho na mochila para ir enganando o estômago. Há-de chegar até amanhã de certeza. Quem nunca viajou para fora de resorts eou cidades europeias bonitas ignora o quão penoso para o corpo se torna uma viagem para quem decide calcar fora dos trilhos mais comuns do viajante. É uma escolha assumida, mas que se paga e aqui deitado, na noite quente, começo a entender o preço. Deixo-me ficar mais uns minutos, a tentar perceber se tenho saldo. Amanhã a volta vai ser

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