quarta-feira, março 18, 2020

Fachinação 23 - Figuras de Pequim



Talvez por ter sido criado numa dieta farta de rock ocidental, o encanto da música oriental perde-se em mim; e refiro-me quer à mais pop ou à mais tradicional. No caso da segunda, os instrumentos de cordas quase furando o tímpano com a acutilância de um arame forjado nas ferrarias do Inferno são o que chega para pedir a ressurreição de Genghis Khan para uma nova tournée de chacina e ordem no Império do Meio; no caso da primeira, há uma tolerância muito reduzida na minha disposição e humor para sintetizadores imitando flautas e vozes lancinantes que desenham a dor por entre nenúfares em lagos que rodeiam pagodes. Não só é chato, como parolo e falso. Os Chineses adoram estas coisas. Caramba, é acompanhar o Instagram de Jackie Chan e constatarem, com horror, que um dos mais dementes e corajosos artistas de artes marciais da História do Cinema só se contenta quando derrete pelo microfone de karoake a sacarina de românticas baladas em mandarim, falando provavelmente de rebentos de soja, ventos do Oeste, o dragão que voa abençoando a pátria e provavelmente telemóveis ou o catano. Em mim, a música chinesa provoca apenas um gesto reflexo de fuga que apenas travo porque não quero insultar esta cultura. Não por ser milenar, mas por prescindir daquilo que conhecemos como respeito pelos direitos humanos; e eu prezo muito os meus direitos e esquerdos, centros e laterais. Trouxe-os para aqui, quero levá-los de volta a Portugal. É por isso que espero que valorizem o facto de estar há uns cinco minutos a assistir ao que posso descrever em termos largos como uma desgarrada à sombra de um pagode num parque em Pequim. Encostados a uma parede, três instrumentistas praguejam a vida através de uma cítara, um violino e um tambor. Em ritmo de morrinha, deslizam cordas, adormecem batuques enquanto à sua frente se revezam em sessões de cinco minutos dois homens domingueiros. Não há formalismos ou formalidades. Vestem t-shirts, calções e sapatilhas, um deles enverga até óculos escuros na cabeça. Olhando de fora, parece-me um grupo de aficcionados da canção que em certas manhãs se levanta da cama e pensa "Não, hoje não é dia de deixar as pessoas em paz", e em procissão melómana, cada um certamente com o seu período musical favorito, vêm ao parque passar o tempo. Aqui em Portugal, conversa-se, joga-se dominó, batem-se umas cartas. Mas na capital chinesa não. Aqui, flui cultura. Um homem acaba o seu turno, cabelo negro acachapado na cabeça e uma certa barriga de quem quer expandir território para Taiwan. Entendo zero do que cantou, mas por várias vezes apontou para nós, para se queixar de um amor perdido ou de que faltou queijo ao pequeno-almoço. É uma de ambas. O seu parceiro toma o lugar. Deve ter mais uns quinze anos e o longo cabelo branco é apanhado a meio das costas. Sofre também pois claro. É provável que de reumatismo ou do sol que hoje está a dar demasiado forte na testa ou de que aqueles rebentos de soja com molho agridoce lhe caíram mesmo mal e o que ele tem é cólicas e na verdade, devia estar deitado no sofá. Venho de Portugal e mesmo depois de duas semanas neste país, o meu chinês limita-se a "Obrigado" e "Olá". Quero fechar os olhos e deixar-me levar pela música, mas é impossível. Como disse, não encontro fascínio naquelas notas do Oriente que tanto encantaram os meus antepassados no tempo da Expansão. A questão é que o dia até tinha começado com grande classe.


Localizado exactamente no centro do eixo Norte-Sul de Pequim, o parque de Jingshan fica mesmo ao lado do nosso hotel. Tem um espaço enorme e o principal atractivo para o turista é que o seu lado Sul permite a visão da Cidade Proibida, o local mais visitado da capital da China, É a principal razão que nos leva a visitar este espaço, embora a sua importância histórica ultrapasse a simples função de miradouro. Desde o século XIII que serviu de jardim imperial, local habitual de passeio dos membros das cortes Yuan, Ming e Qing. Foi durante esta última que se plantaram múltiplas árvores de fruto e se construíram os vários pavilhões de típica arquitectura chinesa que ainda hoje podemos encontrar espalhados pelo parque (e debaixo de um dos quais nos encantavam os dois tenores de que falava há pouco). Numa altura em que este espaço ficava fora da malha urbana, a Corte praticava caça nestas colinas, principalmente veados e javalis. Isso ainda hoje é recordado com algumas estatuetas coloridas em plástico dos ditos animais. Com o fim da monarquia na China, foi aberto ao público e é hoje um local de destaque para o turista. Ainda assim, há muito pouca a sensação de espaço para passeio e fotografia exclusiva, pois vemos a normalidade expressa no comportamento das pessoas. idosos praticando várias modalidades de Tai Chi e Yoga, pessoas sentadas em bancos lendo, mulheres deitadas apanhando sol, cidadãos que de livre vontade vêm cuidar das plantas e regar os relvados. Paga-se para entrar, mas pouco e vale a pena: é um espaço limpo, muito verde e repleto de flores espalhadas por canteiros, adequado a esta manhã de Sol com que a cidade nos recebeu. Sem procurarmos de imediato o rumo para o ponto elevado, damos umas voltas observando as pessoas, os espaços. Existem vários pavilhões espalhados, cinco deles praticamente iguais. Embora hoje estejam ausentes, até ao início do século XX encontravam-se estátuas de Buda no interior de cada um, simbolizando os vários sabores do nosso paladar. A disposição de todas as construções e manchas verdes neste parque não é aleatória: corresponde às indicações do feng shui, uma filosofia chinesa que acredita nas energias invisíveis da Terra e que estas podem ser canalizadas mediante arquitectura e paisagismo. O ponto central da planta do parque é a colina que o domina, em função da qual todos os outros aspectos foram planeados. Subimo-la então; é curta, mas proporciona uma excelente vista não só sobre o ex-libris de Pequim, mas também todas a cidade e os seus pontos principais. Tudo o que separa o parque da Cidade Proibida é um fosso coberto de água, como os que rodeavam os nossos castelos medievais. Neste ponto alto, localiza-se o maior pavilhão, com três andares, em cores de azul e vermelho e amarelo. Brilham bastante com o sol de hoje e são quase tão bonitas quanto a ideia de que estamos a ver outros daqueles locais míticos da História mundial. Nâo iremos visitá-lo, no entanto, e a razão é visível daqui: longas filas que nos obrigariam a perder tempo necessário para explorar melhor esta enorme urbe oriental. Não sinto pena ou uma necessidade obrigatória. Há outros cantos que me interessam mais, daquilo que li sobre eles. Quando descemos, passou por uma grande placa dourada, colocada defronte de uma velha árvore que conseguiu crescer num solo rochoso. A placa conta a história do imperador Chongzhen. Um homem cruel, enfrentou uma enorme revolta popular, recusando-se a abdicar do trono. Com a cidade dominada pelos insurgentes, o imperador tentou chamar os seus conselheiros para discutir medidas, mas nenhum apareceu. Sozinho no seu momento de maior apuro, Chongzhen foi drástico e cruel: obrigou a imperatriz a suicidar-se; matou com as suas próprias mãos filhas e concubinas; e fugiu com um único servo, um eunuco chamado Wang Shen, para este local que hoje fica no parque. Aqui, escrevu uma carta de despedida usando o único material disponível: a sua roupa e o seu sangue, arrancando a ponta de um dedo à dentada. Depois, enforcou-se e evitou assim a fúria dos populares. Feng shui.


Já em direcção à praça de Tiannamen, num passeio a pé pela cidade, o raio das cítaras e das guitarras ainda soavam nos meus tímpanos. Inevitavelmente, contornamos o perímetro da Cidade Proibida e o seu fosso de água é sempre uma companhia. Pequim é uma daquelas cidades fervilhantes, mas limpas. Acho bizarro que este mastodonte populacional tenha tão pouco lixo no chão, mas depois lembro-me de que estamos num estado autocrático. O trânsito é permanente, mas aqui nota-se menos, porque é um espaço quase entregue a peões. A zona histórica. Onde a cada momento está sempre a acontecer qualquer coisa completamente fora da nossa esfera de normalidade, desde pessoas que montaram bandas de venda de bebidas e gelados em casa, na janela, até crianças que são levadas por uma coleira como cães. O inglês nas placas de informação turística é atroz como sempre; e neste dia de amena temperatura e céu limpo, vários casais aproveitaram para fazer as suas sessões de fotos em plena tua. Uma, muito simples, envolve alguns amigos e os noivos. Usam telemóveis e embora a noite use vestido, é muito simples e o seu companheiro, embora vista casaco de fato, enverga sapatilhas e calças de ganga. Reflectem uma China menos tradicional, o exacto oposto do que encontramos alguns metros mais à frente, numa produção matrimonial com tudo a que temos direito. Há damas de honor e moços de companhia. Elas vestem vermelho; eles fato de um roxo sóbrio, mas notório. Houve planeamento, houve noção - ou falta - de estilo. Cada um dos casais tem de fazer variadas poses, em conjunto e separado. Enquanto me sento num muro espreitando a cena, dois cabeleireiros estão por perto, ajeitando maquilhagem e retoques capilares antes de cada nova ronda. Vestem-se de forma muito simples, mas sempre em preto. Apenas o fotógrafo principal destoa, envergando uma máquina fotográfica do tamanho do meu crânio. Há malas e malas de material espalhadas pela margem do fosso, os torreões da Cidade Proibida servem de cenário a esta sessão meticulosa. Não há margem para erros. A certa altura, de uma das malas, sai um longo pano de tule, encarnado, esvoaçante com as leves brisas do dia. As damas de honor esticam-no e seguram-no.Como se fosse um casamento saído de "O trono de sangue", de Kurosawa. É só aquilo de que me recordo. A noiva, uma moça gordinha que não tem mais do que vinte e cinco anos, observa tudo, zelosa mas apreensivamente triste. O noivo convive com os amigos, fazem algumas brincadeiras e palhaçadas. Recordo-me dos casamentos ocidentais a que assisti, onde este tipo de coisas normalmente ocorrem já depois de eu ter chegado, estas sessões que depois ficam bem em portfólios e álbuns para os noivos. Aqui, acontecem em pleno coração da moderna Pequim, num espaço rodeado de centenas de pessoas, onde o amor só tem lugar em frinchas dentro de cada um.


O nome significa "Porta da Paz Celeste", mas na memória dos ocidentais fica por razões que pouco têm de pacífico. Em 1989, um enorme grupo de estudantes fez de Tiannamen o seu local simbólico de reunião durante protestos diários que duraram semanas e colocaram o regime chinês nas notícias fora do país. Foi apenas o centro de várias manifestações que ocorreram numa boa parte do país, exigindo mais direitos civis e liberdade de expressão para os chineses. Meses de indecisão na maneira de lidar com esta insatisfação culminaram com uma acção drástica a quatro de Junho: o exército avançou em força, com tanques e soldados, sobre os estudantes que em permanência se mantinham na praça - ninguém sabe bem quantos. Oficialmente, não houve mortos, apenas presos; mas por esta altura, sabemos melhor do que confiar naquilo que o Governo Chinês diz. A coisa podia ter acabado por aqui, se no dia seguinte não tivesse aparecido, ninguém sabe bem de onde, um dos meus heróis pessoais. Num auge de soberba e marcação de território, o Exército da República Popular da China decidiu fazer uma parada ciclópica pela grande avenida junto à praça. Infantaria, Aviação, Blindados, grandes colunas para mostrar à população quem de facto manda, quem de facto põe e dispõe. No meio de tudo isto, de todo este poderio, um homem de camisa branca e calças pretas atravessa-se defronte uma coluna de tanques, segurando um saco de plástico branco. Parece algo saído de uma comédia sem sentido. Estaca frente a um dos veículos. No seu interior, o condutor deve ter sentido a confusão dos cegos a quem é devolvida a vista e dão por si num caleidoscópio. Parando o primeiro, param os restantes; e o homem mantém-se irredutível, resistente. Neste impasse, decide tomar a iniciativa: sobe ao tanque mais próximo, abre a portinhola e começa a gritar com os soldados no interior. Nisto, outros dezassete tanques não avançam. De vários pontos da praça, escutam-se disparos, mas talvez o indivíduo não se consiga mexer pelo peso dos seus tomates de aço inoxidável. Durante três minutos, a parada não se mexeu. Dizem que um homem apenas não pode parar um exército; mas neste dia, isso foi mentira. Ele desceu do tanque então, mas continuou na sua irredutibilidade. Um louco, talvez, um homem de princípios; ou alguém que simplesmente se fartou. Tudo acabou quando alguns transeuntes, temendo outra carga militar que deixasse um banho de sangue, foram ter com ele e arrastaram-no para longe. Perdido na multidão, tornou-se anónimo. Não sabemos nome nem destino, se ainda vive ou se morreu. Mas a sua imagem de uma banalidade que num gesto de desafio se transforma numa lenda ficou comigo desde que vi as imagens na televisão quando era criança. Quando decidi vir à China, era impossível não lhe fazer homenagem. Por muitos problemas que me pudesse criar.


Neste dia, as medidas de controlo para entrar na Paraça são a dobrar. Faltam poucos dias para que se comemorem os setenta anos da Revolução Maoísta e há um grande programa de festas que tem como palco este espaço. Tiannamen é tão importante para o Partido Comunista Chinês que um desenho desta está na bandeira símbolo do PCC. Para visitarmos, existem dois piquetes de segurança. Num apresentamos os nossos documentos e somos revistados manualmente; no outro, regressamos à rotina das máquinas de raio-x e detectores de metais. Damos uma voltinha por entre um maralhal de gente e paramos defronte da entrada que de Tiannamen conduz à Cidade Proibida. É a mais conhecida, com o seu retrato icónico do Presidente Mao-Tse Tung com o mesmo sorriso do gato de Cheshire com quem a Alice de Lewis Carroll conversa nos livros. Há bastante polícia e alguns militares guardando o espaço, preferido por muitos para entrar no antigo Palácio Imperial. Outros turistas, também em grande número, percorrem apenas a Praça. Entre nós, tiram-se umas fotos, sérias ou fazendo pouco do peso político deste local. Vejo ao vivo a mesma varanda que por muitas vezes apareceu nos manuais de escola que estudei. Dali, várias caras mudam, mas a presença opressiva do Governo Chinês é a mesma. As bandeiras vermelhas com estrelas amarelas tremem ao vento, mas seguras. É o epicentro da China moderna. O meu plano de homenagear o homem de Tiannamen é o objectivo. Quero fotografar-me na praça. Trouxe vestida a única t-shirt branca que veio comigo, de propósito para este momento. Traz estampada a face de Darth Vader, numa pequena piadola pessoal. É impossível ensaiar esta fotografia no mesmo local onde esse corajoso enfrentou os tanques. A Avenida é frequentada por carros e se ele teve coragem para travar o trânsito, eu pessoalmente não tenho a mesma intenção de desaparecer no anonimato. Sou rebelde, mas dentro dos meus limites. Do outro lado da avenida, estou mais próximo do famoso lugar do protesto. Atravesso por uma passagem subterrânea e subindo uma escada, estou a uns vinte metros. É aqui. Perto de mim, estão três polícias  que me olham quando o Zé Luís me aponta a máquina e eu, direito, segurando um saco de plástico branco, imito um dos meus heróis. Não dizem nada, nem sei sequer se identificam bem aquilo que me move a fazer isto. Talvez não, já passaram trinta anos. Entre mim e aquele lugar de resistência, estão quatro barreiras douradas. Manifestações físicas de outras barreiras que esse desconhecido saltou de outras maneiras. Quando acabo este ritual, a vida continua. Na praça de Tiannamen concretamente, há fotografias e risos e gritos e gente que passa o tempo. Há uma China de hoje que vai passando pela habilidade de resistir com uma diplomacia de inegável inteligência Uma China que exerce o seu poder não pela força abusiva, mas pelo conforto da amnésia. Hoje, em Tiannamen, eu fui o único homem de branco. Sem tanques. Mas com esse espírito de resistência habitando algures em mim, de forma tímida e simbólica, mas viva. Afinal, talvez alguma coisa me ligue hoje à cultura oriental que não consigo que me entre pelos ouvidos.



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